“O príncipe adentrou nosso acampamento numa confusão de cavalos, lanças e estandartes. A companhia que costuma manter não me agrada, os generais parecem ofuscados pela sua presença. O encontrei pela primeira vez sozinho quando tomava banho no lago. Ele não se alarmou pela minha presença, jogou água em direção à margem e me desafiou a acompanhá-lo. “Não nado com homens que ainda mamam nas tetas das mães” gritei em resposta.”

Dechtere estendeu a mão para Lyvlin. Não era um gesto amigável e sim impaciente, sequer a olhava. Seus olhos estavam encarando Branor em cujo rosto o sorriso que morrera momentos antes resurgia, largo e maldoso. O homem sacudiu-se e afastou os cabelos do rosto, bateu nas próprias vestes escuras e conseguiu se recompor.

- Havia esquecido como pode ser selvagem senhora. – falou para Dechtere – Não posso me culpar, acho que muitos não imaginam que por trás do rosto longo e frio pulsa vida. – seus lábios se ergueram ao ver que suas palavras tinham surtido efeito, mas levantou as mãos em um gesto de rendição quando Urobe começou a falar – Eu entendo, eu entendo. Apenas o que vim fazer aqui. Deuses, como são sem graça.

Sua mão pálida perdeu-se no bolso de sua túnica e quando a reergueu algo estava preso entre seus dedos longos. Garras. Ocorreu a Lyvlin. São garras.

O homem se aproximou a passos lentos e Dechtere não se afastou da frente de Lyvlin até que lhe mostrou o que estava aninhado em seu punho. Quando a mulher abriu caminho Lyvlin também pôde ver. Enrolado nos dedos do contramago estava uma linha de couro e no meio dela, balançando no ar um palmo abaixo, estava um pingente.

Não era um pingente comum, a primeira coisa de que Lyvlin se lembrou foi o enfeite no cinto de Adisa. A pedra que parecia carregar fogo em seu interior. O adereço que refletia as cores do Salão Esmeralda em sua superfície não era de longe tão trabalhado quanto o que o jovem alquimista usava com orgulho, mais parecia um trabalho bruto de algum artesão com pouco talento.

- Luminitsa. – Urobe se aproximou e mirou a pedra transparente com seus olhos anciões cansados – “Cristal de luz.” – falou numa voz quase temerosa – Lyvlin, às vezes os contramagos não precisam matar ou condenar as pessoas a uma vida sem magia, sem uma parte delas. Às vezes mostram... Misericórdia onde ela pode ser encontrada. Essas pedras magníficas foram encontradas nas minas de Rattra há quase dois mil anos atrás e os pergaminhos antigos falam sobre seu auge. Eram arrancadas de seus leitos terrosos às centenas, milhares. O suficiente para encher os porões das maiores embarcações. Cada aprendiz rattriano no início de seus ensinamentos tinha uma luminitsa balançando sobre o peito, impedindo a magia de deixar seu corpo até que estivesse pronto para tal. – despregou os olhos de sua superfície e olhou para a garota – Até que soubesse mestrar o poder que dormia em seu interior. Eram tempos mais serenos, eu presumo, contramagos não eram necessários. Mas como todas as outras coisas que são retiradas em excesso da terra as luminitsas também encontraram seu fim. E quando a última luminitsa foi colhida dos seios dos garimpos houve caos. Os mestres não sabiam o que fazer e dentro dos corações dos aprendizes cresceu a exigência por liberdade, pois aprendiam cercados de atenção e vigília. Nunca permitidos a escolher o próprio caminho. A Guerra dos Condenados foi o nome dado ao que se seguiu e nunca saberemos como os aprendizes e magos a teriam chamado se tivessem prevalecido para contar a sua história. Talvez já tenha ouvido falar sobre a primeira vez em que a magia revoltou-se em Vassand – não sabia, mas anuiu mesmo assim – E então os contramagos vieram seguidos nos calcanhares pela morte.

- Nós salvamos o reino. – interrompeu Branor – E essa não foi a única vez, vocês bem sabem. Agora a Ordem está caçando todas as luminitsas em que podemos pôr as mãos. É um trabalho que, dizem alguns, não compensa. Todos os cristais que encontramos tem a essência da magia de algum pobre coitado que morreu há centenas de anos em seu interior. O processo de limpeza pode ser... – perdeu-se em seus próprios pensamentos - Trabalhoso. Você, entretanto, tem sorte. Esta pequena está tão pura quanto quando deixou o seu berço rochoso. Deve nos poupar de algumas chateações.

- O que quer dizer?

- Bom, digamos que as coisas podem ficar feias quando “esquecemos” algum traço de magia em seu interior. Vocês magos são umas coisinhas sensíveis. – aproximou-se, segurando as pontas do colar diante de seu rosto – Agora, se quiser se virar posso amarrá-la.

- Será suficiente? - Breuse se fez presente em meio ao silêncio – A pirralha é forte.

Branor perdeu a paciência e virou a garota de uma vez.

