Antologia

Borboletas e Furacões


Mude
Tudo que você é
E tudo que você foi
Seu número foi chamado
Brigas, batalhas começaram
Punição certamente virá
Seus tempos difíceis estão logo a frente

Melhor
Você tem que ser o melhor
Você precisa mudar o mundo
E use essa chance para ser ouvido
Sua hora é agora

Não se sinta desanimado
Não deixe você desistir
Sua última chance chegou
Muse - Butterflies and Hurricanes

***

"Abre a boca, vai."

Eu devia estar no inferno e não sabia.

A visão era degradante: Giane com um prato de sopa em uma mão, uma colher na outra e lábios contorcidos em um sorriso pecaminosamente debochado.

"Olha o aviãozinho, fraldinha!"

Eu não queria... Era além do que que eu podia aguentar...

Eu bufava e tremia e sufocava e lacrimejava. Tudo enquanto acompanhava o leve fumegar da sopa.

Sentia-me inválido. Inútil. Derrotado. Se eu me desse um momento, somente uma fração mísera de tempo para cobrir o rosto nas mãos e chorar, estaria certificando minha fraqueza? Comprovando minha diminuta hombridade?

De certo, que homem eu era? Poderia eu ainda ser chamado de ser humano depois de tudo que sucedera? Passar dias em fuga, catando comida do lixo e conversando com ratos... Quem era eu para dizer qualquer coisa, mas essas condições mais pareciam as de um animal.

Ou pior. Lembrei-me do cão do vizinho, Pixinguinha. Bem tratado, de pelagem macia e penteada, gordinho. Amado. Perdera-se pelas esquinas e foi encontrado por mim. Eu imaginava quantas pessoas celebraram seu retorno; certamente muito mais do que no meu caso.

Engraçado comparar-me a esse bicho. Não era isto que eu sempre dizia, que todos me tratavam como cachorro?

A verdade era que a vida não passava de uma grande filha da puta que adorava esfregar as coisas na minha cara, dia após dia. Qual prova seria maior que a garota que estava na minha frente? Giane sempre fora um desafeto, uma criaturinha que eu considerava digna de desprezo. Eu já não conseguia mais contar a quantidade de vezes que eu a ofendera, e tampouco de socos que levara de suas mãos violentas.

Ironicamente, era ela quem me dava comida na boca naquele momento.

Ou, pelo menos, tentava.

"Qual é o seu problema, Fabinho? Você não pediu minha ajuda?" Ela estava frustrada. Minha reação? Fixar os olhos em um fiapo retorcido do lençol.

Giane soltou um pesado suspiro.

"Olha pra mim, cara." Não houve resposta. "Levanta essa cabeça." Quando novamente foi ignorada, ergueu rapidamente uma das mãos, mirando-a em meu rosto. Pressenti que ela estava prestes a repetir o feito da manhã e estourar-me um peteleco bem no meio da testa. Mesmo drogado por minha enfermidade, voei a mão na dela com força, bloqueando seu movimento. Giane podia ter trejeitos e astúcia de moleque de rua, mas eu ainda carregava a força masculina em meu favor.

"Não precisa dar porrada na minha cabeça, eu sei levantar ela sozinha."

Soltei sua mão com força, como que aquele contato queimasse. Giane pôs-se a examinar a marca vermelha deixada por meus dedos em sua pele, as sobrancelhas muito enviesadas. Quando finalmente elevou os olhos, eles tinham um brilho sombrio de cólera.

"Viu o que você fez, garoto?" Meus ouvidos doeram ao som da voz estridente de Giane. Eu não acreditava em Deus, mas rezaria o Pai Nosso mil vezes para livrar-me do azedume de suas palavras.

"A culpa é minha, por acaso? Você que tentou me bater primeiro."

"Você é engraçado, sabia? Pede a minha ajuda, fica de marra e depois ainda quer reclamar! Já deve estar ótimo mesmo!"

"Você acha?" Falei, soltando um riso de escárnio. "Me diz então qual parte da minha vida tá tão boa pra você. É essa perna fodida ou a minha ficha na polícia?"

Um escarlate doentio roubou as feições de Giane. Vermelho de repulsa, enegrecido por tons do mais asqueroso púrpura. Rubor inflamado que evidenciava uma veia protuberante em sua testa. Que se tornara aquele rosto senão um matizado do ódio?

"Por que você não baixa a bola nem por um segundo, cara? Eu tô tentando te ajudar!" As palavras dela saíram irregulares. As letras ressoavam desconexas, emendadas desleixadamente a cada erro cometido. Esforçou-se muito para terminar a frase, e quando o fez... Desfez. Ela levantou e retrocedeu alguns maus passos. "Ah, cansei. Come sozinho, vai. Só não suja o lençol porque meu pai que vai limpar depois."

Distanciamento esperado. Ninguém suportava encarar-me de perto; eu tinha a capacidade de provocar nojo. A forma como ela se esquivara de mim fizera-me parecer um bicho infecto. Bem, nada que eu não fosse.

Afundei no branco dos tecidos e agarrei-me a eles para não fraquejar. Os vapores da sopa serpenteavam pelo ar. Cheiro de enjoo. Tontura de vômito. Um olho lacrimejou.

Tateei em busca da colher. Tremi todo ao tentar preenchê-la com o líquido esverdeado. Cor de náusea. Os legumes flutuavam e a cabeça girava e o macarrão boiava e os olhos fecharam. Seria aquele o talher escorregando? Milímetro por milímetro. Eu já podia ouvir o ruído do metal encontrando o chão... O som nunca chegou.

Mãos em meu rosto. Percorreram as bochechas, a testa, o pescoço. Eram brutas, mas macias. Eram de Giane.

