Antologia

Venha Como É


Venha como você é, como você foi
Como quero que você seja
Como um amigo, como um amigo, como um velho inimigo
Tenha calma, apresse-se
A escolha é sua, não se atrase
Descanse um pouco, como um amigo, como uma velha memória

Venha atolado em lama, ensopado de água sanitária
Como quero que você esteja
Como uma tendência, como um amigo, como uma velha memória

Nirvana - Come As You Are

***

Meu nome é Bento
Eu gosto de plantar florzinha
Me chamam de anjinho
Mas eu sou mesmo é um viadinho

Deleitamo-nos com tamanha bobeira, Giane e eu. Versos escritos no auge de minha infância, bem, nossa infância.

"Calma aí, acho que saiu uma lágrima." Ela esfregou a região abaixo dos olhos e moldou semblante de forçoso choro. "Carlos Drummond de Andrade, é você?"

"Nossa, que moleque culto." Pontuei cada palavra com cutucadas no abdômen dela. Engraçado como o ritmo de minhas investidas acompanhava a música primitiva dos trovões que perturbavam o silêncio da noite. "Diz, Clarice Lispector, meu poema te emocionou, né?"

O riso fluía sem trégua e brincava em meus ouvidos. Não era dissimulado ou escravo de pretensões dúbias; simplesmente representava um momento de alegria. Eu não estava acostumado a esse tipo de expressão, mas talvez gostaria de aprender.

"Giane," seu Silvério chamou da cozinha "você esqueceu o antibiótico do Fabinho."

Recostei as costas no sofá e acomodei-me melhor sobre o chão. Dei leve cotovelada em Giane, os cantos de meus lábios curvando-se involuntariamente.

"Que enfermeira negligente essa que eu tenho," provoquei à espera da reação dela. "Sabia que eu posso morrer se não tomar o remédio?"

Giane revirou os olhos e levantou-se, os pés guiando-a rumo à cozinha.

"Que paciente chato esse que eu tenho," ela retribuiu. "E as vagas do inferno já tão todas ocupadas, não tem como você morrer agora."

"Que inferno o quê?" Ergui as mãos no ar, apontando-as para o teto. "Eu vou é pro paraíso ajudar papai do céu a lançar raio na cabeça de vocês."

Minha promessa foi recebida com reprovação por seu Silvério, cuja voz não tardou a ecoar.

"Olha o respeito, menino," ele alertou. Girei os olhos; como era difícil ser ateu! Torci para que Giane voltasse logo e salvasse-me de falar alguma besteira que culminasse na minha expulsão de sua casa. Contudo, o barulho de portas sendo abertas e fechadas violentamente indicou que o retorno dela não ocorreria tão cedo.

"Pai, onde tá essa merda?"

Lá ia ela.

Suspirei e tomei o álbum que jazia na mesinha à minha frente. Era pesado de recordações, todas muito importantes em sua insignificância. Óbvio, colecionar fotos de Giane andando, respirando ou simplesmente existindo devia ser algo imprescindível. Quase rezei que eu jamais me tornasse pai, principalmente um tão coruja quanto seu Silvério.

Experimentei peculiar sensação de satisfação ao constatar minha presença no álbum. Eu sempre carregava seriedade no semblante; havia apenas uma imagem em que eu sorria, resultado de Giane puxando os cantos de minha boca com força. Meus olhos permaneciam mortos a despeito de tudo.

Surpreendi-me com o aumento exponencial de minha participação nas fotos. Havia várias de 1998, quando a rua inteira reunia-se para assistir à Copa na televisão. Eu e Giane sempre figurávamos lado a lado, geralmente mais preocupados em discutir a partida que em acompanhá-la com exatidão.

Em certo momento minhas aparições cessaram, época em que eu fora adotado. Um tremor inesperado assolou-me; estaria eu ansioso para ver como Giane passara a adolescência sem mim? Estava prestes a virar a página quando a própria maloqueira entrou na sala.