- Cabelos para cima. – ordenou a Lyvlin e apenas depois disso se voltou ao general – Não deveria se preocupar com isso. Essa pequena pedra é suficiente para selar a magia de vocês três. Estou confiante que seja capaz de aguentar qualquer coisa que essa garotinha possa ter em –

Lyvlin gritou. O pequeno cristal esmagava o seu peito, era como toneladas comprimindo seu corpo e mente. Fechou os olhos em agonia e já não estava no Salão Esmeralda. Escuridão desenhava-se por onde a vista alcançava. Sombras mais escuras que o próprio breu flutuavam ao seu redor, sussurravam segredos. Meus segredos. Pensou cercada pelo nada. O nada repentinamente mudou, a neblina negra que a lembrou de imediato de sua magia se condensou em uma figura humana alta, suas vestes eram puro ouro e a cegaram. E havia hostilidade no ar, tanto perigo que tentou se esconder. Mas não havia nada em Anwar. Apenas as sombras flutuantes e aquela figura que sabia significar sua morte. O rosto estava tomado pela neblina, escondendo seus olhos e mesmo assim quando se virou na direção da garota ela levou a mão à bainha de Arcturus. E tateou o vazio. Uma das sombras transpassou o seu corpo e flutuou até a figura dourada, murmurando palavras urgentes.

- Mestre – a voz ecoou – Mestre, eles sabem.

- Sabem. – concordaram todas as outras sombras – E estão escondendo-a.

A voz que se seguiu fez o corpo de Lyvlin tremer. Cada parte de seu ser se comprimiu de medo e agonia. E uma pequena parte dela quis gritar de saudades, mas era lentamente vencida. A voz vinha de todos os lados e de dentro dela.

- Eu sinto. – as palavras de Vaus ribombaram por Anwar. Ela soube no momento em que a voz tocou o seu corpo e invadiu sua mente – Nossa conexão está enfraquecendo. Humanos. Sempre tão certos em adiar o inevitável. Sempre tolos, sempre inconvenientes. Mas não é nada com que tenhamos que nos preocupar, meus olhos são milhares. Eles fecham uma porta e se esquecem que conheço todas as passagens secretas, todos os sussurros. Que minhas mãos se estendem muito além de todos os muros.

As sombras se agitaram, vibraram em conjunto e foi nesse momento que uma delas se desprendeu e rodopiou ao redor de Lyvlin.

- Mestre. – a voz disse em tom amável – Ela está aqui.

Vaus se virou em sua direção. Lyvlin tentou correr para o lado oposto, mas é difícil se orientar quando tudo que se vê é escuridão e coisas ainda mais sombrias.

- Lyvlin – chamou o deus e estava logo atrás dela, envolvendo-a em sua neblina – Lyvlin – sentiu o corpo invadido por uma onda gelada, como se tivesse caído em um monte de neve sem roupa alguma. Também se sentia nua. Nada poderia fazer para se esconder. O abraço sufocante se intensificou, expulsando o ar de seus pulmões. A garota arregalou os olhos em vão e tentou se soltar, tentou lutar – Criança descanse. Encontre-me e a libertarei de seu fardo. Encontre-me e será livre.

- Não! – ela gritou em resposta. O aperto se intensificou e Lyvlin soube que morreria. Morreria nos salões etéreos de Anwar com nada além de medo a preenchendo.

E de repente ouviu um forte estalo, as pernas cederam e quando deu por si estava de volta ao Salão Esmeralda. Caíra de joelhos, seus dedos estavam fortemente fechados ao redor do cristal como um afogado que lhe tem uma mão estendida e a agarra porque sabe que não terá outra chance. A respiração estava fora de controle e sentia o suor frio entre sua pele e vestes, quando Urobe quis ajudá-la a se levantar cambaleou para fora de alcance e se ergueu sozinha.

- Isso parece inofensivo para você? - quis saber Breuse – A garota quase morreu.

Branor estava quase tão pálido quanto Lyvlin.

- Ela quase a rachou! – exclamou cheio de espanto e se voltou para os mestres – Como –

- Ela é uma linair. – Dechtere examinou o cristal que pendia ao redor do pescoço de Lyvlin sem fazer menção de querer tocá-lo – Negro como a morte. – constatou, se afastando.

Lyvlin segurou o pingente para que pudesse ver também. Era verdade. Dentro do cristal que fora transparente ondulava uma nuvem escura, uma neblina que era igual a sua magia quando fora exteriorizada mais cedo. A superfície da pedra estava coberta de rachaduras e nelas o breu se acumulava e a encarava de volta.

- Então não posso mais ferir ninguém com minha magia. – disse para ninguém em especial. Mas Urobe respondeu mesmo assim.

- Não. Sua magia está selada neste pequeno cristal... Ainda que com essas rachaduras –

- Funcionará. – disse Branor desconfortável. Seus olhos examinavam Lyvlin de cima a baixo, mas agora havia algo novo neles. Medo talvez – E se não basta contratarem Aras. Esta reunião foi um pouco mais movimentada que eu costumo fazer normalmente.

- Você está com medo? - perguntou Lyvlin sem tirar os olhos do cristal. Caso se esforçasse o suficiente podia ver figuras sendo desenhadas como quando derramara o tinteiro de Gilbert sobre seus preciosos pergaminhos.

