Acordaram no dia seguinte com o dia já claro e uma fogueira em brasas ainda ardendo. Leônidas foi o primeiro a acordar e foi tomar um banho no rio enquanto esperava que seus recentes amigos despertassem. Chegou perto da margem, molhou os pés, ou melhor, as patas. Foi indo mais para o fundo conforme percebia que a corrente do rio não era suficiente para arrastar toda a massa muscular que compunha o corpo dele.

– Droga! – Era Ryer gritando do acampamento.

A frustração era quase palpável enquanto os irmãos Solaris olhavam para os pedaços de pergaminhos manchados que estavam estendidos no chão, em frente à eles.

Leo terminou o que estava fazendo, saiu do rio, vestiu sua inseparável armadura, que ele só tirava nos casos de precisar de um banho, e foi verificar o que havia acontecido. Quando chegou de novo no acampamento, Kurt e Ryer estavam olhando para o mapa que tinham. Borrado, um pouco rasgado e completamente úmido, esse era o estado daquele pergaminho que descrevia cada pedaço de todo o Arton.

– Agora nunca saberemos pra que lado fica Valkaria! – Disse Kurt, indignado.

– Não tem erro, basta seguir os rios sempre na margem leste e veremos uma enorme estátua da deusa. – Respondeu Ryer – Não há chance da gente se perder, ainda mais tendo um minotauro no grupo.

– Seu idiota, não sabemos até quando ele vai nos acompanhar! Tiramos ele daquele lixo interesseiro que é Thartann, só isso. Ele não é obrigado a nos ajudar. – Falou Kurt, desacreditado da inocência do irmão.

– Vou ajudar vocês – Era Leo – Devo algo por me ajudarem a sair de lá seguro. Além disso, vocês precisam de alguém que possa guiá-los.

– Falando nisso, você não nos contou como foi parar em Ahlen. – Disse Ryer, curioso. – Só sabemos que você estava procurando por escravos.

– Eu disse que vou ajudá-los, nada mais. – Disse Leo – Não acho que vocês precisem sabem muito do meu passado.

– Ah, qual é, vamos lá! – Insistiu o mago – Não vamos zombar de você ou algo do tipo, eu prometo.

– Já disse, tudo que vocês precisam saber é que meu nome é Leônidas e que eu sou um minotauro de Tapista. Nada mais.

– Tudo bem então, mas vamos acabar descobrindo. – Brincou o mago – Já que estamos todos de pé, bem acordados e preparados para a batalha, vamos em frente. Basta seguir o rio.

Algumas horas de caminhada depois, os aventureiros se depararam com uma floresta surgindo no horizonte. O rio continuava através dela e eles sabiam de alguma forma que aquela floresta era a saída de Ahlen e uma das portas de entrada para o reino capital de Arton, Deheon.

O Reino Capital era uma maravilha para qualquer aventureiro que passasse por ali. Os habitantes de Deheon acham que podem sobrepujar todo e qualquer desafio, o que faz com que quase todos queiram se tornar aventureiros épicos que cumpriram grandes missões e tiveram seus nomes gravados na história. Ali, os contos de heróis que cometeram feitos incríveis e enriqueceram da noite pro dia são apenas objetivos de vida para cada garoto que gasta muitas horas do dia treinando suas estratégias de batalha ou testando seus conhecimentos sobre as mais variadas criaturas de Arton e dos extremos perigos que eles poderiam vir a enfrentar em uma aventura.

A capital de Deheon também é a capital de todo o Arton. A cidade recebeu o nome da deusa que habita nela, mesmo que aprisionada na forma de uma estátua de pedra gigante. Valkaria, a deusa dos humanos, a deusa da ambição, a capital de Arton e o centro do mundo.

Por mais que Deheon fosse o lugar onde todo aventureiro desejava encerrar seus dias, já velho, rico e com infinitas histórias para contar para seus filhos e netos enquanto se vangloriava dos atos que fora capaz de cumprir enquanto a juventude ainda habitava seu corpo, os aventureiros sabiam que deveriam manter seu objetivo em mente. Aquele não era o último reino pelo qual passariam, todos sabiam disso. Ryer e Kurt desejavam poder voltar para o reino das Montanhas Uivantes, onde seus pais ainda moravam, enquanto Leo queria voltar para onde ele poderia ser apenas mais um cidadão, Tapista, o reino dos minotauros.