"Toma logo esse negócio antes que eu esqueça de novo." Ela me deu um copo e o derradeiro comprimido.

"Como você pode perder o remédio do seu paciente preferido?" Mirei-a de soslaio enquanto bebia água. Quando terminei de fazê-lo, forjei meu melhor semblante de criança abandonada: sobrancelhas elevadas, olhos redondinhos e lábios contorcidos em um biquinho. Mesmo contrafeita, Giane mal pôde conter um sorrisinho torto e deu-me um tapinha na cabeça para disfarçar que achava graça da encenação.

"Quem olha assim..." ela começou, mas eu me preocupava com outros detalhes alheios às suas palavras. Calculava milimetricamente uma estratégia para puxá-la de volta ao chão. Obviamente, isto renderia um hematoma na bunda dela e algumas feridas mais em minha pele. Concluí que sobreviveríamos no final e já estendia um braço para executar o plano quando seu Silvério invadiu a sala, o celular na mão.

"Giane, eu ainda não tô sabendo mexer..." ele lamentou e cercou Giane, que antes tinha toda sua atenção voltada para mim. Não mais. Gosto amargo na boca.

"Calma, eu vou te ajudar. Dá licença, Fabinho." Bufei enquanto arrastava-me até um ponto que desobstruisse o acesso ao sofá, no qual pai e filha sentaram. Os dois aproximaram as cabeças para analisar a tela luminosa do aparelho. Não deixava de ser uma situação divertida como logo tratei de indicar.

"É muita tecnologia pro senhor?" Curiosidade e escárnio cruzavam-se em minha voz. Seu Silvério estava tão compenetrado em sua tarefa que não assimilou minha zombaria implícita e deu de ombros.

"Ela instalou um programinha esquisito no celular, essa porcaria de Zap Zap, e eu não consigo..."

Uma pequena fração de segundo. Um encontro de olhares cúmplices.

Seu Silvério foi interrompido pelo som de gargalhadas. Quando elevou os olhos para entender o que se passava, encontrou eu e Giane contorcendo-nos de tanto rir em nossas respectivas posições; eu rolava pelo chão e ela abafava os sons com uma almofada sem muito sucesso.

"Pai," Giane iniciou, tentando controlar o ritmo agitado de sua respiração, uma mão espalmada sobre o peito. Interessante como seu pescoço e colo também coravam intensamente. A pele continuava branquinha, porém salpicada de vermelho. Quando dei por mim estava observando com suprema concentração a maneira como o rubor esvaía-se lentamente. "Não se fala Zap Zap, é WhatsApp."

"WhapsAtt?"

"WhatsApp!"

"Qual é a diferença que faz?" Seu Silvério jogou os braços no ar. "Me ensina a mandar foto nisso aqui."

"Sem querer me intrometer, mas já me intrometendo," falei e as cabeças deles se viraram para encarar-me "por que o senhor precisa tanto aprender a mexer no WhatsApp?"

"Eu encontrei uns amigos antigos da rodoviária na internet e estamos tentando manter o contato de qualquer jeito."

Giane ergueu uma sobrancelha para mim e disparei-lhe com um sorriso sacana no canto da boca.

"E o que um bando de burro velho quer fazer juntos, hein?" ela falou. Depois permaneceu a fitar-me de esguelha, insistindo que eu continuasse sua linha de pensamento. Obedeci com prazer.

"Já tô vendo seu Silvério só na zoeira com os colegas, falando de mulher e tomando porre adoidado."

"Por que eu fui te trazer aqui pra casa mesmo, Fabinho?" O tom dele era um tanto envergonhado, porém bem-humorado em essência. "Agora a Giane vai ter um comparsa pra irritar os outros."

Que cintilância apoderou-se do olhar dela depois de tal afirmação! Senti seus movimentos mais dóceis que antes: a forma como indicava o funcionamento do aplicativo para o pai, a paciência com que corrigia seus erros... Parecia quase delicada, quase uma menina. Pois talvez o fosse, ainda que em tão curtos momentos. A vida prometia convivência diária para nós; estaria eu apto a descobrir esse lado secreto dela que por vezes transcendia sua postura rija?