- Medo? - repetiu Branor – Não. Apenas quis dizer que arrancaria sua cabeça se nos encontrássemos uma segunda vez. E acho que o rei não ficaria muito satisfeito.

- E se eu simplesmente resolver tirar – falou a garota, acompanhando o movimento. Assim que suas mãos tocaram o colar de couro começaram a queimar como se fosse feito de brasa. Também era impossível erguê-lo acima de sua cabeça.

Um pequeno sorriso curvou os lábios do contramago.

- Você não resolve. – disse – A nossa Ordem tem seus próprios artesões. Podem não ser os mais jeitosos com o material, mas são os melhores em encantamentos. – observou-a esfregar as mãos em um desespero contido – Sugiro não tentar uma segunda vez. Apenas um contramago pode desfazer a magia.

- E quando o tempo certo chegar isto será feito. – prometeu Urobe.

- Estão apenas adiando o inevitável. – escapou dos lábios da garota. Os mordeu para calá-los, mas nenhum dos presentes tinha estado com ela em Anwar. Sua ofensa foi tomada como estupidez ou teimosia juvenil, algo a que provavelmente deveria ser grata.

Branor não tinha nada a mais a dizer e abandonou o salão com nariz erguido e cabelos um pouco mais bagunçados do que quando entrara. Quando ficou a sós com o conselho foi sua vez de descobrir que não tinha nada para falar. Haviam resolvido sua situação, ainda que estivesse longe de ser algo que findaria de uma vez por todas todo o trabalho que estavam tendo com ela, mas Lyvlin estava feliz por não ter sido punida ainda mais. Na verdade, assim que sua conexão com Vaus fora partida parte de si também a tinha abandonado. Não imaginava que passaria os próximos dias sem se envolver em alguma confusão, mas de alguma forma sabia que não ouviria aquela voz sussurrando em seu ouvido por um longo tempo. E esse era o motivo pelo qual poderia ter plantado dois beijos nas bochechas secas de Branor quando se despedira ríspido e sem olhá-la uma última vez.

- Iniciará seus treinos amanhã. – lembrou Urobe quando se despedira do grupo também.

- Meus treinos? Eu achei que estava livre de magia até segunda ordem. – ninguém percebeu o seu trocadilho, o que a deixou um pouco decepcionada.

- Não aprendeu nada hoje? Os treinos de um mago não se limitam à magia. – disse Breuse e a menção a luta física o encheu de energia – Amanhã aprenderá a manejar uma espada, a posicionar o escudo no lugar correto e talvez até conseguirá ser iniciada às outras armas.

- Eu sei manejar uma espada muito bem. – disse a garota, dando palmadas carinhosas na bainha de Arcturus. Era reconfortante encontrar a espada em seu devido lugar.

- Sabe? Então talvez deva aprender outras coisas. Humildade, para começar. – Dechtere a encarou séria, mas por trás de sua expressão espiava o humor.

Lyvlin fez uma pequena mesura que sabia estar completamente errada e se voltou para os grandes portões. Quase tropeçou sobre Darsk que estivera colado do outro lado para ouvir o que se passava no interior do Salão Esmeralda e o viu assumir uma expressão confusa diante do sorriso que estava estampado em seu rosto. Sorria porque a noite não havia sido tão ruim como imaginara. Porque havia visto Vaus e escapado entre seus dedos. Porque havia visto um lado de Dechtere que imaginava ser inexistente. E havia também Ezra. Sim pensou enquanto caminhava pela Academia adormecida até seus aposentos uma noite realmente boa.

--x--

Os dias seguintes se passaram mergulhados em treinamentos exaustivos e uma nova variação de hematomas e machucados que rapidamente encontraram seus lugares no corpo de Lyvlin. Acordava antes do sol, se lavava e vestia uma combinação de couro e linho que estaria ensopada de suor antes dos raios solares tocarem a baía Dourada. O dia começava com o que Dardan, o mestre de armas responsável pelos iniciantes, chamava de aquecimento. Mas a garota rapidamente aprendeu que se tratava de tortura. Fazia todos correrem ao redor da arena de justa que para a infelicidade do pequeno grupo era grande o suficiente para drenar todas suas energias em poucas voltas. Dardan os mandava correr trinta voltas quando estava em um dia bom e cinquenta quando tinha acordado com o pé esquerdo. Se não tivesse visto sua perícia em combate Lyvlin acharia que tinha dois pés esquerdos. Depois de ficarem jogados pelo pátio de treinamento até conseguirem controlar suas respirações em um dia comum se seguia o treinamento com espadas e escudos.

- Espada admirável. – disse o mestre de armas quando Lyvlin desembainhara Arcturus no primeiro dia – Pesada de histórias e grandes feitos. Mostre-me sua posição de guarda.

A garota foi tomada por uma apreensão desconfortável, mas o fez. Dardab riu tanto que teve que pôr a mão sobre a grande barriga. A gargalhada ecoou no pátio de pedras e para a surpresa de Lyvlin o grupo de aprendizes não fez coro. Talvez também tenham passado por isso. Pensara sem jeito.

