Uma camada branca de neve estava sob Kingston. As férias de Natal começaram, e as moças da pensão da senhora Blackmore arrumavam suas malas, animadas com a volta a sua cidade amada, Avonlea. Finalmente poderiam dar uma pausa nos seus estudos, que ficaram mais intensos com a possibilidade da bolsa de Redmond.

Todas as portas do segundo andar estavam abertas, e todas gritavam, cada uma em seus quartos.

— Ah, como eu amo voltar para Avonlea! Não há lugar melhor no mundo que Green Gables - disse Anne, com brilho nos olhos e um sorriso estampado.

— Anne, pare de ser tão romântica. Kingston e Charlottetown são extremamente melhores do que Avonlea. Aqui tem música pelas ruas, lojas grandes, cafés. - Dizia Josie Pye, convencida do que dizia - Estou voltando exclusivamente pela minha família, se não, ficaria aqui.

— Josie, não minta, você não ficaria aqui se eu não estivesse aqui também. - Tillie disse enquanto arrumava um de seus vestidos dentro da mala, já amarrotada - Você pode amar cidades grandes, mas não mais do que suas melhores amigas.

— Meninas, não é só por causa de Green Gables que ela está animada para voltar. Gilbert também vai voltar, não se lembram? - Diana disse enquanto sentava em cima de sua mala, tentando fechá-la.

Ah sim, as meninas lembravam. Não porque Anne falava disso, pois sempre que mencionavam, ela ficava enrubescida e mudava de assunto, mas porque todas elas faziam questão de lembrá-la. Inclusive a senhora Blackmore.

Anne tinha um misto de sentimentos quanto a ver Gilbert novamente. Não sabia como ia reagir. Será que deveria abraçá-lo? Ou isso seria ousado demais? Poderia oferecer um aperto de mãos a distância, mas isso soava muito formal. Poderia fazer que nem as mulheres dos livros que lia, se jogando nos braços dele e recebendo um beijo nos lábios, porém, se Gilbert não entendesse nada, não a segurasse e deixasse ela cair no chão? Não, não poderia correr esse risco. Pensou em todas as formas do que fazer quando o visse, mas não encontrou uma resposta adequada. Ora, eles estavam se cortejando, porém, isso não deveria envolver beijos (mas sabia que as amigas já deram muitos beijos escondidos por aí), mas como já tinham pulado algumas etapas e já tinham se beijado, tudo soava muito ousado ou muito formal, já que em um aperto de mãos não teriam muito contato físico, e queria muito beijá-lo novamente. E, segundo Gilbert em suas cartas, ele também ansiava por esse momento. Porém, ao mesmo tempo que queria estar nos braços dele, lembrava das regras impostas.

Quando expressou suas indagações à Diana e Ruby, logo antes de arrumarem as malas, ambas riram muito da expressão de medo de Anne. Logo, Ruby falou:

— Anne, não é você que não vê sentido na maioria das regras?

Anne sabia que sim, afinal, muitas delas não faziam sentido. Mas, ao mesmo tempo, se perguntava o que Gilbert pensava sobre isso. Decidiu que o veria antes de todas as outras pessoas, assim, ninguém iria ver se ela reagiria exageradamente ao encontro. Mas as meninas não sabiam que isso ia acontecer.

Gilbert estava extremamente feliz, e isso era notável por todos os garotos da pensão em que morava. Não tinham tanto contato, pois todos eram alunos do mesmo curso e sabiam que isso demandava muito estudo, mas nas breves conversas trocadas sabiam o porquê da felicidade.

Veria Bash novamente, junto com Hazel e Delphine, sua família. Finalmente iria conversar com os Cuthbert sobre seu relacionamento com Anne. E, obviamente, veria sua Anne novamente.

Sonhou com esse momento nos últimos dias. Não confessou isso a ninguém, até porque nunca foi tão romântico a pensar tais coisas, e isso era algo muito novo pra ele. Já chegou a sonhar com a ruiva no navio, quando recebeu a carta dela, mas não de modo tão intenso quanto ultimamente. Sonhava que a abraçava, beijava, e confessava toda a saudade e amor que sentia por ela. Mal esperava vê-la pessoalmente.

Mal esperava também chegar o natal para dar seu presente, esperando ver a reação dela. Teria algo para lembrar dele todos os dias.

Sua mala não tinha muitas coisas novas, então, foi fácil de ser arrumada. Logo estava pronto para viajar. Não esperava ver Anne hoje, pois estava saindo de Toronto após o meio-dia, e ainda teria a parada em Kingston e, depois, em Avonlea. Demoraria para chegar, e provavelmente os Cuthbert não aprovariam ele visitar tão tarde Green Gables. Estava planejando ir até lá na manhã seguinte para chamá-la para um passeio. Anne chegaria logo cedo em Avonlea, pois o trajeto entre Kingston até lá não era longo, bastariam algumas horas.

Desceu a escada e se encaminhou para a saída, se despedindo de quem ainda estava lá no trajeto.

Anne, Diana, Ruby, Tillie, Jane e Josie chegaram à ferroviária de Kingston, todas com suas malas. Logo formaram uma fila, com Anne ficando por último intencionalmente.

— Ah meninas, lembrei que esqueci o presente de Gilbert na minha penteadeira! Vou precisar voltar para a pensão. - Disse Anne, logo depois que todas já tinham comprado suas passagens - Vou ir rapidamente para conseguir pegar o mesmo trem que vocês, mas caso não consiga, vão sem mim!