Sua voz tornara-se até mais fina e serpenteava pelo ar não como ruído, mas como música. Sua fala era macia e carinhosa com o pai. Era como que as frases sorrissem ao deixar seus lábios. Instinto naturalmente feminino de ajudar, cuidar, curar. Como garoto imaturo postei-me a fitar suas atitudes com absoluta estaticidade. Ela fizera o mesmo comigo, não? Seu empenho em me tratar poderia ser visto de maneira igual por uma pessoa de fora? Igual na dedicação e na vontade?

Veja bem que há certas mulheres que um homem é incapaz de florear com palavras. Terminam por ser estas mesmas as detentoras finais de sua razão ou ausência dela. Naquela época eu sequer imaginava tal possibilidade, mas talvez a forma vidrada com que eu acompanhava a "aula" que Giane dava ao pai deveria ter sido um alerta.

Os minutos correram e quando dei por mim seu Silvério poderia até ter virado um segundo Steve Jobs e eu não perceberia. Ele saiu do sofá ainda um tanto frustrado.

"Acho melhor eu ficar com as minhas cartas mesmo, viu." Balançou a cabeça e acenou para nós. "Eu vou lá na casa do Gilson ver se o Jonas me dá uma mão."

Giane arregalou os olhos e levantou-se em um pulo.

"Pedir ajuda do Jonas?! Eu tô aqui há quase dez minutos tentando te ensinar! Pra que eu sirvo?"

Abafei uma risada. Ela parecia uma figura cartunesca de tão bizarra!

"Eu não tô entendendo nada ainda e o Fabinho deve estar se sentindo excluído, coitado." Logo manipulei um biquinho de dissimulada melancolia. Apenas ouvi Giane bufar.

"Esse aí adora se fazer." Indicou-me com um aceno. "Não tá excluído porra nenhuma."

"Olha a boca, menina!" Seu Silvério bateu o pé com efeito, o que arrancou um pulo assustado de Giane. "Eu já vou e vocês” Incluiu-me em seu campo de visão "se comportem. Não quero ninguém se matando quando eu voltar."

O velho abandonou-nos e bateu a porta em sua saída quase teatral. Enquanto Giane aparentava sujar as calças de medo eu tornei a encarar o soalho, cutucando desleixado um dos dedos do pé.

"Tem que obedecer papai," Recitei cada letra com lentidão, como que fosse uma criança aprendendo a falar "senão ele lava a sua boca com sabão."

Naturalmente, ela logo se armou inteira para revidar: chamou-me de chato e desferiu um tapa em minha cabeça. Ah, eu tinha o dever de me vingar! Agarrei a mão de Giane e já ia usar-me de toda força para obrigá-la a beijar o chão quando ela fez o movimento oposto e puxou-me pelo pulso. Acompanhei um contorcer inesperado de suas feições, que se converteram em um misto de nojo e temor. Percebi que ela mirava um ponto atrás de mim, logo me virei um tanto para entender a causa de tamanha aflição.

Lá estava ela, vilã cruel e impiedosa a espreitar-nos... Uma barata!

Xinguei enquanto tentava levantar-me. Giane pouco ajudou, pois seus dedos estavam fracos ao extremo.

Ela estava inerte, uma figura pausada no universo. Os olhos pareciam mais duas bolas. Os lábios superior e inferior apertavam-se um contra o outro, provavelmente suprimindo uma exclamação.

E foi então que entendi. Giane tinha medo de barata.

Como não rir de coisa tão curiosa? Tamanha postura de machão escondia nada mais que uma menininha com fobia de animal. Ela segurou meu braço com ímpeto. Se esta era uma forma de castigar-me ou proteger a si mesma eu não sabia muito bem dizer.

"Mata logo," ela pediu. Já era impossível mascarar seu pavor.