- Se você parar de rir talvez possa me mostrar o que está errado. – dissera desgostosa. Achara que esta parte do dia seria a menos vergonhosa, mas Dardan a mostrara errada. E era apenas o começo.

O mestre de armas tinha as primeiras mechas brancas riscadas em seu cabelo escuro. Era moreno e fira uma cortesia de Rattra quando o mestre de armas anterior havia perecido na batalha que quase pôs Beltring de joelhos tantos anos atrás. Era forte como o Touro e incrivelmente rápido com uma arma na mão. Havia ouvido certa vez que mantinha uma rivalidade amigável com o irmão do rei e quando as duas forças se encontravam em um combate individual toda a cidadela parava para assistir. Lorde Harlas era feito de pura selvageria e determinação nestes encontros, mas Dardan sabia esperar o momento certo. Caso podia-se confiar nos garotos com que treinava o mestre de armas tinha uma vitória a mais que o irmão do rei, algo que Lyvlin não esquecera.

- Se você parasse de segurar essa espada como uma completa idiota talvez não me causasse ataques de riso. Aqui – ele dissera, corrigindo sua postura – Tem a sorte de possuir uma lâmina rara e capaz, agora segure-a como a espada de uma mão que ela é. Isso. Treinará até seu braço não aguentar, mas em troca terá a certeza de conseguir manejá-la com precisão. Lembre-se, sua espada é sua vida em uma batalha. Perca a espada e sua vida vai se esvair mais rapidamente que achava possível.

- Pensava que o escudo era o importante em uma batalha. – retrucou a garota com orgulho ferido. Mas Dardan não se importava com o orgulho de ninguém.

- Escudos são coisinhas muito úteis, mas se não consegue segurar uma espada com força suficiente será improvável que conseguirá esmagar a cabeça de seu assassino com ele. Escudos são dispensáveis, um se estilhaça, outro é estraçalhado por um golpe. Você sempre pode encontrar outro entre os mortos e lhe servirá bem. Sua espada é diferente. Aguentará qualquer golpe se sua mão for firme o suficiente e encontrará a garganta de qualquer oponente com a mesma rapidez em que bloqueia um ataque que a cortaria ao meio. – Agora, vamos dar uma olhada nesses pés.

As horas se passavam num turbilhão de gritos, insultos e comandos gritados pelo mestre de armas rattriano. Lyvlin imaginava se o ferreiro em Evion fora mesmo um soldado, porque parecia ter aprendido tudo errado. Proteger os flancos era algo difícil e quando Dardan percebeu que Lyvlin era melhor que o restante do grupo passou a ser a sua dupla. O que fora a origem de muitos machucados que tentava tratar toda noite antes de dormir. A batia com a espada de treinamento sem piedade, lhe enterrava o cabo de madeira na têmpora sempre que a guarda estava aberta e quando passaram a treinar com escudos atingira seu nariz no primeiro movimento com a placa metálica que revestia a borda da madeira. Não lhe deu oportunidade de limpar o ferimento ou respirar antes de fazer uma finta para o lado e bater o escudo em suas costelas do lado esquerdo, fazendo seus pés se levantar do chão. Mas ele sempre lhe estendia a mão e a puxava para cima. Depois da primeira semana apenas a chamava de estúpida duas vezes ao dia. Quis perguntar sobre seu pai, mas nunca encontrava oportunidade porque Dardan não tolerava tagarelices durante as lições e depois delas sumia dentro da armaria. E queria mostrar que era boa o suficiente antes de invocar o nome de seu pai.

O treinamento com lanças era o que menos gostava. Achava a arma incômoda e pesada demais, útil apenas em um cerco ou formação determinada, como quando as duas primeiras fileiras formavam uma parede de escudos e as demais estendiam as pontas compridas através de espaços minúsculos sobre os ombros de quem estava à frente. Como arma individual era restritiva demais, pensava a garota. Se qualquer oponente chegasse perto o suficiente o golpe da espada mais singela poderia significar um grande problema. Mas não era apenas por causa da lança que não gostava das horas que passava tentando segurar o pedaço comprido e pontudo de ferro com certa dignidade, mas por causa das pessoas que dividiam a atenção do instrutor. O grupo com o qual tentava domar espadas e escudos era o mesmo com que tinha aulas sobre as costas de um cavalo. Era um grupo de jovens que deveriam ter em média três anos a menos que ela, nenhum era pajem e alguns eram aprendizes da Academia. Não falava muito com nenhum deles, mas compartilhavam o sofrimento sobre o comando rígido de Dardan e aliviavam a dor e exaustão com algumas piadas realmente ruins. Lyvlin gostara de todos quase de imediato e uma vez que tinham se certificado de que o cristal que pendia de seu pescoço a impedia de realizar qualquer tipo de magia passaram a chamá-la para perto e acenar quando a encontravam pelos corredores da Academia ou Fortaleza Real em suas ocasionais andanças.

