O dia estava claro, o céu estava limpo. Enquanto eu descia a ladeira que ficava a dez minutos da minha casa, observava que aquele dia de outono estava perfeito demais. Aumentei a velocidade da bicicleta, eu adorava aquela sensação, o vento batendo forte contra a minha face, eu largando meus anseios para trás. Quando cheguei ao final da ladeira, apertei o freio, mas era tarde demais. Em meio àquela adrenalina eu nem percebi que um carro vinha atrás de mim.

Tudo foi muito rápido. Nunca conseguiria descrever tudo o que eu senti. Senti medo, desconforto e dor, muita dor. Senti a bicicleta amassando o carro, senti a força do impacto me arremessando para longe. Fechei meus olhos, meu corpo bateu contra uma árvore. Ouvi vozes gritando, várias vozes, por fim veio a escuridão.

*'*

Virei-me de um lado para o outro, aquele sonho angustiante voltava toda terça-feira, era de praxe. Olhei para o lado e vi a porta ser aberta, rapidamente enfiei minha cara no travesseiro, não adiantou.

— Luna, tudo bem? Está na hora de ir para aula! – Disse minha mãe. – Vá tomar o seu café que preparei com amor. – Mentira, pura mentira. Sabia que na verdade eram iogurtes vencidos.

— Já estou indo mamãe... – E ia começar tudo novamente, - só mais um segundo e já estarei lá!

— Lerdeza – é assim que minha mãe me chamava nas situações de atraso - seja rápida para não se atrasar de novo. – É, realmente eu não era muito boa com horários. – O ônibus chega daqui a pouco. Não quero que você se atrase.

Levantei-me da cama com preguiça. Senti os meus pés descalços tocando no piso gelado e corri para o banheiro, depois desci e me arrumei da maneira de sempre, uma calça jeans apertada, uma camiseta neutra azul, e uma jaqueta de couro falso, com algumas bijuterias, que ganhei de aniversário. Desci as escadas lentamente e fui tomar café. Aquele iogurte vencido ia me fazer mal ao estômago, mas eu poderia usar isso como pretexto para sair mais cedo. Abri um sorriso amargo.

Assim que saí de casa vi o ônibus virando a esquina, corri até o banco onde ele para e o esperei. Ele já era velho, e cheio de ferrugens. Nós o chamamos de "enferrujado da prefeitura" como forma de identificação. Ao entrar o motorista não me disse “oi”, normal, ninguém me dava “oi”. Encontrei as pessoas de sempre, aquelas que me viam como “Luna, a antissocial”, fitavam-me com aquela cara de deboche. Como sempre, sentei-me no último banco e coloquei os fones de ouvido, assim eu não poderia escutar ninguém, apenas a linda voz de Adele, no sucesso “Someone Like You”.

Cheguei à escola. Como moro na zona rural e o ônibus tem que passar cedo para recolher os outros estudantes, eu fico uma hora naquela escola sem nada para fazer. Quer dizer... Eu ficaria, se as lições que os professores passam não fossem tão complexas, portanto é uma hora que passo resolvendo os deveres.

— Luna! – Ouvi alguém me chamando, mas quem seria? Todos me consideravam tão... Excêntrica.

— Quem é você? – Perguntei olhando o dono da voz que havia me chamado.

— Eu sou Gerald – respondeu. Eu me lembrava dele de algum lugar, talvez fosse da minha sala. – Sou da sua classe e estou aqui para lhe avisar que nossa professora de ciências marcou uma atividade extraescolar. – Espera! Eu juro que não me lembrava disso, devia estar desatenta quando ela havia falado aquilo. – Para minha infelicidade, como sou a pessoa que mora mais perto de você, terei que fazer o trabalho contigo. – Ele me olhava com uma mistura de deboche, repúdio e medo. – Só peço que não atrapalhe no meu trabalho.

Pelo o que pude perceber, Gerald era um nerd que não tinha tempo para diversão, muito menos tempo para conhecer alguém. Eu podia mudar aquilo, desde que ele aceitasse a minha ajuda. Apesar de ser ignorada por muitos, acho que minha ajuda é sempre bem-vinda, seja para uma boa e simples conversa, ou um longo e choroso desabafo.

