Arranha-Céus Flutuantes

Love is not a victory march

It’s a cold and it’s a broken

Hallelujah

Hallelujah — Jeff Buckley

Parte IV Marie e Arthur

Quando Francis apareceu para trabalhar na semana seguinte tinha um cigarro entre os lábios e determinação nos olhos. E daí se era difícil pra porra lidar com Arthur? E daí, afinal? Era trabalho, e a vida não era fácil, como bem disse Gilbert; e ele estava preocupado com Marie, que parecia particularmente triste na noite anterior, então que se danasse. Bateu na porta branca (não sem notar que, dessa vez, tinha um tapetinho, que dizia seja bem vindo!) e deu mais uma tragada. Arthur atendeu com um copo de vinho na mão e Beatles tocando no fundo.

— Cigarro, é? — ele disse, despreocupado, sem se incomodar em dizer para entrar, como de praxe. — Não sabia que você fumava.

— É. — Francis foi sucinto. — Essas são as folhas?

— São. — ele disse, fazendo um gesto de descaso. Voltou para perto do notebook e deu um gole firme no vinho, como se a solução para todos os problemas do mundo estivesse no fundo do copo.

— Você não devia beber tanto. — Francis diz, muito quietamente. Arthur o olha por um longo minuto antes de ignorá-lo deliberadamente, levantando o copo em brinde e bebendo o resto. Ele levanta e vai na cozinha, pega mais uma garrafa (nova) e enche dois copos até a borda.

— Aqui, tome, não seja assim. — Arthur diz. — Não pegue só as folhas e vá embora.

Francis suspira profundamente, seus olhos vagando do copo para o rosto inexpressivo de Arthur e para o copo de novo, mas pega, por fim.

— Eu vou me tornar um alcóolatra. Você vai fazer de mim um alcóolatra. — ele diz, um pouco ranzinza, e Arthur ri, inclinando a cabeça para o lado, deixando-a cair como vagão desgovernado em cima de seu ombro.

Francis acaba passando a tarde ali, entre fumaça de cigarro, vinho em copos transbordantes e páginas soltas de contos infelizes.

Marie está reluzente em seu vestido azul bebê, cheio de brilhos e seda. Ela é especial num conceito totalmente novo e estranho que Francis mal consegue acompanhar, e está totalmente suja de tinta.

— Estava pintando? — ele pergunta assim que ela abre a porta.

— Uma tela pequena. — ela responde, piscando languidamente. — Entre.

Sua casa tem um pequeno jardim mal cuidado e, por dentro, é uma loucura de cores e quadros e os mais fabulosos instrumentos musicais. Marie é uma artista, a vida fez dela uma artista; como uma criança, adolescente e adulta determinada, não declinou sua aptidão natural. Na verdade, jogou-se nela. Produz de tudo um pouco. Rola na arte. Fez dela sua razão para respirar. Nada nunca poderá ser o centro de sua vida porque a arte já ocupa esse posto desde sempre, ela sabe, e o diz entre suspiros. Mas a vida é difícil, dura e enorme e ela faz o que dá. Em cima da mesa estão jogadas umas calças jeans.

— Eu estava pregando uns botões hoje mais cedo. — ela diz, suavemente. — Estou precisando de dinheiro. Uma amiga conseguiu esse bico pra mim.

Francis acena, mas não fala nada. Uma vez tentou oferecer-lhe dinheiro e ela o expulsou, não atendeu seus telefonemas por dias inteiros, não respondia quando ele aparecia na sua porta e gritava seu nome. Ele aprendeu a lição. O orgulho de Marie é inimedível.

— Isso é ótimo. — Francis responde, finalmente, dezessete segundos de pesado silêncio depois. — Isso é ótimo.

— Mas como você está? — ela pergunta, empurrando latas de tinta e pedaços de pano e algumas roupas cor de rosa de cima de um sofá vermelho. — Sente-se, sente-se.

(francis se senta, e dá um suspiro. marie decide que é melhor eles beberem, e trás uma garrafa de um litro de cerveja para cada um, que eles bebem no gargalo)

— Foi um dia difícil.

— Aquele autor, como ele se chama, é Arthur?, ele anda sendo difícil?

— Ele é uma pessoa difícil.

— Mas você gosta dele.

— Um pouco. — Francis vira a garrafa com determinação. Seu coração, pulmões, todos seus orgãos internos, dói quase fisicamente a constatação.