Este grupo dividia com ela as aulas de manejo de lanças e arquearia, o que por si só tinha se mostrado um grande problema. Ela era a única aprendiz da turma, todos os outros eram garotos e garotas que almejavam algum dia se tornarem cavaleiros. Eram todos de alto nascimento, filhos e filhas de lordes e grandes comandantes. Todos esnobes e cheios de si até Lyvlin acertar o alvo com sua flecha a trinta passadas. A mulher que lhes dava lições com o arco arqueara sua sobrancelha fina, andara até o boneco de feno e arrancara a flecha de seu pescoço. Mandou que Lyvlin se afastasse mais dez passadas e acertasse a cabeça do alvo. A garota controlou sua respiração, mirou o lugar onde queria que a flecha transpassasse e tencionara a corda do arco até o seu limite. Esperou dois segundos para o vento virar na direção que precisava e soltara, fazendo o feno voar. Acertara no meio da cabeça e caso se tratasse de uma pessoa de carne e osso teria perfurado sua testa. Anis lhe deu um pequeno sorriso e disse para a turma que era isso que estivera tentando ensinar a eles durante toda a primavera. Sentiu os olhares de ódio assim que terminara de falar. Mas não tinha ideia de como era odiada até que fora encurralada pela primeira vez.

Foi na armaria. Estava carregando a lança até o suporte de madeira depois de uma aula especialmente frustrante, o empurrão veio de trás e quase a fez cair.

- Oh – disse uma voz, fingindo surpresa – A pequena prodígio.

Conhecia o dono daquela voz e até isso era mais do que seria o ideal. Lamar Branwen era o primogênito de uma casa antiga e em decadência. Apostaram no lado errado em diversos conflitos e apenas haviam sido poupados porque eram ávidos em dobrar seus joelhos. Tinham sua fortaleza em algum lugar nas fronteiras da floresta de Wrie, ao sul, e tão pouco poder econômico ou bruto que a única coisa que seus orgulhosos componentes podiam fazer era se apegar a um nome quase tão antigo quanto sua glória.

- Me deixe em paz Lamar. – Lyvlin viu o pequeno grupo de admiradores que seguiam o brutamonte como cachorrinhos e soube que isso não aconteceria.

Lamar riu coisa que fazia com frequência quando seu pequeno cérebro não sabia o que fazer. Era louro e de ombros largos, seus braços eram fortes e não tinham nenhum problema com a lança pesada. Seu único desafio era quando tinha que usar a cabeça para resolver qualquer coisa por isso, Lyvlin imaginava, encontrava o método de resolução preferido em seus punhos fechados.

- Minhas botas precisam de alguma limpeza. – falou por fim, esfregando a sujeira da sola de seu calçado nas pedras lisas do chão – Achei que poderia me ajudar nisso.

- Se quer manter suas botas limpas deveria passar menos tempo em um chiqueiro. – devolveu a garota, dando de ombros. Guardou a lança e ouviu o riso contido do grupo de admiradores, depois passos e um grito cheio de raiva.

Esquivou-se do soco no momento certo e se virou para encarar o rapaz duas cabeças mais alto. Era grande e musculoso. Estava irritado. Sua pequena cabeça começava a se tingir de rubro.

- Se quer mesmo se envergonhar ainda mais. – provocou porque sabia que Lamar não pensava enquanto lutava e se conseguisse não fazê-lo pensar antes de se jogar sobre ela talvez teria uma chance. Ou talvez receberia a maior surra de sua vida. Afastou o suor de seus olhos e o encarou determinada – Apenas não chore muito.

O rapaz atacou numa mistura de ódio cego e força, Lyvlin desviou e conseguiu atingir suas costelas. Lamar arregalou os olhos e tentou encher os pulmões de ar, a garota se afastou.

- Ela é rápida. – disse um dos rapazes. Trigo era como o chamavam. Por ser reto, comprido e louro – Lamar talvez seja melhor –

- Cale essa merda que você chama de boca! – vociferou Lamar, erguendo-se – Essa vadia vai aprender a respeitar alguém superior.

- Tente. – jogou o desafio.

E Lamar veio tão cego de raiva que Lyvlin conseguiu passar por ele fazendo uma finta para o lado. O atingiu na nuca, fazendo-o gritar de dor e se virar num redemoinho cego. Antes que conseguisse fazer qualquer movimento Lyvlin lhe deu um murro no nariz e outro na barriga que o fez se curvar arfando.

- A parte ruim de lutar apenas contra serviçais a vida inteira. – ela arquejou, colocando as mãos nos quadris – É que não é uma luta de verdade quando o outro lado tem medo de ser torturado caso use toda sua força.

Deixou a armaria seguida pelo silêncio. No dia seguinte não vira Lamar, mas desde então quando seus olhos se encontravam nos treinos a garota soube que a luta ainda não havia terminado. Lamar se recuperava, não dos machucados, mas do orgulho ferido. E acumulava ódio. A procuraria quando se sentisse pronto e Lyvlin sabia que também tinha que fazer os seus preparativos.

Esforçava-se em dobro todos os dias. Comia, treinava e dormia. As poucas palavras que trocava eram para Brian que todas as noites lhe trazia o que precisava para cuidar de suas feridas novas, pois Dardan não permitia que iniciantes fossem curados por magia.

