As Chamas da Vingança

Um Servo da Força


Quase um mês de viagem depois, os irmãos Solaris chegam na fronteira de Ahlen, junto com uma caravana de mercadores que iria para Tyrondir, o reino vizinho, que fica um passo antes na viagem. O líder do grupo disse que acolheriam eles até chegarem ao seu destino final do grupo, mas que não entrariam em Ahlen junto com os irmãos. O Reino da Intriga não era muito bem visitado por caravanas ingênuas de comércio. Somente os comerciantes nascidos em Ahlen ou que já possuíam bastante experiência tinham coragem de vender e comprar produtos por lá.

Uma vez dentro de Ahlen, os dois irmãos decidiram ir direto para a capital. Os boatos sobre Thartann não eram nada animadores. Tudo que se ouvia de lá era que golpes eram dados, emboscadas eram feitas no meio das ruas e os becos da cidade se tornavam quartos de tortura e matança a céu aberto, durante as noites. Além disso, Ahlen era governado por um nobre que tinha seu posto invejado por três grandes famílias nobres inteiras, incluindo a própria família do regente. Ali, todos queriam o poder, independente dos riscos e dos custos.

Quase imediatamente, Kurt foi procurar uma estalagem, um lugar onde poderia descansar, beber e dormir. Ele realmente precisava disso. Ryer seguiu o irmão e eles facilmente encontraram uma taverna. Kurt foi rápido em puxar assunto com o taverneiro.

– Me traga uma caneca de hidromel, rápido! – Era Kurt, na tentativa de intimidar o homem atrás do balcão.

– Não ligue pro meu irmão, ele fala assim, mas no fundo é uma boa pessoa. – Disse Ryer, vendo a expressão do homem, antes que o taverneiro expulsasse os dois dali.

– Porque fez isso? Agora todos aqui vão pensar que eu sou um fraco, seu idiota! – Falou Kurt, depois que o dono do lugar foi buscar a caneca de hidromel.

– Apenas evite arranjar problemas. Somos estrangeiros desconhecidos aqui. Não seria difícil nos enganar. – Disse Ryer, com cuidado para que apenas o irmão ouvisse.

– Aqui sua bebida. Espero que possa pagar por isso. Deseja algo mais? – Disse o taverneiro, impaciente.

Kurt logo percebeu que havia quatro soldados do exército de Ahlen na taverna tomando vinho e foi falar com eles em busca de mais detalhes sobre o paradeiro do tal dominador de chamas. Era sempre um risco um brutamonte mal educado conversar com quatro soldados reais, mas Ryer evitou entrar em pânico e se voltou para o taverneiro.

– Quanto custa um quarto? Quero apenas uma noite, para mim e meu irmão. – Disse Ryer, torcendo pra que o preço fosse baixo.

– Cem tibares. A melhor taverna da região não poderia cobrar menos. – Falou o taverneiro, orgulhoso de seu estabelecimento.

Kurt estava voltando, sem sucesso, de sua tentativa de usar a lábia para conseguir mais informações sobre o alvo. Pelo visto, tudo que ele sabia dizer eram ameaças e gritos de guerra.

– Cem tibares? Você acha que eu cago moedas? – Era Kurt, indignado com o preço cobrado.

– Não posso descer mais o preço. Quase ninguém passa por aqui. – Protestou o taverneiro.

– Ouça – Kurt sacou sua foice curta furtivamente, para que ninguém percebesse, na tentativa de intimidar o taverneiro. – Não tenho isso tudo, posso oferecer no máximo cinquenta tibares.

– Se não tem o dinheiro, pague a cerveja e saia daqui antes que os guardas percebam que você aponta uma arma pra um humilde trabalhador, aventureiro miserável.

Kurt e Ryer olharam para os guardas que estavam bêbados e gargalhavam como se estivessem urrando para o teto.

– Não me importo que eles vejam isso, mas me importo com o seu maldito preço. Já disse, cinquenta tibares ou nada!

– Tudo bem então, mas vocês dormirão num quarto de casal, onde poderão foder um ao outro enquanto eu fico aqui bebendo e sendo servido pelas meretrizes que visitam essa casa todas as noites.

Kurt já estava quase pulando o balcão, mas Ryer o deteve.

– Já conseguimos o que queríamos. Não precisa bater no cara. Além do mais, não queremos chamar a atenção. – Disse Ryer tentando controlar o irmão.

Após Kurt se acalmar, muitas canecas foram trazidas aos dois enquanto Tenebra, a Deusa das Trevas, cobria Arton com seu manto de estrelas e expulsava a face do Vigilante para que ele pudesse ressurgir no dia seguinte e dar uma visão esplêndida da face de Azgher de novo para todos os habitantes de Arton, como era feito todo dia.