"Fabinho! Fabinho, você tá bem, cara?" Novamente aquela voz aguda a gritar na minha cara. Eu devia afastá-la, eu queria afastá-la, no entanto desatei a procurar por ela. Desnorteado, apalpei às cegas até sentir carne sob meus dedos. A pele ameaçou fugir de minhas palmas suadas, mas segurei-a com força.

"Fabinho?" Giane estava mais quieta, como que indagasse a si mesma.

Não era a única a surpreender-se; eu mesmo mal acreditava no que fazia. Por que eu buscava o amparo dela? No fundo eu sabia... Era meu corpo implorando pela ajuda que eu não conseguia pedir.

Eu estava cansado, principalmente de mim mesmo. Os vinte e quatro anos de minha vida mais pareciam ser o dobro. Sentia-me um velho às vésperas da morte. Quanta energia fora despendida em amargar ressentimentos incuráveis? Eu temia não restar nenhuma força vital para me sustentar.

Eu queria viver, mesmo não sabendo mais porquê. Renascer.

Mas ninguém queria minha presença.

"Fabinho? Fala alguma coisa!"

Ninguém sentiria minha falta.

"Para de fricote, hein? Isso é coisa de garotinha!"

Ninguém queria cuidar de mim.

"Não adianta dar piti que eu não vou te largar até você parar com a frescura!"

Talvez...

Joguei meu tronco para frente e vomitei. Foi como expulsar todo o veneno acumulado em mim. A garganta ardia e o gosto era podre, mas ainda assim apreciei estranha onda de liberdade.

Giane soltou uma exclamação de susto, mas não tentou soltar-se de minhas mãos. Usei aquele contato como apoio para retomar o equilíbrio quase finado. Alguns segundos mais e a cabeça recostou-se no travesseiro. O coração já pulsava um pouco mais devagar.

Abri os olhos. Encontrei os dela. Cintilavam.

Talvez...

Giane desgarrou-se de meu aperto firme em seus braços, que deixaram algumas marcas vermelhas na palidez de sua pele. Tomou a toalhinha que jazia sobre a mesa de cabeceira. Em seguida deslizou-a sobre meu rosto, secando o suor. Cada movimento parecia pertencer a uma dimensão paralela, como que eu não vivenciasse aqueles toques de fato. Eles eram dotados de agressividade, mas também de sincera preocupação. Tão surreal... Quando percebi já inclinava o pescoço para que Giane limpasse algumas gotinhas teimosas.

"Por que você não deixou eu te dar a sopa direito, hein? Moleque teimoso." Ela não parecia inquirir nada, mas sim... Provocar-me. Demorei um tanto para assimilar a leveza de sua voz em meio a tanta tensão. Era tão mais fácil ver o mundo em preto em branco.

Não soube muito bem o que dizer, logo me limitei a dar de ombros. Giane agora estava ajoelhada sobre a cama tentando ajeitar o travesseiro no qual eu me recostava. Sua perna pressionada contra a minha. Estávamos nos encostando. Parecia natural.

Talvez...

"Não vai limpar?" Indiquei a poça nojenta no chão, que ela ignorava.

"Já tá querendo dar ordem?" Giane soltou uma risadinha enquanto lutava para encaixar o travesseiro de maneira que fosse confortável para mim. "Você não tá com essa moral toda não, garoto."

Os cantos de minha boca levantaram-se involuntariamente. Como era possível? Há poucos instantes sentia-me o mais indigno dos seres.

Talvez...

Giane mirou-me de esguelha, uma emoção diferente no sorriso. As sobrancelhas arquearam-se um tanto, como que me desafiassem.

"Vou me vingar dessa birra toda que você fez." Sem dúvida ela planejava algo. Tentou controlar a gargalhada e parecer decidida, mas o que conseguiu foi arrancar-me um riso baixinho e rouco.

"Ah é?" Retruquei com o mais puro deboche.

Os olhos de Giane semicerraram-se e ela os piscou dissimulada, os cílios volumosos subindo e descendo rapidamente. Senti-me envolto no mistério daquela expressão, na iminência de ansiar pelo tal castigo.

Percebi que minha punição seria severa quando Giane escancarou a boca e pôs-se a berrar.

"Ô pai!" Quase pulei no colchão em surpresa. "Vem cá ajudar que o Fabinho vomitou! Traz o pano de chão! Anda logo!" ela gritou continuamente sem piedade. O som de suas exclamações era como um chiado mortal a aniquilar meus ouvidos. Quase ergui as mãos para o céu e agradeci as forças divinas quando seu Silvério adentrou o quarto. Ele ordenou que Giane cessasse o escândalo e assim ela o fez, porém não sem bombardear-me com o mais irônico dos semblantes. Ela sabia que eu sempre odiara sua voz desde criança.

Bem, eu não podia reclamar grande coisa. Afinal, era o pai dela que estava limpando minha bunda alguns dias antes. Ah, o favor, nuvem negra que pairava sobre minha cabeça. Eu teria de aprender a lidar com isto.

Nos minutos seguintes seu Silvério e Giane trataram de limpar a sujeira que eu fizera e ajudaram-me a caminhar até o banheiro para que eu lavasse o rosto e escovasse os dentes. No final deitei novamente e degustei a suavidade do lençol. O sono sussurrava sedutor para mim, convidando-me para um universo muito particular no qual apenas eu existia. A inconsciência puxava-me para seu reino incerto; eu já ultrapassava a fronteira da matéria.

"Boa noite, fraldinha." Um cochicho irrompeu na escuridão. Giane.

Talvez...

Talvez eu fosse ficar bem.

"Boa noite, maloqueira."