A barata olhou para mim e eu olhei para ela. Estava lá paradinha...

Resolvi brincar.

"Mata você, moleque. Chinelada na cara das inimigas!"

"Cretino!" Um soco no meu ombro. "Safado!" Outro soco. "Escroto!" Mil socos! "Mata logo..."

Um segundo. Todas as luzes apagaram-se. Grito agudo. Um corpo grudado na lateral do meu.

"Fabinho!" Veio o berro a perfurar meu aparelho auditivo. Conclui que isto poderia ser mais assustador ainda que um inseto.

"Ai!" exclamei quando Giane cravou as unhas em meu braço sem piedade. Odiei com toda minha alma ou falta dela o fato da maloqueira ter virado modelo. Como se já não bastasse sua violência habitual, ela passara a ter verdadeiras facas nas mãos! "Para, tá me machucando, cacete!"

Mas ela não me largou, muito pelo contrário; seu torso continuou pressionado contra mim. Sua pele estava molhada de suor. Como tremia! Tamanho medo era uma alegoria por si só. Minha mente malévola não demorou a elaborar um plano para tirar proveito da fraqueza de Giane e envergonhá-la ainda mais. Era uma oportunidade perfeita! A garota que eu mais odiara na vida postada diante de sua maior inimiga: uma barata. Eu seria um tolo de desperdiçar essa chance!

Transformei meu braço livre no instrumento de estratégia tão cruel. Tateei em busca da perna mais próxima de Giane, mesmo tendo de envergar as costas para tal feito. Foi com leveza que roçei meus dedos na coxa dela. Leveza e ousadia. Ousadia e algo que eu não sabia nomear.

Giane soltou outro grito e atirou-se contra mim, meu pescoço como âncora.

Desnecessário explicar que deu merda.

Pense bem: qual seria o nível máximo de impacto que um homem com uma perna ferida seria capaz de aguentar? Garanto que uma mulher bomba ultrapassa qualquer limite que você possivelmente imaginou.

Sim, isso que ela era, uma mulher bomba. Explodiu em cima de mim e quando vi eu estava despencando no sofá, o qual nos recebeu com um rangido ensurdecedor.

Um segundo. Todas as luzes acenderam-se. Torpor agudo. Um corpo grudado sobre o meu.

"Tá gorda, hein?" zombei antes mesmo que Giane conseguisse registrar que estava deitada em cima de mim. "Levanta, pivete, já tá me esganando!"

Ela se postou de joelhos no espaço entre minhas pernas. Era sim uma posição inusitada e eu estava prestes a comentar tal detalhe quando ela iniciou uma onda de agressões contra meu peito. Só faltou jogar uma bomba atômica na minha cara e assistir à explosão de seu "querido" Fabinho.

"Calma, tá louca?!" Agarrei-a pelos pulsos na tentativa de dominá-la, algo que eu não conseguira fazer com frequência durante a estadia na casa dela. Giane tentou desvencilhar-se, portanto tive de intensificar a pressão de meu aperto até ouvir um gemido de dor escapar seus lábios rosados. Por um momento, julguei ter ido longe demais em minha autodefesa; tomado pelo receio de tê-la machucado de fato, soltei as pequenas mãos imediatamente.

Foi com assombro que assisti a algumas lágrimas deslizarem pelas bochechas de Giane. Ela afastou-se de pronto, recostando as costas no canto oposto do sofá. Percebi que evitava mirar-me e que jamais deixava os pés tocarem o chão.

Apenas uma palavra vinha à minha cabeça: fodeu.

Eu já não sabia abordar pessoas com emoções estáveis. O que dizer de uma garota maluca que subitamente decidira se dissolver em prantos?

"Giane?" chamei baixinho, testando uma possível reação. Nada. Sentei-me um pouco mais perto dela. "Giane?" Nada novamente. Perdi a paciência e elevei o tom de voz. "Tem como você parar de palhaçada e me explicar porque tá chorando?"