Após muitas horas de bebedeiras e gargalhadas que fariam qualquer um se assustar, as meretrizes chegaram, mas não antes de Ryer se retirar para o quarto alugado e começar o seu estudo diário sobre as magias. O irmão se foi para o quarto junto com ele para deixar as mochilas lá e montar uma armadilha na porta. Caso alguém entrasse no quarto, tropeçaria numa corda quase invisível e seria atingido por uma rocha tão grande que faria o intruso desmaiar no exato momento que a armadilha fosse ativada.

Quando terminou de montar a armadilha, o irmão já tinha terminado os estudos e já estava dormindo. Kurt decidiu sair para explorar as ruas e becos da cidade e verificar se os boatos sobre as noites de Ahlen eram verdadeiros.

Ao descer as escadas, Kurt percebeu o quanto havia demorado em terminar de montar a armadilha. A estalagem já estava vazia e não havia mais ninguém atrás do balcão. Era uma noite tranquila e ele sabia que deveria aproveitar isso, porque as noites tranquilas estavam para acabar logo, afinal ele havia retornado para a vida de aventureiro.

Depois de refletir sobre isso, ele decidiu finalmente abrir a porta da estalagem e sair para sentir o frio que existia lá fora e também para ver que tipos de horrores esperavam por ele lá fora. Ele nunca admitiria, mas ansiava por algum inimigo em quem ele pudesse descontar todo o tempo em que fora pacífico. Ele ansiava por batalhas, por sangue, por morte.

– Que Thyatis me ajude com o que eu posso encontrar daqui em diante. – Disse, enquanto abria a porta.

Ele nunca havia participado da igreja de Thyatis e nem era nenhum paladino ou clérigo que servia ao Deus da Ressurreição, mas isso não o impedia de ser devoto ao deus. Ele não pedia e nem acreditava que Thyatis lhe daria alguma benção por isso, mas assim como ele, Kurt acreditava na mudança, no destino previsto e principalmente no poder das chamas.

Ele saiu da estalagem e por um momento conseguiu sentir a cidade como se fizesse parte dela. Por um mísero segundo, ele conseguiu se sentir livre de um jeito que ele não se sentia há muito tempo. Esse sentimento o lembrava de quando ele havia saído das montanhas uivantes junto com seu irmão e ido em direção ao reino de Wynlla para que ele pudesse realizar seu desejo de aprender magia.

A paz durou pouco. Logo ele percebeu como a cidade era e confirmou todos os boatos que havia ouvido sobre as noites de Ahlen. Em cada beco ouvia-se um som diferente, mas todos bem discretos. Um estupro, uma briga de gangues, um acerto de contas, um espancamento e um grito de desespero de um homem que voava a três metros de altura.

Do mesmo lugar que o homem voador saiu, surgiu um minotauro com outro homem pendurado pela perna em seu chifre.

– Malditos! O que vocês têm contra simples minotauros? Tauron deveria massacrar todos vocês! – Disse a fera.

– O que houve? – Perguntou Kurt, aturdido.

– Esses malditos são todos retardados! Eu vim aqui só pra comprar escravos porque disseram que existiam bons mercadores de escravos por aqui, mas esses babacas acharam que só porque eu não sou humano, não poderia entrar na cidade. Agora eles só devem achar que era melhor não ter dito nada. Fracotes! – Explicou o minotauro.

– Entendo. – Disse Kurt, achando melhor não discordar. – Qual o seu nome?

– Me chamo Leônidas, mas as pessoas me chamam de Leo. – Falou o clérigo de Tauron, o Deus da Força e da Coragem. – E você?

– Sou Kurt. Kurt Solaris. – Ele tentava ser amigável, porque sabia que se tivesse que lutar contra aquele cara, a briga teria um custo muito alto e ele tinha um objetivo bem maior do que deixar alguns hematomas no couro de um homem-boi. – Quer tomar alguma bebida?

– Eis um cara que me entende bem! – Gargalhou o minotauro. – Onde podemos encontrar hidromel de qualidade nesse lixo de cidade?

– É só me seguir. – Respondeu Kurt.

Após levar o minotauro pra dentro da estalagem, Kurt gritou para que o taverneiro os servisse. Ninguém respondeu. Kurt gritou de novo. Nada. Leônidas perdeu a paciência e deu um urro que poderia ter acordado toda a cidade. Um grito tão alto que o taverneiro não foi o único a ouvir. Ryer chegou no salão principal junto com o taverneiro e três grandes cornos de hidromel foram levados até eles. Depois o taverneiro se retirou.

– O que trás vocês à esse reino podre? – Perguntou o minotauro.

– É uma longa história, mas posso contar se você tiver tempo. – Disse Ryer.

Após contar toda a história de sua cicatriz e das partes mecânicas e mágicas de Kurt, o minotauro decidiu que iria ajudá-los. Ele simplesmente não podia não fazer nada sobre isso. Como um nativo do reino de Tapista, o reino dos minotauros, e clérigo do poderoso Tauron, ele não podia suportar um golpe tão baixo e fraco. Uma emboscada feita pra sequestrar alguém em troca de dinheiro. Pior ainda: uma emboscada feita para um amigo.

