Cuida bem da tua forma de ser

Amanhã o dia vai ser

Diferente de outro dia

E no fundo, bem no fundo, você sabe como

Isso é legal

Ter alguém que entenda

Essa sua transição

Como é legal

Essa sua transição

Tulipa Ruiz - Aqui

***

Através da janela do quarto, o mundo parecia-me um tanto estranho. Por quê? Não sabia. Uma ou outra criança brincava; um casal beijava-se; pessoas normais andavam; enfim, coisas tão corriqueiras! Como eu podia estar incomodado? Aquela voz remota de algum canto de mim sugeriu que a felicidade alheia me causava arrepios, o que não deixava de ser verdade, considerando o grande filho da puta que eu sempre fora.

Incapaz de aguentar mais disto, fui sentar na cama. A questão: ela não era minha! Os lençóis eram emprestados, tal qual o colchão, tal qual o madeiro todo. Se eu respirava sobre aquele maldito objeto, devia me lembrar de que o fazia de favor. Ainda havia algo que pudesse ser creditado como de minha posse, afinal? A resposta: não, obviamente.

Corri os dedos pelos tecidos; estes estavam amassados das minhas constantes movimentações durante o sono, ou melhor, não-sono, já que eu nada conseguira dormir. Em partes, isto se deu pois eu passara a noite tentando construir uma próxima estratégia de sobrevivência. Não poderia me manter hóspede de Giane pelo restante dos tempos! Com a perna mais forte, as desculpas para não fugir estavam mais fracas. Em breve poderia - deveria! - ir embora daquela casa e tornar ao meu solitário caminho.

Por outro lado, havia motivos de preocupação um quê menos dignos. Veja bem: na cama em que eu repousava já passaram as pernas, os braços, o corpo todo, todo, todo de Giane de Souza. Isto não seria um problema, evidentemente, caso eu fosse outro homem e ela outra mulher: menos complicados, menos avessos. Ou poderíamos ser os mesmos de sempre, apenas se ela não me tentasse, ainda que sem saber, com relances de seu corpo seminu. Bem, aqui poderia existir um acordo razoável: não me provoques e nada farei disto, bem como já dizia o ditado "o que os olhos não veem, o coração não sente".

Exceto que eu já vira o suficiente para que o tal coração, se é que um ser como eu o tem, reagisse de forma demasiada. Outras regiões também, somente mencionando.

Melhor eu me levantar da cama, o leitor há de concordar. Certas situações são muito perigosas para a integridade física e mental de um mero rapaz de 23 anos.

Correndo desse pensamento nocivo, fui cair em outro pior. Quando dei por mim, já tomara as chaves ocultas na cozinha - meus talentos de meliante não se esvaíram de todo, felizmente - e destrancara a porta da sala.

Foi então que reencontrei um velho inimigo: a rua. Sentado às escadinhas do quintal, ela não parecia tão ameaçadora. No entanto, bastava ver os sacos de lixo jogados na calçada para que certas lembranças fizessem de voltar. Agradeci aos céus e a todos os santos, nos quais eu não acreditava, por haver aquela mureta salvadora a separar-me da selva lá de fora.

Engraçada essa sensação de proteção. Jamais...

Mão em meu ombro. Dei um pulinho. Que coisa vergonhosa! A pessoa que me tocou também achou cômico, pois começou a gargalhar. Riso meio fininho de garota. Quem mais podia ser? Giane sentou ao meu lado. Preferi não olhá-la. A tal mão foi-se fincar no meu joelho, mais especificamente na minha bermuda, a fim de dali retirar uma manchinha esbranquiçada. Quando ela ficara tão confortável com contato físico, ainda mais comigo, esse homem monstruoso?

Mas eu esquecia que Giane agora era uma modern lady, do tipo que fazia tatuagens e andava de minissaia e beijava na boca. Ela não tinha porque me temer. Na verdade, se alguém havia de temer, esse alguém era eu.

Suspirei.

"Pensando?" ela questionou com suavidade tamanha que não tive escolha senão fitá-la. Eu podia estar louco, ouvindo coisas! Mas não, Giane tinha mesmo aquele semblante concentrado de quem faz uma pergunta. Queria eu dar de ombros em indiferença e nada responder, mas acabei assentindo. Que fraco!

Tentei fazer a egípcia e tirar-me do centro de assunto, porém não deu muito certo.

"Não conseguiu dormir?" falei também muito baixinho. Um leve rubor surgiu nas bochechas de Giane. Mas o quê?! Por que caralhos ela estava corando?! E por que caralhos eu queria descobrir porque ela estava corando?!

"Não," ela murmurou. Encarava as próprias mãos, talvez escondendo a cara vermelha.

Eu deveria dizer algo? Conhecendo minha falta de tato, eu provavelmente acabaria falando uma merda digna de tomar um chute no saco. Ou pior: e se ela desse de chorar, igual quando eu me recusara a matar a barata? Isto sim seria desesperador: uma mulher em prantos!

Pigarreei.

"Hã... Eu também não dormiria se estivesse abrigando um foragido da polícia em casa?" Soou absurdamente como uma pergunta. Foi uma tentativa, na verdade. Segurei a respiração. Que Giane voltasse a ser Giane, enfiml!

