Arranha-Céus Flutuantes

e quanto a cogitar se deus proíbe

e (em sua graça) puro amor se exclui

— e. e. cummings

Parte VI Francis e Arthur

O silêncio tem algo de agressivo, beirando opressor — provavelmente porque o único habitante da sala se mantém numa espécie de silêncio taciturno, desses que parecem deliberadamente feitos para empurrar e afastar. Francis está, quase muito quietamente, observando o balançar das ondas e marés imaginárias além da janela. A vista é mentirosa, mas imaginativa; Francis mergulha e, em eterna queda livre, arrepende-se de tudo — e de nada. Há um recado, escrito numa letra corrida, as voltas da caneta esfereográfica preta. A assinatura escrito muito mais forte do que o resto, como se tentasse rasgar o papel, deixar o mundo ver sua raiva. Há uma epígrafe, também, e ela é de uma ironia quase cínica. Há problemas no paraíso, Francis?

Será que há?

É claro, a letra é de Arthur Kirkland.

Francis se levanta incrivelmente tarde naquela manhã. Há um mal pressentimento em suas entranhas, algo entre seu coração e seus pulmões, fazendo a curva no seu fígado e se afogando no seu pâncreas que o impede de respirar. É persistente, só um pouco mais leve do que uma dor lascinante, e puramente psicológico. A sensação de que existe uma desgraça espreitando é mais do que familiar para ele — a tragédia é como uma entidade a parte: ela vive nos buracos e ao ar livre, entra em nosso corpo e em nossa alma, esgueira e mesmo assim vive livremente. Terremotos não são sempre palpáveis.

Ele se arrasta pelo corredor que já lhe é completamente familiar, as plantas mortas e os tapetes de boas vindas, e desaba sobre a porta branca, esmurrando-a com força. Quando Arthur abre, dois ou três ou possivelmente infinitos minutos depois, Francis mal abre a boca. Olha bem nos olhos dele e entra, jogando-se no sofá e tirando os sapatos nesse processo. Arthur desaparece na minúscula cozinha, apenas a porta encardida da geladeira fazendo-se visível, e demora apenas o suficiente para Francis cansar-se de esperar. Há copos de vinho em suas mãos, vinho barato, feito para embriaguez. O tipo que Francis não gosta. Arthur lhe entrega os dois, murmurando não estou para bebida hoje. Francis não fala nada, não esboça sequer um gesto além de pegar os copos e tomar um depois do outro, quase nem parando para respirar.

Existe um tipo triste de silêncio no modo como eles não olham direito um para o outro, e quase nenhuma esperança nos copos vazios que Arthur enche até que Francis durma em seu sofá.

Há problemas no paraíso, Francis?

É dia dezenove de novembro. Dezenove.

Por quantas manhãs sem sabor Francis se arrasta durante aquela semana é impossível precisar. É assim que ele se move, arrastando-se, o peso de seu corpo demais para suportar, sua alma quase torta para o lado, como uma torre de Pisa emocional. Ele anda e anda e anda, enfiado em um moletom e em um tênis pouco apropriado que achou no fundo do armário, anda por toda vizinhança e quando isso se torna pouco demais para preencher o vazio ele estende a caminhada até a praça no bairro vizinho, e então a outra na outra quadra e então— e então —

Ele está na porta de Marie, suado e cansado, sabendo pouco ou nada de como foi parar ali. Dá para ver a silhueta dela da janela, vívida, pálida, quase uma aparição, então ele entra no prédio e sobe as escadas necessárias até o apartamento onde ela vive. Francis não estava planejando acabar ali, então não trouxe chaves; acaba batendo sem força na porta. Ela abre imediatamente, sua personalidade impaciente. Seu rosto é uma máscara de conformismo enquanto dá espaço para Francis entrar.

— Você podia ao menos ter pego um casaco antes de sair.

A sua tristeza e alegria inconstante são sufocantes.

— Se você tivesse que morrer, — Arthur murmura, é manhã de sábado e o sol entra pela janela. Eles estão jogados no tapete da sala observando a luz iluminar a poeira planando no ar. — como você gostaria que fosse?

Brilhante. Eu queria que fosse brilhante.

— Como assim, brilhante? Você quer dizer reluzente ou genial? Ou uma coisa meio Houdini?

— Eu não sei. — um sorriso estende-se lentamente pelo rosto de Francis, olhos enrugando-se e lábios se movendo, um fascinante exercício de transformação. — Foi só a primeira coisa que passou pela minha cabeça.

— Deus. Deus. Você é o cara que provavelmente nunca vai deixar de me decepcionar.

A minha mente é um mundo caótico que destrói tudo. A verdade, e isso pra você já deve ser mais que óbvio, é que eu sou um desastre ambulante.

As pilhas de rascunhos de Arthur que Francis lê estão suspeitosamente cada vez menores, como um punhado de areia que uma criança — feliz, cansada, debaixo de um sol que faz sua mãe aparecer de dois em dois segundos com o protetor solar em mãos — pega no fundo do mar mas que, no processo de tirar a mão da água, perde tudo. Vai escorrendo e é suave, gradual, como algo quebrando lentamente, irreversivelmente, dentro dele, para sempre. Os destroços — as ruínas — sempre sobram.