Ele mal pôde terminar a caneca quando o taverneiro surgiu com trinta camponeses equipados de tochas, foices, ancinhos e até algumas espadas, gritando “MATEM O MONSTRO!”.

– Eles falam de mim? – Perguntou o minotauro, já sacando sua maça de batalha, que era tão leve e versátil quanto mortal.

– Parece que sim. – Respondeu Kurt, enquanto sacava a sua foice com uma das mãos e envolvia o outro braço com fogo que parecia conjurado, mas que nada tinha a ver com magia.

O barulho dos camponeses se reunindo acordou Ryer, que tinha um sono muito leve. Ao olhar pela janela, viu aquela tropa de milicianos e foi correndo procurar o irmão. Já era tarde demais quando o mago o encontrara acompanhado de um minotauro.

– Cuidem deles. Eu vou lá em cima pegar nossas mochilas. – Ordenou Ryer, enquanto corria para o quarto onde estavam os pertences dele e do irmão.

Cinco camponeses armados já haviam passado pela porta dos fundos da estalagem quando uma bola de fogo saiu de uma das mãos de Kurt e explodiu a passagem, matando instantaneamente outros cinco civis.

Leo arremessou a sua maça de batalha em direção a um dos civis que conseguiram passar. O camponês, por sua vez, só conseguiu receber o golpe no rosto e cair morto no chão. Mais um objeto foi arremessado pelo minotauro, dessa vez um banco, que bateu na costela de outro civil e provocou um belo grito de dor que era melodia harmônica para os ouvidos dos dois guerreiros. A parede já era totalmente consumida pelo fogo de Kurt que se espalhou rápido pelas paredes de madeira da estalagem. Leo simplesmente correu e chifrou os três restantes, empurrando e prendendo os inimigos na parede para que pegassem fogo e queimassem até a morte.

Enquanto isso, Ryer já fugia pela janela do quarto, julgando que o salão principal estivesse violento demais para ele. O taverneiro entrou correndo pela porta do quarto gritando pelo mago para que ele não escapasse, mas só conseguiu ativar a armadilha e cair desacordado no chão em frente à porta com a pancada que levou na cabeça.

Ao pular a janela, Ryer viu que a situação não era nada promissora. Leo e Kurt estavam em frente à estalagem, cercados por vinte camponeses armados e iluminados por algumas tochas.

– Segurem eles contra a taverna! Os guardas estão chegando! – Ouviu-se a voz de um dos camponeses.

Era verdade. Ryer viu cinco soldados da capital chegando com pesadas armaduras de metal e grandes escudos e espadas. Era a chance dele. Ryer se aproximou dos guardas sem ser visto e usou tudo que ele sabia usar nessas horas: magia. Ele conseguiu entrar na cabeça de todos os cinco soldados e mudou um pouco suas intenções.

– Os guardas chegaram! – Ouviu-se a voz esperançosa de outra pessoa no meio daquele pequeno aglomerado, logo antes de ela ser decapitada pela espada de um dos guardas e ter a sua cabeça arremessada para o alto como sinal de aviso para os outros.

– Por aqui! – Gritou Ryer enquanto os civis estavam em estado de choque.

Foi o suficiente para Leônidas entender. Ele saiu correndo e chifrando tudo que ousava não sair de sua frente, enquanto Kurt corria logo atrás dele, apagando as chamas de todas as tochas que haviam pelo caminho, deixando tudo no escuro, com medo de que o efeito da magia de Ryer acabasse antes do tempo desejado.

– Essa foi por pouco. – Disse Kurt, animado pela emoção de voltar às batalhas depois de tanto tempo.

– Temos que procurar um lugar pra dormir. – Falou Ryer. – Felizmente, eu tenho um mapa.

Dito isso, os aventureiros andaram até o rio Yrlanyadish, que corria a leste da cidade de Thartann, sempre tomando cuidado para que a forma monstruosa e assustadora de Leônidas não fosse vista. Para a sorte deles, não era difícil se esconder na noite de Ahlen. A cidade parecia feita para esconder malfeitores e fugitivos. Cada beco parecia ter uma infinidade de escuridão e todos foram explorados naquela noite.

Por fim, chegaram na margem do rio. Kurt achou melhor cruzar a margem.

– Temos que ir para a outra margem. – Disse Kurt, examinando o mapa do irmão. – Desse lado fica o vilarejo de Midron e, mais à frente, existe outro vilarejo chamado Shallank’rom. Não queremos problemas com nenhum dos dois.

Todos aceitaram a sugestão do guerreiro. Tudo o que eles queriam era dormir e não existia nada melhor do que dormir em segurança.