Arranha-Céus Flutuantes

because you have loved me,

moon and sunset

stars and flowers

— e. e. cummings

Parte VII

Arthur é canhoto.

É por isso que a maioria dos manuscritos que ele deu a Francis já vinham digitados — quando escrevia à mão, tudo acabava uma bagunça borrada, o caos de tinta se misturando com suor transformando as palavras de um texto coerente em rios incompreensíveis. Às vezes, é claro, alguns apareciam nesse estado. Francis não perguntava o por quê. A verdade é, Francis acredita na tática evitar e ignorar — se você não confronta o problema, então ele eventualmente terá que desaparecer, certo?

Errado.

Errado, errado, errado.

Arthur é canhoto e digita tudo. Jura não conseguir pensar no papel. É por isso que Francis deveria ter perguntado assim que a primeira quebra no padrão apareceu, mas ele não fez. É claro que não. Francis não fez um monte de coisas. O que Arthur fez não é culpa de ninguém. Certamente não é culpa de Francis.

Não que ele algum dia vá conseguir se convencer desse fato.

— Senhor Bonnefoy? — a voz da enfermeira é insistente do outro lado da linha. Um ruído de estática soa alto, tão alto, como se tentasse engolir o mundo. Francis luta para manter o pânico sob controle.

Oui. É ele.

— Francis Bonnefoy?

Oui. — a repetição parece tornar tudo mais palpável e mais surreal ao mesmo tempo. Por um segundo Francis quase espera que a parede comece a derreter, apenas para completar o cenário.

— Aqui é a senhorita Austell, do Hospital St Anne. Nós estamos ligando por causa de Arthur Kirkland. A maioria das chamadas no celular do senhor Kirkland foi para o senhor, e como aconteceu do senhor Kirkland aparentemente não ter mais ninguém para quem pudéssemos ligar…

— A senhorita…

— Austell.

— A senhorita ainda não disse o que aconteceu.

— Senhor Kirkland tentou suicídio, senhor Bonnefoy.

— Suicídio?

— Sim, senhor.

— Como?

— Não posso dar esse tipo de informação por telefone, senhor. O senhor e o senhor Kirkland são relacionados?

— Eu sou o editor dele.

— Não são parentes?

— Não.

— Senhor Kirkland tem algum parente?

— Não.

— O senhor tem certeza?

Oui, é óbvio que eu tenho certeza.

— O senhor poderia vir até o hospital?

— Sim, é claro.

— Tenha um bom dia, senhor.

O barulho de estática engoliu o mundo. Francis deixa o telefone apoiado na orelha por o que parece ser uma eternidade, preso pela certeza de que deveria estar ouvindo o barulho da chamada interrompida, mas surdo pela tristeza e o choque. Não pela primeira vez, ele é inundado por uma imensa e quase incontrolável vontade de fugir. Sair correndo, sem rumo, apenas para o mais longe possível de tudo aquilo. Para o mais longe possível do Hospital St Anne, especificamente. Não pela primeira vez, Francis se vê tomado por uma vontade quase incontrolável de nunca ter entrado por aquela porta de madeira pintada de branco. Nunca ter conhecido Arthur Kirkland. Nunca ter se apaixonado tão pateticamente por ele.

Ao invés disso, coloca o telefone no gancho novamente (alguém além de Francis ainda usa telefone, mesmo tendo celulares? ele não sabe. será que usam? é ridículo como ele insiste em manter essa velharia, e efetivamente usá-lo), veste um casaco e se prepara para enfrentar o frio da rua.

A garota atrás do balcão (cujo crachá diz A. Hill) não parece mais amigável do que a senhorita Austell, o que faz a vontade de Francis de fugir aumentar assim que ele pisa na recepção. Ele se sente incrivelmente auto-consciente, ali naquele hospital, cercado por todas aquelas mães em roupas de ficar em casa, acompanhadas por suas crianças doentes em roupas de dormir, e aquelas pessoas descabeladas que parecem apenas desejar um analgésico ou um tiro. O que vier primeiro, o que for mais simples ou mais fácil de conseguir.

— Eu estou aqui para ver um paciente. — ele para, lutando contra a vontade de se apoiar no balcão. Na altura dos olhos há um vidro de álcool em gel pela metade e uma pilha de copo descartáveis.

— Nome? — ela diz, secamente, e se estivesse mascando um chiclete poderia estar numa loja de conveniência qualquer. Ou talvez seja pré-requisito para todos os serviços incrivelmente maçantes ter uma expressão mortalmente entediada.

— Arthur Kirkland. Com k e l.

— 203.

— Obrigado. — Francis diz, mas senhorita Hill já deixou de prestar atenção. Ele não se importa. Francis sabe que, se fosse ele atrás do balcão, provavelmente também não se importaria com o cara francês querendo informações sobre um dos trezentos pacientes do hospital naquele dia. Sabe que, se fosse ele atrás do balcão, só gostaria de ir para casa. Senhorita Hill provavelmente merece um bombom e um pouco de paz.

Francis segue o caminho para o 203 (indicado por algumas plaquinhas — quartos 200 a 220) sem olhar para trás — provavelmente para não perder a coragem.

— Onde é que você tá?

— St Anne.

— O Hospital?

Oui.

— Arthur?

Oui.

Dieu.

Oui.

— Eu devo rezar?

— Depende.

— Pela alma dele?

— Não.

— E por tudo dai graças. Ele está bem?

— Não sei. Ainda não tive coragem de entrar no quarto. Ainda não tive coragem de perguntar pra alguma enfermeira.

— Está parado na porta feito um idiota, oui?

Oui.

— Então entre, pelo amor de deus. Nem que seja para sabermos que ele ainda está vivo, que ele vai ficar bem. Nem que seja para sabermos pelo que devo rezar.

— Vou entrar.

— Eu vou rezar.

Oui. Je t’aime.

Je t’aime.

A tela do celular se apaga e com ela o nome Marie que reluzia em neon azul ao lado do horário infame em que Arthur escolheu para tentar deixar esse mundo. 3h32. Francis deixa o celular deslizar de volta para o bolso, leva a mão até a maçaneta e abre a porta.

No meio do quarto, deitado na cama, Arthur descansa olhando para o teto, acordado, consciente, uma expressão apática no rosto. Um desinteresse latente, quase assustado, como se não acreditasse que ainda estivesse naquele plano da existência, mas como se aquilo quão não importasse. Uma letargia do tipo que ocorre depois do choque.

Arthur poupa Francis do dilema de escolher as palavras certas para quebrar o tenso silêncio do quarto falando primeiro.

— É engraçado estar vivo depois de tudo.

— Eu imagino que deva ser uma surpresa.

— Não, não uma surpresa. Um desapontamento.

— Você está decepcionado?

— Eu me sinto fracassado.

— Ah.

— O que você está fazendo aqui?

— Me ligaram.

— Você recebeu meu bilhete?

— São 3h33.

— É?

— Por que madrugada?

— Por que qualquer horário?

— Meu bilhete?

— Como você se sente?

— Como merda. Quando posso ir para casa?

— Eu não sei. Onde tem uma enfermeira por aqui?

— Não tenho a menor ideia.

(então, eles começam a rir.

e riem por doze minutos inteiros

porque a vida é simplesmente tão patética)

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.