- É para sentirem o que significa não serem rápidos o bastante. – ele falara através da barba pontiaguda – Sintam o corpo protestando enquanto procuram a posição menos desconfortável para dormir, sintam a cabeça pulsando por causa de um golpe que não encontrou bloqueio e sintam a agonia de se levantarem na manhã seguinte. Sintam e aprendam.

Lyvlin aprendeu a lição rápido.

Na primeira semana não vira Raoul nem Ezra. Ezra porque Lyvlin não tinha tempo algum para escapar da cidadela, nem forças para tentar passar despercebida pelos guardas durante a noite. Segurança havia sido reforçada ao longo de todo o Monte do Rei, especialmente ao redor da Academia. Enquanto observava guardas fazendo a patrulha segurando tochas para espantar a escuridão da noite Lyvlin pensou se ela não fora um dos motivos. Isso lhe dava certo orgulho, que durava até ter que refazer as bandagens ao redor das mãos queimadas e cheias de bolhas e passar unguentos que continuavam misteriosamente aparecendo em seu quarto quando voltava dos treinamentos. Raoul deveria estar atrás disso, Brian também.

O membro da guarda real estava atarefado demais com suas tarefas da coroa. Uma caravana viera de Rattra trazendo um membro da família que agora regia aquela região. Mehalia era filha de lorde Valerin e trazia palavras de preocupação ao rei. Contou que não haviam recebido palavra de qualquer um de seus vassalos até uma nuvem de corvos cobrir o céu, trazendo mensagens desesperadoras sobre ataques ao longo de toda a costa. Era negra como os marinheiros do cais, alta e de postura reta. Sua face justa tão bonita e serena que fazia com que todos ao redor não pudessem fazer outra coisa se não beber cada palavra que deixava seus lábios cheios. Lyvlin a vira apenas uma vez, no pátio da cidadela. Quando puxou a cortina dourada da liteira o sol bateu sobre os cabelos marfim, refletindo os adornos de pedras preciosas e ouro que coroavam sua cabeça. Qualquer preocupação com corvos foi esquecida rápido demais agora que uma distração melhor e mais agradável havia chegado à cidade. Lyvlin não pôde culpá-los. Toda a tropa de serviçais do Monte do Rei, cavaleiros menores e pajens trabalharam em conjunto para tirar todas as notícias das pernas das aves. Lyvlin sabia apenas o que se comentava nos corredores, as fofocas falavam de algo muito parecido com o que Mehalia contara.

Dezenas de mensagens dos mesmos senhores e senhoras espalhados ao longo do reino. Falavam de ataques de grupos de ladrões cada vez mais organizados, hemeristas no norte, batedores que nunca regressaram do deserto de Alkaid e a perda da localização do grupo de Namtar que reinava aquele reino hostil. Mensagens urgentes de Rattra alarmavam o rei sobre navios piratas que saqueavam vilas de pescadores e pequenas cidades que não tinham proteção de ninguém. As mais pessimistas diziam que aqueles piratas ostentavam o símbolo do senhor do leste Wodan em suas velas, o crânio de lobo branco sobre fundo vermelho sangue. Eram novidades pouco alentadoras que promoveram intermináveis sessões do conselho do rei e até levou a uma incomum reunião em conjunto com o conselho da Academia.

- O que importa o que cada uma desses pedaços de pergaminho velho diz. – comentou um o ferreiro para seu aprendiz quando Lyvlin lhe fez uma visita para perguntar sobre a confecção de uma cota de malha nova – Tudo o que aquelas malditas aves trouxeram pode ser resumido em “socorro!”.

- E você acha que o socorro virá? - quis saber o aprendiz magricela.

- “Senhor” – corrigiu o homem – Ou acerto seu dedo de novo. O socorro virá. – falou simplesmente – Ou esquece que aqueles bichos nojentos trouxeram também algumas notícias boas?

Sim. Pensou Lyvlin vendo o aprendiz corar. O príncipe está retornando.

Osric se certificara de confirmar se as mensagens sobre seu filho eram verdade. E logo descobriu-se que sim. Que a comotiva do príncipe-herdeiro não havia apenas deixado o norte depois de resistir a uma última investida do inimigo, como também já se encontrava depois da fortaleza de Breasal. Lyvlin descobriu naquelas semanas que Gilbert estivera errado quando lhe dissera que Darian era o único filho de Osric e Aiyanna de Lyle. Darian não passava do filho caçula e era o único que permanecia em Vassand.

O primogênito dos Oskias fora Coran um cavaleiro formidável e príncipe adorado tanto pela coroa quando pelo povo. Os garotos ainda brincavam que eram o príncipe Branco montado em seu cavalo de guerra famoso enquanto esmagava a investida dos inimigos anos depois de terem sido expulsos do sul. Havia perdido a vida em um acidente de caça, o que despertou o interesse de Lyvlin de imediato. Não achava possível que um príncipe de sua perícia fosse confundido com a presa ou esmagado por um javali. Pensar nas presas de um javali a fez se relembrar do ataque que sofrera e como poderosas foram as investidas da gigantesca besta. Imaginou que até os grandes não estão livres de sofrerem acidentes azarentos, mas resolveu que perguntaria mais sobre Coran quando tivesse feito as pazes com Raoul.