Porque, você sabe, cacos de vidros sempre furam seus pés.

Existe amor nos movimentos suaves, lânguidos de Arthur. Existe amor no jeito desajeitado, possivelmente tando parecer legal, que ele se escora numa estante de livros que está perto da definição de vazia (onde foram parar os seus livros, Arthur?, Francis quase diz, mas ainda é um quase. há muito tempo ele aprendeu que só se pergunta as coisas que estamos realmente preparados para saber a resposta) e calmamente, suavemente, sorri um desses sorrisos pequenos, minúsculos, talvez quase ridículos, que mal erguem o canto de seus lábios. Existe amor. Existe também uma tristeza destruidora, assassina, que quase desmembra o corpo dos dois. Francis a sente nos ossos. Ele quer fazer algo, mas não pode; não tem ideia e qualquer mínimo movimento é brusco demais. Ele acaba decidindo que é melhor não pensar nisso. Francis se levanta e caminha até Arthur, seus dedos encontrando um caminho entre a bochecha e os cabelos loiros, longos.

— Você está precisando cortar o cabelo.

— Se eu deixar crescer mais talvez um dia fique igual ao seu.

— Você nunca pareceu gostar do meu cabelo, amour.

— Eu gosto. — Arthur encosta a cabeça na curva dos ombros de Francis. — Eu gosto de verdade.

Eu sinto muito. Muito mesmo. É claro, isso é o que você espera que eu diga. Mas talvez você nunca chegue a entender o quanto é verdade.

— Eu te amo. Mesmo. — é a primeira coisa que Arthur diz quando Francis abre a porta. Ele está um pouco surpreso porque Arthur nunca veio ali (eles se encontram sempre no apartamento de porta branca, terreno quase neutro e impessoal). É provavelmente culpa de Arthur, que rechaçou a única fagulha de interesse que Francis pudesse ter de mostrar a ele o local; praticamente afogou-a sem pena.

— O que você tá fazendo aqui? Está chovendo.

— Me deixa entrar? Eu tô morrendo de frio.

— Entra. — Francis diz, muito suave, preocupação transformando suas feições numa cuidadosa máscara. — Aconteceu alguma coisa?

— Não é isso… Eu estou resolvendo umas pendências.

— Tudo bem. — a chuva bate contra a janela, constante e firme. — Resolvendo por quê? Você vai viajar de novo?

— Algo assim. Talvez eu fique fora muito tempo, Francis.

— Você tá indo escrever?

— Não sei. Eu estou meio confuso agora.

— Tudo bem. — ele repete, sua mão direita encontrando a fria mão esquerda de Arthur. Ele parece agitado e infeliz. — Você me liga quando tiver como?

— Ligo. Posso dormir aqui?

— Pode.

— Mesmo?

— Sempre.

Quando eu coloquei aquele tapete de boas vindas na minha porta, era sincero. E era para você, sério, porque ninguém mais me visita.

— Bom dia. — ele diz, esfregando os olhos, a mesma roupa do dia anterior caindo amassada e esquisita em seu corpo.

— Eu estou fazendo café. Você poderia me ajudar, coloca os pães na torradeira? E vigia para não queimar.

— Tudo bem. — A respiração agitada de Arthur é o único som na cozinha; ela embala os pensamentos de Francis, sombrios e não exatamente direcionados. — Eu acho que já está bom.

— Obrigado. Eu vou pegar suco na geladeira, e tem café aí na mesa, mas está sem áçucar.

— Tem adoçante em algum lugar?

— Terceiro armário. O de cima.

Eles comem num silêncio sepulcral. Há algo de pesado no ar, mas Arthur parece muito calmo, quase tranquilo, então Francis vai se permitindo, bem aos poucos, se acalmar também.

Mas eu tirei o tapete, você deve ter notado. Não é exatamente porque você não é mais bem vindo, embora não seja de todo mentira.

Francis está sentado, mas mal percebe a mudança. O sol já se pôs e as marés e ondas se tornaram uma confusão. Nem todos os terremotos são palpáveis. Na sua frente o papel — branco, simples, direto, impessoal, estéril —, o bilhete escrito corrido, assinado com força, impressões digitais que ele tem certeza serem de Arthur. Os tês fazendo voltas e voltas, tristemente deslocando-se para o lado, borrando o resto das palavras. Francis não tem coragem de se mover, não tem coragem de tocar em nada, a fragilidade da realidade se fazendo passar por sonho — pesadelo —, mas não tira os olhos dele. Do papel. É medo. É um tsunami de medo destruindo seu corpo, mudando tudo de lugar.

Não há nada a ser feito, nada senão esperar.

Eu não quero mais saber de ninguém, Francis. Há problemas no paraíso. Mundos feitos de vidro são quase muito fáceis de quebrar, eu não sei por que demorei tanto para entender. Eu estava cego. Me permiti arrastar você para meu inferno pessoal. Foi um erro, um erro terrível.

Eu realmente sinto muito.

É noite alta quando o telefone toca. Uma voz impessoal, de enfermeira acostumada com más notícias, soa com pouca ou nenhuma simpatia.

— Senhor Bonnefoy?

Arthur Kirkland.