O sinal soou e fomos para sala de aula. Todos de sempre. No fundo da classe estava Finn, ele sim, era um garoto perfeito. Usava jaquetas (estas sim, eram de couro legítimo), uma calça, e um tênis que estava na moda. Além disso, usava também seu sorriso, que mais parecia um horizonte, onde eu queria morar eternamente. Seus olhos fitavam-me calados, como um predador conquistando sua caça. O seu jeito moleque de ser me conquista de tal maneira que não sei descrever. Só sei que quando o vejo, meu coração vai a mil pulsações por segundo, só sei que quando mostra seu sorriso, meu corpo estremece. Se isso é o amor, então eu o amo.

Enquanto eu fazia essa nota mental, uma voz horrivelmente forte alcançou os meus ouvidos, senti até um pouco de dor nos tímpanos.

— Alunos! - Era a Srta. Lizz, a professora de ciências - vim dizer sobre o seu trabalho extraescolar. Eu quero que vocês façam uma representação dos movimentos peristálticos, que ocorrem na digestão do bolo alimentar.

Eu não precisava saber sobre isso, mas no trimestre passado minhas notas foram baixas, então acho que devo me esforçar nos trabalhos.

Só então percebi que havia uma menina que eu nunca havia visto na sala. Uma menina muito bonita, com estonteantes cachos que caíam sobre as costas, um vestido com detalhes em prata, e um belo par de all stars. Ela percebeu que eu a fitava tanto que se apresentou, diferente de todos, sorrindo.

— Olá, eu sou Sthefanni, eu vou me sentar aqui agora, sou nova na sala, eu venho da zona rural, não muito longe de sua casa. Vai ser um prazer imenso poder conversar com você e passar meu tempo aqui.

Confesso que de início senti um pouco de inveja, afinal, uma garota tão linda, de grandes cachos e grande sorriso, além de muito simpática, agora se sentaria ao meu lado.

Então, com um sorriso de orelha a orelha, respondi:

— Olá Sthefanni, meu nome é Luna. Luna Parks. Eu também moro na zona rural e minha vida atualmente não tem sido muito movimentada, espero que com sua chegada, eu possa ter uma amiga! - E esperava mesmo. - Um segundo, vou falar um pouco com a professora.

Fui até a mesa da Srta. Lizz. Ela não estava muito acostumada a me ver. Mas quando viu que eu me dirigia a ela, esboçou um sorriso falso e disse:

— O que foi, Luna?

— Eu gostaria de saber o porquê de eu fazer meu trabalho com Gerald Hunni, sendo que Sthefanni mora mais perto de minha casa.

— Ora, Luna – disse um pouco irônica, fitando-me com seus lindos olhos - suas notas no trimestre passado não foram as melhores, por isso decidi que era melhor pra você fazer o trabalho com Gerald, que tem ótimas notas por sinal. Acredite, será melhor.

Eu me conformei, pois sabia que ela não iria repensar a decisão. Voltei para o meu lugar e disse:

— Queria fazer o trabalho com você, mas para isso preciso melhorar minhas notas.

Sthefanni, muito segura, respondeu-me:

— Não se preocupe, vou te ajudar no trimestre para podermos fazer o trabalho juntas.

Por fora, eu estava normal, por dentro emocionada e ao mesmo tempo muito feliz com a nova amizade. Toda a inveja que eu sentira antes se transformou em harmonia.

Olhei no relógio e percebi que o sinal iria tocar, indicando o intervalo. Estava me sentindo tão feliz, acho que por isso me levantei em uma atitude impensada e fui falar com Finn. Enquanto eu me dirigia, todos me olhavam estranhamente, era muito raro aquilo acontecer, raríssimo.

Todas aquelas cabeças estavam voltadas a mim, mais ou menos vinte alunos. Ele estava de costas para mim. Meu coração já batia em um ritmo descompensado e quando eu ia chamá-lo o sinal tocou. Droga! Droga, droga, droga e droga! Fiquei vermelha a toa. Como sempre, Finn saiu correndo para conseguir o melhor lugar no futebol e nem sequer me viu.