Apesar de todos os seus desejos, a última coisa que queriam era descobrir que o tal sequestrador estava se dirigindo ao reino deles e que seus amigos e parentes agora corriam altos riscos de serem pegos. O dominador das chamas, esse era o alvo. Não podiam se esquecer disso. Só de pensar em poder matar o dominador, o minotauro já sentia seu machado de batalha o chamando, Kurt quase irrompia totalmente em chamas de excitação de batalha e a mente de Ryer não parava de pensar em múltiplos feitiços destrutivos que poderiam matar um batalhão inteiro antes que eles terminassem de dizer “recuar”. Era isso o que eles queriam, um desafio com sabor de suor, sangue e vingança, mas antes disso eles teriam que passar pela floresta que os encarava, já dentro de Deheon.

– Se eu não me engano, esse lugar estava marcado no mapa como “Mata dos Galhos Partidos”. – Disse Ryer, quebrando o gelo.

– Como você consegue se lembrar desses detalhes? – Perguntou Leo.

– Você se surpreenderia com a memória dele – Era Kurt – Parece que ele se afundou tanto nos livros que ele tem todos os feitiços que existem na cabeça. Acho que ele ainda se lembra do primeiro feitiço que usou.

– Claro que lembro! Era um simples míssil arcano, nada de muito complicado. – Respondeu Ryer.

Entraram na floresta enquanto a face de Azgher mais uma vez dava adeus enquanto o manto da escuridão de Tenebra cobria o céu com estrelas. Andaram mais um pouco orientados pelo barulho do rio, tomando cuidado para não saírem muito de perto da margem para não mudarem de direção e nem chegarem muito perto e não serem atrasados pelo solo traiçoeiro e esburacado.

– Melhor montarmos acampamento de novo. – Sugeriu Leo – Kurt, pegue alguns galhos pra acendermos uma fogueira. Ryer, você domina magias de luz?

– Já sei. O que vai querer que eu ilumine? – Perguntou o mago.

– Meu machado. – Respondeu o clérigo, dizendo que aquilo iria servir para coletar lenha durante a noite, mas a verdade é que ele esperava uma batalha noturna.

O machado de batalha foi iluminado assim que o mago proferiu uma única palavra arcana e começou a emitir uma luz própria que não era muito forte, mas ainda bastava para iluminar uma boa área em volta deles. Leo procurou por algumas pedras entre as folhas secas que cobriam o chão em volta das árvores que os cercavam e fez um círculo pequeno, enquanto Kurt voltava com uma grande quantidade de galhos e arrumava-os dentro do círculo, preparando tudo pra que uma fogueira fosse acesa.

Ryer disse algumas palavras arcanas e fez alguns gestos complicados e então, quando terminou, o ar se expandiu num raio de três metros para todos os lados. Depois foi caçar um coelho. Voltou com três esquilos espetados em uma flecha. Não era bem o que ele queria, mas ainda sim era comestível.

– O ar vai nos avisar se qualquer um entrar aqui. – Disse o mago.

– Mas se o inimigo foi rápido demais, não teremos tempo de reagir e aqui não podemos ver nada se aproximando, por causa da mata fechada. – Argumentou o irmão – Eu pego o primeiro turno de vigia. Tudo bem pra vocês?

– Ok – Disse Ryer.

– Só toma cuidado para não incendiar a floresta toda. – Falou Leo, já se acomodando no chão.

Kurt ficou durante meia hora sentado ao lado da fogueira que aquecia a todos e do machado duplo de batalha do minotauro que ainda brilhava como resultado da magia de Ryer, depois de ficar entediado, subiu em uma das árvores sem ultrapassar os limites da magia do irmão e ficou fazendo malabarismo com bolas de fogo do tamanho dos esquilos que os três tinham acabado de comer, até se lembrar das palavras de Leônidas e parar antes que acontecesse algum acidente e a floresta realmente pegasse fogo.

De repente, o guerreiro ouviu um barulho, sacou a sua foice curta com a mão direita e preparou uma bola de fogo na esquerda. Ruídos de folhas secas sendo pisoteadas chegaram aos ouvidos dele vindos de todos os lugares da floresta. Foi quando ele percebeu que estavam cercados.

– Hey! Acordem e peguem suas armas, a coisa vai esquentar! – Gritou Kurt, sem olhar para os companheiros, já arremessando uma bola de fogo em direção ao lugar de onde vinha o som.

O minotauro se levantou e pegou seu machado brilhante enquanto Ryer juntava as três mochilas num canto para evitar que seus inimigos, fossem quem fossem, levassem seus pertences.

– Mago, se eu sair da área da sua magia ela se desfaz? – Perguntou Leo quase não conseguindo conter a ansiedade de batalha.

– O que? – Ryer precisou de um minuto para pensar. – Claro que não! A magia só se desfaz quando alguém passa de fora pra dentro e ela nos avisa que existem intrusos.

– Era só ter dito “não”. Vamos lá, Tauron, me ajude a matar o que quer que se esconda na escuridão feito um covarde. – Rezou o minotauro.