O filho do meio dos Oskias ainda vivia. Era na verdade uma mulher. Tudo o que conseguiu descobrir sobre Nasreen Oskias a fez colocar a moça em grande estima. Era alguns anos mais velha que seu irmão caçula e fora mandada a Lyle, pois se recusara a se tornar herdeira depois que Coran perdera a vida e não tinha intenção alguma de servir como vaca da paz em uma possível aliança com Wodan. Usou o luto da mãe e o desespero do pai para escapar entre suas mãos, selando seu próprio destino ao anunciar dois dias depois do acidente que se juntaria a Irmandade Silenciosa. A história da organização se mesclava com lendas. O que era sabido é que contava com os melhores lutadores do continente e que entravam em combate com apenas o próprio corpo como arma. Em Lyle ajudava a coroa, mas não eram subjugada a ela e recebia candidatos de todas as classes em seus ensinamentos. Filhos de reis eram iniciados ao lado de ladrões e juntos proferiam o juramento de jamais tomar qualquer posse, unir-se em matrimônio ou ter herdeiros. Era um fim estranho para a mulher que poderia ter Vassand sobre seu comando, mas ingressar na Irmandade também era uma grande honra. As más línguas diziam que os pais haviam aceito a proposta de Nasreen porque a viam como uma ameaça ao direito de Darian de usar a coroa algum dia. Nasreen era considerada selvagem demais para a corte, mas o povo a amava ainda mais que a Coran.

- Talvez seu, ah, avô – comentou Desmera em uma das tardes em que tivera sorte de encontrá-la passeando pelos jardins da rainha – Quis considerar apenas o filho que é de maior importância para o rei e a rainha. Nasreen abriu mão de sua linhagem e Coran dorme nos salões dos Antigos há mais de dez anos. De certa forma Darian é o grande nome para o futuro da família e nunca se esqueça, é o herdeiro. Perdê-lo seria uma tragédia que o reino não poderia suportar.

- O reino. – quis saber Lyvlin – Ou seus pais?

- O reino. – repetiu Desmera olhando para o céu limpo, cerrando os olhos em reflexo ao sol – Darian pode não ter nascido como herdeiro de Vassand, mas é o melhor herdeiro que o reino poderia ter.

- Você acha que será aclamado? - perguntou Lyvlin cruzando os braços em cima do muro baixo que rodeava externamente a cidadela. Havia passado por uma manhã longa de treinos, mas Dardan lhe dera a tarde de folga. A primeira em três semanas.

Desmera observava o cais, lá embaixo os navios eram nada mais que barcos de papel. Trajava uma túnica azul de seda amarrada na cintura e usava os cabelos trançados de lado. Estava muito parecida com as aias que Mehalia trouxera da região seca do norte. A comitiva da princesa de Rattra contara com tantas damas de companhia quanto soldados que a escoltavam para onde quer que fosse. Não confia na corte. Percebeu Lyvlin ao ser empurrado rigidamente para o lado por um dos homens tonsurados quando cruzara seu caminho quando pela manhã.

A jovem suspirou.

- Não sei. – respondeu por fim, entrelaçando as mãos sobre o muro quente – Darian recebeu lições sobre tudo que um rei precisa saber e aprendeu com rapidez e empenho. Mas com todos estes conflitos surgindo... As pessoas na corte dizem que não é um rei para tempos difíceis. Nas ruas é amado desde o dia em que foi apresentado como príncipe herdeiro. Foi pouco depois de eu chegar a Beltring, deveria ter nove anos. Eu lembro das pétalas sendo jogadas de todas as casas durante a procissão, dos gritos de júbilo e do coro que gritava o seu nome. – sorriu da recordação – Ele parecia assustado com todo o movimento, mas manteve a cabeça erguida e não a baixou desde então. Estou curiosa para o que achará dele uma vez que alcance Beltring. Dizem que pode ser a qualquer momento agora.

- Eu preferiria ouvir mais sobre Nasreen. – uma fragata rattriana chegava ao porto, as grandes velas enroladas nos mastros. Decidiu que convidaria Ezra para observar navios com ela algum dia.

Desmera riu, cruzando os braços atrás das costas.

- Eu imagino que ela seria sua preferida. Devo ir, Adisa e eu temos uma reunião com o conselho. Parece que nossas horas vagas terminaram.

- Vão partir? - a pergunta saiu mais urgente que pretendia.

- Ainda não sei Lyvlin. – pousou a mão sobre seu ombro por um momento – Mas não se preocupe, caso seja mesmo uma missão e não uma rela sobre o comportamento incendiário de Adisa não partiremos até o príncipe voltar. E sem nos despedirmos de você.

Lyvlin tentou sorrir, mas enquanto Desmera voltava para a ponte sentiu-se extremamente só. Debruçou-se sobre o muro, sentindo o calor acumulado na pedra aquecer seu tronco. Encarou o rochedo que despencava íngreme até o cais, o vento assobiando em seus ouvidos e o sol esquentando seus cabelos.