Eu já estava vendo todos eles rirem de mim, todos eles rindo da minha cara. Virei-me então para uma garota que eu nem sabia o nome e perguntei:

— Tem um apontador? – Droga, nem com um lápis para apontar eu estava.

— Não, eu uso lapiseira. - ela me respondeu com certa tensão na voz. Agradeci e sentei-me no meu lugar, aparentemente, ninguém parecia ter notado.

Como todos os intervalos, fiquei sozinha, sentada num banco frio, enquanto todos estavam com seus melhores amigos conversando sobre videogames ou pizza. Senti um corpo colado ao meu.

— Você fica sempre sozinha no intervalo? – sussurou Sthefanni.

— Sim – respondi com esperança e indiferença.

— Bom, agora podemos ficar juntas.– Gostei do sorriso dela. Sempre que sorria ela exibia aquela fileira de dentes claros e bem cuidados.

— Claro. - Me alegrei e procurei o mais rápido possível algum assunto bom.

Antes que pudesse pensar ela me perguntou:

— Qual é sua cantora preferida?

— Adele, adoro suas músicas. – Respondi, parecia que ela havia lido os meus pensamentos.

— Eu também adoro Adele. – Ela comentou e entãoficamos conversando por tempos... Aquela altura, o que não nos faltava mais, era o assunto.

O sinal soou mais uma vez interrompendo o nosso papo. Raramente as pessoas eram gentis comigo naquela escola e ela havia me surpreendido. Levantamo-nos do banco e nos dirigimos à sala.

Depois daquela aula insuportável sobre números, operações e raízes, coisa que não entendia nada, eu estava no ponto esperando o ônibus junto de Sthefanni. Ela podia ser a minha única amiga naquele momento, por isso sabia que ela era especial.

Assim que o ônibus chegou, ambas embarcamos e fomos para casa. Olhava aquele triste dia de outono. A única coisa que me alegrava, enquanto eu via as folhas secas caindo das árvores, era o pensamento de que com o inverno chegando, as férias também viriam.

Chegando à zona rural, Sthefanni me mostrou a sua casa antes de descer, e observei que realmente era muito próxima da minha. Aquilo me alegrou. Quem sabe, agora eu poderia fazer como uma adolescente normal. Visitar a casa da minha amiga, conversar sobre paixonites, dormir lá... Enfim, ser como uma adolescente normal.

Saltei do ônibus e abri o portão me dirigindo para o interior da casa. Não era novidade nenhuma, meu irmão estaria deitado no sofá e implicaria comigo por puro... Lazer.

— Porque você demorou? – Perguntou-me indiferente.

— Eu fui ver a casa de uma amiga.Respondi enquanto colocava minha mochila no sofá e me dirigia à cozinha.

— Amiga? Que amiga? - perguntou-me risonho e com um ar sínico e hostil.

Como sempre, meu irmão não acreditou em mim. A verdade é que ele não acreditava na minha capacidade de fazer amizades.

— Sthefanni, ela é minha amiga. – Suspirei enquanto respondia.

Ele persistiu em manter suas risadas bobas e sem motivos.

Meu irmão é apenas um mala de 19 anos que não trabalha, não estuda e é sustentado pela nossa mãe viúva, que tem quatro filhos, sendo só eu de mulher. Era alto e pomposo, e adorava exibir seus músculos, coisa que não tinha. Ficava de pijamas quase o dia inteiro, trocando apenas para ir ver seus amigos (que considero nojentos e sujos). Além disso, tinha hábitos horríveis em questão da educação e higiene. Minha mãe não se importava com isso, já que só tinha tempo para meus outros dois irmãos que são gêmeos e que tinham toda a sua atenção. Então eu e Rowley (meu irmão) vivíamos sem uma mãe presente.

De repente, senti algo molhando a minha velha e desbotada calça jeans que estava usando o dia todo.