Leo saiu correndo na direção do som, com seu machado erguido e preparado para partir o que quer que fosse ao meio num só golpe, mas foi interceptado por galhos finos e afiados que eram surpreendentemente resistentes. Ele foi arremessado dois metros para a direita e não conseguiu ver o que o havia atingido. Quando se virou para ver, não havia mais nada lá, apenas folhas secas que se levantaram com a extrema velocidade da corrida do inimigo.

– Tá na hora de parar de brincar! – Gritou Kurt, criando uma bola de fogo que era capaz de iluminar metade de tudo que eles conseguiam ver na floresta.

– Você vai nos matar queimados! – Leo tentou impedi-lo.

A bola de fogo foi se erguendo até chegar tão alto que poderia ser vista tanto de Deheon como de Ahlen e crescendo até ficar quase do tamanho de uma casa de dois andares, depois a grande esfera de fogo explodiu e fez chover chamas sobre toda a floresta em volta deles. Foi então que ele pôde ver seus inimigos.

Eram do tamanho de alces e também muito parecidos, mas havia algumas diferenças. Seu corpo era todo coberto por folhas verdes que faziam barulho enquanto o animal se mexia e sua galhada era literalmente feita de galhos finos e capazes de perfurar qualquer carne, se atingissem de maneira certa.

Kurt saltou da árvore onde estava e aterrissou no solo ao lado do minotauro, depois brandiu a sua foice e correu em direção a um dos animais que estava mirando ele. De longe, Ryer pronunciava umas palavras arcanas e chamava o minotauro para perto de si. Leo foi em direção a Ryer e só teve tempo de ver Kurt indo de encontro ao animal, mas pouco antes de se chocarem, o guerreiro desviou para o lado e cortou as folhas na altura do pescoço num golpe que separaria um alce de verdade em duas partes. No instante em que a lâmina da foice tocou na garganta do animal, a figura se desfez em folhas e galhos esvoaçantes e caiu no chão como se fosse apenas mais uma árvore no outono.

O guerreiro sentiu como se tivesse descoberto o modo de sair da armadilha e ainda matar o seu carrasco, mas estava enganado. Enquanto Kurt pulava na direção de outro animal que participava do ataque, Leo percebeu que as folhas e os galhos caídos no chão estavam se remontando na forma do alce.

– Kurt, ele não morreu! – Gritou o minotauro.

– Então que a chama de Thyatis queime todos eles! – Respondeu o guerreiro enquanto guardava suas armas de aço e erguia suas armas de fogo.

– Ateie fogo na floresta e venha para cá! – Gritou Ryer, que estava parado ao lado da fogueira noturna que o irmão havia feito e já começava com seus gestos e palavras mágicas. Um feitiço complexo estava pra ser feito.

Não obteve sucesso. Kurt estava possuído pela fúria de batalha e não conseguia fazer mais nada além de atear fogo em tudo à sua volta. Leônidas, que já tinha obedecido a ordem do mago, teve que sair de perto de Ryer e trazer Kurt arrastando-o pelos braços, para que ele parasse de alimentar o fogo.

Os inimigos se voltaram para dentro do círculo e vieram correndo, preparados para perfurar os pulmões dos aventureiros com suas galhadas afiadas.

– Rápido, peguem suas mochilas – Gritou Ryer – Não sei se vai dar tempo!

– Droga, vamos morrer – Disse Kurt e amaldiçoou os amigos por não o deixarem atear fogo mais um pouco.

– Estão preparados para irem para o céu? – Brincou Ryer.

– Isso não é algo pra se dizer agora – Rugiu o minotauro.

O mago terminou mais uma palavra arcana enquanto o ar em volta deles explodia, avisando que algum intruso havia penetrado na área que ele havia delimitado. Leo olhou em volta e sentiu alívio por perceber que estava salvo e longe daquela floresta, mas o alívio durou por pouco tempo, pois também percebeu que os três estavam voando por cima da floresta enquanto Kurt soltava bolas de fogo para baixo, na expectativa de espalhar um pouco mais o fogo que ele havia criado. Eles estavam voando. Voando.

Tudo que Leo conseguiu fazer foi entrar em estado de choque e ficar paralisado, sem dizer mais nada e vomitando de tempos em tempos. A famosa fobia de altura que todos os minotauros tinham estava agindo nele mais uma vez.

Quando Kurt finalmente se satisfez, já era dia e a estátua gigante de Valkaria já aparecia no horizonte. Era para lá que eles deveriam ir e era para lá que eles estavam indo, ainda voando. Voando. Kurt se sentia animado e ansioso, Ryer sentia o orgulho de ter salvado os amigos e Leo era apanhado pelo imenso pavor e pelos insistentes espasmos do seu estômago que o faziam vomitar contra a sua vontade. Por pouco não perdeu a cabeça.