O grito do falcão veio do alto e um segundo depois as garras de Astaroth passaram zunindo pelas mechas de seu cabelo. Lyvlin se empurrou para trás e jogou a cabeça na nuca. A ave fazia círculos cada vez menores no ar.

- Ave estúpida! – riu para o alto e Astaroth respondeu com um guincho agudo.

O falcão havia de alguma forma se afeiçoado a sua presença e parecia gostar de acompanhá-la pelas suas andanças pelo Monte do Rei. Era provável que com Casimir longe não tinha muito que fazer, permanecendo por perto em busca de algum petisco. Era isso que procurava quando pousou no arenito à sua frente e estalou o bico em exigência.

- Sim, sim. – respondeu, retirando um pedaço de carne salgada de um saquinho de couro pendurado em seu cinto – Duvido que seu dono lhe dê esse tipo de mordomia.

Estalou o bico novamente, Lyvlin gostava de pensar que agradecia. Mas assim que chegou perto o suficiente arrancou a carne de sua mão e alçou voo. É a recompensa pela gentileza. Imaginou vendo a ave descer em direção à cidade baixa.

Havia passado pela ponte e iria tentar conversar com Raoul quando duas mãos se fecharam em seus ombros e a puxaram para dentro dos estábulos. Foi jogada no chão de madeira coberto por tufos de feno e sentiu o sangue em sua boca antes de levantar. Quando o fez encarou Lamar que se aprumava o máximo que seu tamanho permitia, um sorriso maligno de desenhava nos lábios finos.

Lyvlin olhou ao redor. Nico e Dickon não estavam ali trabalhando, nenhum cavalariço estava à vista. Ninguém além de Lamar e seu grupo de fãs. Não era louca, tampouco suicida. Virou-se para correr, mas braços a agarram e empurraram de volta.

- Nada de fugas Lyvlin. Hoje somos apenas você e eu.

- E sua pequena comitiva de trolls. – disse cuspindo aos pés de Trigo. Esperava coisa melhor dele – Não aguenta me enfrentar sozinho?

- Eles não farão nada sua vaca. Apenas servirão de cordas.

A seguraram antes que pudesse se mexer. Imobilizaram seus braços e enfiaram uma tira de pano em sua boca, a amarrando atrás de sua cabeça com força. Quando Lamar finalmente veio levou um chute no queixo.

- As pernas! – gritou furioso, saindo de alcance – Seus idiotas! As pernas também!

E então a surra começou. Dois socos na barriga expulsaram o ar de seus pulmões e fez o sangue subir-lhe à garganta. Mas não podia cuspir. O gosto férreo tomou conta de sua boca. Mexia-se o tempo inteiro, lutando contra as mãos que se cravavam em sua pele e acompanhava cada golpe imaginando que talvez se soubesse onde seria plantado poderia se preparar. Não podia. Seu corpo quis se curvar quando o terceiro soco veio, queria proteger-se. E então os dedos de Lamar ergueram o queixo da garota.

- Um rosto bonitinho. – zombou – Pena que não ficará assim por muito tempo.

A acertou duas vezes fazendo sua cabeça ser tomada por uma dor aguda que não cessou entre os intervalos dos golpes. Sua vista começava a embaçar. Sangue molhou seu olho direito, quente e viscoso.

- Lamar – murmurou um deles em tom de dúvida. Seria Trigo? - Acho que é suficiente.

- Cordas não falam! – berrou o rapaz de volta. Estava fora de si. Cada novo golpe parecia enchê-lo de satisfação e ajudava-o a chegar ao auge do êxtase vingativo.

Mas mesmo assim sentiu que as cordas a soltavam lentamente. Primeiro veio uma diminuição na pressão que a imobilizava, dois golpes depois dois pares de mão a soltaram, deixando-a cair de cara no chão.

- Lamar! Chega! – esse definitivamente era Trigo – Vão nos matar se descobrirem!

- Não vão descobrir se ela não puder falar. – respondeu Lamar – Se são moças demais para assistir vão embora!

E foi isso que fizeram. Correram para longe, os passos batendo contra o assoalho levaram a última esperança que a garota tinha que alguém interrompesse aquela loucura. Mas agora já não eram suas mãos que a seguravam. Eram a dor e coisas quebradas, rasgadas, cortadas. Tentou se encolher, mas a bota de Lamar encontrou as suas mãos que envolviam a barriga numa tentativa débil de se proteger. A chutou duas... Talvez três vezes. Lyvlin já não tentava gritar. Lágrimas teimavam em deixar seus olhos, mas tentava escondê-las em meio ao cabelo que cobria seu rosto. Preferia morrer ao dá-lo essa última alegria.

- Agora ao grande final. Apenas não chore muito. – anunciou o rapaz antes de mudar sua posição e ficar em frente aos seus olhos. Lyvlin podia ver suas botas em meio ao nevoeiro que tomava conta de sua visão. Sentia a madeira contra a bochecha cortada e uma lágrima solitária finalmente conseguiu escapar. Não a cabeça. Conseguiu pensar antes da bota deixar o chão.