— Um pouco… E quanto a mim?

— Você o quê?

— Quanto você gosta de mim?

— Bastante, Marie. — ele abre os braços, o corpo dela quente e suado muito próximo, os braços quase naturais na cintura esguia marcada pelo espartilho azul. Ela cheira a azaleias. Francis sorri contra os cachos loiros e infantis que emolduram o rosto feminino que ele mais adora no mundo todo.

Quando Francis abre seus olhos na quarta feira é porque o telefone está tocando no último volume. Na tela, o nome Gilbert é reluzente, assim como o horário, 3h41.

— O que você quer? — ele atende, e sua voz está cheia de sono e raiva.

— Bom dia, Francis! Como você está?

— Cansado. Adivinhe por quê. Apenas adivinhe.

— Não quero saber de suas reclamações a essa hora da madrugada, Francis.

— Então não me ligasse às três da manhã…

— Enfim, fique calado, eu estou tentando falar algumas coisas aqui. Amanhã Arthie tem uma tarde de autógrafos.

— E daí?

— E daí! Ele odeia essas coisas. Já faltou três. É sua responsabilidade resolver isso.

— O empresário não é você? Sou só o editor, o segundo, até.

Era. Passei pra você. Tchau, Francis!

E desligou.

Era uma epopeia, Francis pensava repetidamente enquanto encarava a porta de madeira branca. O tapete de boas vindas tinha sumido, o que era legal, porque estava acumulando poeira. E era meio cínico, porque ninguém nunca era realmente bem vindo na casa de Arthur, pelo menos Francis não era. Enfim, era uma epopeia. Levantou a mão e bateu com o nó dos dedos.

Era uma epopeia.

— Você vai ser minha babá? — ele abriu a porta de supetão, falando de uma vez só.

— Vou. — Francis disse, meio surpreso, mas sem se abalar. Ele convivia com Arthur tinha um tempo razoável, já, era difícil ser pego desprevenido a essa altura.

— Odeio babás. — foi tudo o que ele disse antes de voltar para dentro de casa, deixando a porta aberta. Jogou-se no sofá e pegou uma garrafa de vinho que estava meio escondida por ali, encheu um de seus copos de requeijão e virou de uma vez. — Odeio babás. — repetiu.

— Sinto muito. — Francis respondeu, sem realmente sentir muito. — Você está devidamente vestido? Quer dizer, vai com isso? — Francis achava que estava ok, mas gostava de checar as coisas. Arthur o olhou como se ele fosse burro.

— Posso aparecer bêbado como um gambá, você não se importa, mas deixe-me esquecer um cachecolzinho e ai de mim. Ai de mim. — suspirou. — Ai de mim.

— Vamos perder o horário.

— Tudo bem, babá. — largou o copo de qualquer jeito, manchando um pouco o carpete de vinho. — Deixe isso aí. — apontou vagamente para a mancha. — Vamos embora.

Foram.

Arthur tinha um sorriso brilhante em meio ao público, completamente dissimulado. Francis, se não o conhecesse tão bem, até se deixaria levar pelo bom humor e pela facilidade com que ele se virava naquele mundo inteiro de pessoas. Autógrafos e autógrafos até cansar mãos e canetas. Francis apareceu em umas fotos, com total cara de paisagem, com certeza, era difícil não parecer meio assim quando colocado perto de uma presença reluzente quanto Arthur Kirkland estava sendo naquela noite em especial. Francis ficava meio apagado, mas ele não se importava, ele era o editor.

Quando foram embora, Arthur parecia muito sério e triste.

— Nós podemos caminhar as últimas duas quadras? Eu quero caminhar.

— Tudo bem. — Francis disse, muito quietamente, e deu a nova orientação para o taxista. Estavam num desses táxis amarelos, Arthur adorava táxis amarelos.

— Obrigado. — ele respondeu, e Francis pensou, aquela não era a primeira vez que Arthur lhe agradecia?

Desceram do táxi a duas quadras do apartamento de Arthur. Era uma rua escura e deserta, então apressaram o passo, andando muito rápido e muito calados, como se um fantasma os espreitasse, sussurrando coisas. Coisas que nenhum deles queriam saber. Quando chegaram no portão, Arthur entrou sem olhar para trás. Francis ainda arriscou um boa noite.

Não teve resposta.