Felizmente, funcionou. Ela caiu na risada, discreta, mas ainda assim uma risada. Voltou a olhar para mim - mesmo eu não tendo noção se isto era bom ou ruim, considerando a estranheza da situação.

"Verdade." Deitou a cabecinha nos joelhos, um sorriso manhoso na boca. "Você precisa fazer essa barba, sabia?"

Que mudança inesperada de assunto! De imediato, toquei minhas feições. Os pelos estavam abundantes, talvez mais que o comum... Mas eu não iria admitir que Giane tinha razão, claro, logo me limitei a dar de ombros.

"Tô vendo que você levou a sério essa coisa de ser m... general," finalizei um tanto porcamente. Por quê? Bem, digamos que não era necessário usar um pronome possessivo para alcunhá-la: 'minha' general... Não, isto não seria nada condizente com a imagem de bad boy por mim criada, tampouco com o modo másculo como eu estufava o peito naquele momento.

Giane ergueu o tronco com tamanha rapidez que apenas presenciei o espectro do movimento. Colou uma das mãos à testa, e assim tinha pronta uma bela postura de militar.

"Pra você eu não sou general, Queiroz. Eu sou marechal."

Curvei-me em debochada reverência. "Claro, Excelentíssimo Pivete!" falei com voz engrandecida, como que me dirigisse ao sumo da realeza. E não era isto que Giane desejava ser? Ela era meio tirana, sempre fora. No entanto, chamar-se de ‘general’ parecia-lhe muito mais atraente que, olhe lá, uma rainha absolutista ou coisa que o valha. Por quê? As mulheres não amavam ser comparadas a rainhas? Havia algo de maravilhoso naqueles vestidos e joias! Mas não, Giane preferia uma figura adornada de farda. E de um ar masculino inegável também. Talvez, sob aquelas roupas róseas e tentadoras, houvesse a carcaça da antiga mulher, que nenhum homem - nem eu próprio! - ousara chamar de mulher.

Minha cadência de pensamentos foi interrompida por um tapinha no braço, e, pela primeira vez, eu até gostei de ser agredido.

"Sabia que confundir o gênero do superior pode dar cadeia?"

Girei os olhos. Estávamos mesmo em mais uma sessão de provocações? Era um esporte divertido, eu hei de confessar, mas não quando você fica sem paciência ou ânimo ou criatividade suficientes para formular uma resposta digna. Trabalhei para que todos os cantos da minha cara falassem “Foda-se”.

"Ah é? Pode me prender então."

Pisquei e as chaves não estavam mais em minhas mãos. Pisquei novamente e Giane já correra a trancar a porta, metendo-se dentro de casa logo em seguida.

Se suspirei de riso ou de apatia, vá lá saber; apenas suspirei. Em parte, achava graça do jeito dela, mas, na mesma medida, estava eu imune a humor. Ela não conseguia enxergar que não era o momento mais adequado, afinal?! Talvez não. Bem, eu não podia esperar compreensão de uma pessoa que passara a vida circunscrita a uma estufa, regando flores murchas e seguindo o melhor amigo feito bicho de estimação.

Não me mexi. Fiquei olhando a rua.

Um ruído avisou que a fechadura tornava a ser aberta. Giane escorregou em meio ao ar, o ar que perfurava meus sentidos sem muito convite, bem ao modo dela própria. E então estava em pé a meu lado. E então estava sentada a meu lado. Dez minutos mais e ela ainda não abrira a maldita boca. Isto havia de ser um recorde! Não que estivesse de todo aprumada; um rubor percorria-lhe a face, e eu não sabia bem porquê.

Um pensamento desesperadamente altruísta veio-me bater à consciência: e se Giane não lidara bem com o fato de eu não tê-la seguido à porta? Óbvio que aquela maloqueira só poderia desejar que eu implorasse! Pensei em render-me à raiva - sim, pensei! -, mas logo lembrei como até as roupas que eu vestia eram emprestadas, e assim as forças regentes do universo tornaram às devidas fórmulas.

Ah, eu não sabia como, mas encontraria um jeito de livrar-me desse imenso favor que agora eu devia a Giane e seu pai. Fábio Queiroz não era homem de depender de ninguém, entenda!

Enquanto o amanhã não chegava, bem como suas promessas de restaurar-me a dignidade perdida, esquadrinhei o céu em busca de figuras familiares. Uma estrela ali, outra acolá, e nada de Lua! Era uma abóboda negra - e um tanto inclemente, como uma mãe que se abstém de seus filhos - a encarar-nos lá do alto.

"A noite tá meio escura pra cacete hoje," comentei, em seguida rangendo os dentes frente a meu vocabulário no mínimo 'eloquente'. Pior: que tipo de assunto era este?! Imagino que fosse algo digno de Bento e seres afins, portanto me resignei a aguardar o possível deboche de Giane.

Este não veio. Ela também mirou o céu por um instante. Deu de ombros.

"É, eu acho que sim."

Não nos mexemos. Ficamos olhando a rua.