"Hã?" ela disse indignada. "Palhaçada é o que você fez quando não quis matar a barata!"

Parei. Ela não podia estar falando sério.

Virei-me até que estivesse encarando Giane bem de frente e fixei meus olhos nos dela.

"Você já viu Chuck Norris dançando balé?" veio a pergunta inusitada.

Giane ergueu uma das sobrancelhas, esquecendo quase imediatamente que choramingava há pouco.

"Como?"

"Estranho, né?" Controlei-me ao máximo para manter o semblante sério. "Eu também nunca vi moleque de rua com medo de barata."

Ela piscou, algumas lágrimas ainda a colar os cílios fartos. Achei essa reação tão singela, tão... Ah, era impossível definir. Seus ombros encolhidos davam-lhe a ilusão de ser ainda menor.

Não mais refleti e decidi erguer-me. Era hora de fazer o que talvez fosse uma das primeiras boas ações em minha vida. Além disto, uma fração de meu cérebro considerou sábio fugir antes que eu pudesse sofrer outro ato de violência.

Rondei com cautela a região antes ocupada pela barata; ela podia estar escondida em qualquer canto sombrio daquele cômodo. Tratei minha busca quase como uma expedição da NASA, pois se eu não obtivesse sucesso... Bem, era Giane quem me fornecia comida, cama e vaso sanitário. Eu praticamente tinha a obrigação de destroçar aquele bicho maldito.

Por pouco não chorei de emoção quando avistei a criatura em questão. Ela tentou escapar, mas logo pisei em seu corpo nojento.

"Aleluia, caralho!" Atirei os braços no ar. Em seguida, virei-me e apontei para Giane. "Já pode me agradecer e admitir que não consegue mais viver sem mim."

Seu rosto iluminou-se com uma emoção um tanto difícil de explicitar. Seria surpresa? Satisfação? A única certeza era que ela lutava contra um sorriso tão teimoso quanto si mesma. Quando dei por mim ela já me abandonava corredor afora.

"Vou tomar banho. Cuidado que sua bola pode 'sumir' sem querer."

Óbvio que uma ameaça destas era abusada demais para que eu não fizesse nada. Quinze minutos depois estava eu alcançando o quarto de Giane com uma ideia infantil, porém infalível: invadir o cômodo aos berros e dar um grande susto naquela maloqueira. Também estava munido de informações preciosas, como os locais exatos onde ela sentia cócegas. Obrigado, infância e boa memória.

Cheguei no final do corredor e já ia girar a maçaneta quando notei que a porta estava um pouco aberta.

E pela fresta da porta pude ver.

Silhueta. Alva. Curvilínea.

Meu corpo congelou de pronto, mas o mundo continuou a girar veloz. Tamanha tontura acometeu-me que não mais senti as pernas; poderia ter-me desequilibrado não fosse a rigidez que roubou meus músculos. Um por um foi tensionando até que me tornei figura pétrea por inteiro.

Como era terrível minha imobilidade! Como era indecente apreciar um corpo de mulher sem ela saber! Realmente, meu canto no submundo já estava guardado.

Mas que eu podia fazer se tudo de delicioso na vida queimava como o fogo do inferno? O homem incerto dentro de mim ganhou espaço e subjugou minha mente e sussurrou no meu ouvido.

"Olha," ele disse "olha o que não é teu. O que nunca foi teu. O que jamais será teu. Olha e degusta, mas não te arrependes."

E assim o fiz.

Cúmplice e carrasco, a Lua permitiu que eu descobrisse pedaços de pele antes ocultos para mim. Giane andava pelo quarto apenas de roupas íntimas, os seios acompanhando seus movimentos com um leve balançar.

Desejei tantas coisas! Quis que ela se aquietasse por um minuto. Quis ter mãos para tocar e lábios para beijar. Acima de tudo, quis que aquele bojo irritante desse lugar a um tecido bem mais fino, de preferência com certa transparência, porém não menos apertado.

Ah, mas se fosse apenas isto... As andanças de Giane salientavam o remexer de seus quadris, quase uma dança a seu próprio modo. Ela era toda cintura e coxas e bunda e eu apenas conseguia encará-la vidrado.

Agarrei a soleira da porta em um impulso. Coisa inútil; a madeira sob minhas mãos não era capaz de matar tamanha fome. O que um homem poderia querer com materiais inflexíveis e de ângulos retos quando tinha o calor de curvas sinuosas para desfrutar?

Exceto que talvez "desfrutar" não fosse a palavra certa, pois eu estava sendo torturado sem a menor compaixão. Bufei e fiz de ir embora. Eu não devia estar ali!

"Não está gostando?" falou a face mais sedenta de minha mente. Balancei a cabeça em negativa. "Mentiroso. Não diga que é errado. Você nunca teve pudores." Vi Giane pegar um frasco da mesinha. "Olha bem." Ela retirou um pouco de creme da embalagem e apoiou a perna esquerda sobre a cama. "Você pode."

Sim, eu podia...

Umideci a boca ao acompanhar o trajeto das mãos dela. Começaram massageando as canelas e foram subindo, subindo... Com certeza encontraram cicatrizes no caminho, muitas causadas por mim. Imaginei que eram meus dedos a alisar a pele de Giane a procura de marcas minhas.

Ela voltou sua atenção à outra perna, a qual acariciou com igual habilidade. Suas unhas compridas arrastavam-se contra a carne de um modo que certamente deixaria rastros de vermelho. Recordei os arranhões que ela provocara em meu braço mais cedo.

Eu estava delirando! Mordi o lábio com tanta força que saiu um pouco de sangue. Senti-me o mais nojento dos seres, nada que eu não fosse. No entanto, vê-la tão secretamente acendera meus instintos mais comburentes que permaneciam mudos desde meu último súbito de loucura: o incêndio. Eu não sabia explicar porque era exatamente a visão de Giane que me atiçava. Cheguei à conclusão de que era uma reação normal sentir atração por uma mulher que se despia bem na minha frente.

A chave da incompreensão não jazia no fato de ser Giane por si só. A questão central eram as peças reveladoras que vestia, a feminilidade que exalava, o desconhecimento de que era assistida e de que gerava tamanha sede em seu observador. Sim, esta era uma explicação bastante plausível.

Ela não esperou nem que eu tornasse a respirar e deu sua cartada final, a que aniquilaria quaisquer chances de eu conseguir dormir naquela noite. Para minha sorte ou azar Giane virou-se de forma que eu apenas enxergava o contorno de suas costas. Ela então procurou o fecho do sutiã e abriu-o, retirando-o completamente logo em seguida.

Era o meu fim. Adeus, mundo cruel!

"Fabinho, que você tá fazendo?"

Dei um giro tão repentino que o pescoço estalou. Diante de mim estava seu Silvério.

Puta merda!

"Hã..." Cadê minha aptidão para a mentira quando eu precisava dela? "O quê?" finalizei patético.

"Você tá bem?" Ele me sondou com o olhar idoso. "Tá aí parado encarando a porta."

Será que ele não percebera que eu estava a espiar sua filha? Analisei até as entradas de seu cabelo em busca de uma resposta. Deduzi que se ele soubesse de algo eu já não estaria mais vivo.

"Eu tava..." Fui interrompido pelo próprio seu Silvério, que pôs a mão sobre meu ombro e deu um leve tapinha.

"Vai dormir, Fabinho. Você parece exausto."

Assenti com a cabeça e fugi ligeiro antes que ele percebesse o vão da porta. Tranquei-me no banheiro e joguei muita água gelada no rosto. Mais alguns minutos e o quarto de Giane estaria liberado para que eu pudesse lá dormir. Como eu aguentaria passar tantas horas deitado na cama dela depois do que acabara de ocorrer?

Não havia outro jeito. Aquela seria uma longa noite.