As meninas começaram a protestar, mas Diana percebeu qual era o plano de Anne, pois tinha visto ela colocar o presente de Gilbert na mala. Logo, deu um sorriso malicioso para a amiga, que fingiu não notar.

— Meninas, deixem Anne. Ela sabe se cuidar, tanto que já viajou sozinha antes! - Disse Diana, ainda analisando as reações de Anne conforme ela ia falando - Anne vai chegar a tempo, e caso não chegue, tenho certeza que ela irá sem problemas no próximo trem, às três da tarde. Irá chegar tarde, mas com o presente. Caso não chegue a tempo, avisarei Marilla, tudo bem?

— Ótimo Diana, obrigada!

Anne abraçou Diana, e a amiga sussurrou nos seus ouvidos:

— Aproveite o tempo com o Gilbert.

Quando se afastaram, Diana piscou para Anne, que corou. Sabia que não podia esconder nada de sua amiga por muito tempo.

Como eram nove horas da manhã quando deixou suas amigas na ferroviária, passou cinco horas passeando na livraria o centro de Kingston, saindo só para almoçar. O trem de Gilbert chegaria às duas da tarde, dando tempo dos dois passeassem juntos, caso ele aceitasse.

Ela já estava nervosa pensando no que faria, mas decidiu ser espontânea. Trocaram tantas cartas de amor e cumplicidade que saberia que, na hora que o visse, saberia o que seria adequado. Ou simplesmente esperaria ver como Gilbert reagiria, o que ela pensava que seria o melhor.

Antes de ir à ferroviária, tinha passado novamente pela pensão para tomar um banho e se trocar antes de ver Gilbert. Decidiu usar um novo vestido que tinha comprado a pouco tempo (um dos motivos de sua mala ser tão difícil de fechar), que era azul escuro liso e longo, com uma faixa na cintura, decote quadrado e mangas longas. De acordo com Diana quando foram comprar na loja, o vestido valorizava o corpo de sua amiga de uma forma elegante. Faltavam poucos meses para fazer dezessete anos, e quando ela olhava si mesma no espelho com aquele vestido, se sentia mais mulher. Definitivamente queria passar essa imagem para Gilbert.

Decidiu deixar seus cabelos soltos, pois como deixou-os presos durante a manhã, eles se desmancharam em cachos nas costas. Colocou um chapéu que combinava, um casaco e suas botas e logo saiu da pensão em direção a ferroviária.

Logo que chegou, viu que o trem de Toronto estava chegando ao longe. Trouxe a mala consigo, pois uma hora não era muito tempo para ir até a pensão, pegá-la e retornar à rodoviária. Tinha que passar o máximo de tempo com Gilbert.

Anne ficou parcialmente escondida atrás de uma coluna, pois queria saber quando Gilbert desembarcasse. Ele não sabia que ela estava esperando por ele, pois pensava que voltaria na companhia de suas amigas. Todas tinham combinado, e quando recebeu a carta de sua ruiva avisando, ela não tinha deixado margem para que ele pudesse a convidar para voltar com ele. E também seria demais chamá-la para ir consigo, pois ela teria que ficar sozinha por um bom tempo até ele chegar.

Seus olhos brilhavam quando via cada pessoa descer do trem, até que Gilbert, um dos últimos, descesse. Ele estava com sua mala e andando devagar, pois teria que esperar um bom tempo na rodoviária. Uma hora passa rápido na presença de um ombro amigo ou de um bom livro, mas lentamente quando aguardamos ansiosamente que ela acabe. Anne o seguiu com os olhos e o viu sentar em uma das mesas circulares dentro da ferroviária, ponto sua mala em cima da mesa e fitando o horizonte. Quando decidiu ir até ele, olhou curiosa para duas moças que desceram do trem junto com ele, que estavam olhando para ele e sorrindo. Uma delas estava sugerindo para que a outra fosse conversar com ele. Ah, ela sabia qual atitude tomar.

Anne foi sorrateiramente por trás de Gilbert, e pôs suas mãos nos olhos dele, vendando-o.

— Quem está aí? - Disse Gilbert, alarmado. Anne ficou quieta, abafando uma risada, que logo ele percebeu. Não esperava por ninguém, mas imaginou que deveria ser alguém que ele já conhecia, dada a intimidade. Logo, segurou as mãos e as afastou de seu rosto, olhando para trás.

Imaginava vê-la de novo só em Avonlea, no dia seguinte, e aquele momento era mais do que poderia imaginar. Anne estava linda. Seu sorriso risonho, olhos pequenos e cabelos soltos. Notou que suas feições mudaram, assim como seu corpo. Tinham deixado de se ver por somente quatro meses, e só ele sabia o quanto sentiu saudade de vê-la. Anotou mentalmente que não deveria deixar mais tanto tempo passar sem que a visse. Não queria perder nenhuma nova mudança dela.

Anne também o olhava com admiração. Gilbert, com seus dezoito anos, era considerado um homem alto e elegante, mas aos seus olhos ele era muito mais do que somente isso. Ele estava extremamente lindo. Não como antigamente, quando olhavam-o na escola e diziam que ele ficava lindo triste. Chegou a conclusão que a felicidade lhe caia muito bem. Seu cabelo estava um pouco maior, cheio de cachos, que logo sentiu necessidade de colocar suas mãos para tocá-los. E assim o fez. Gilbert logo fechou os olhos com a sensação. Não se importou que tinham pessoas ao redor, ao contrário do que pensava que faria, e as mulheres que estavam olhando para ele já disfarçaram e olharam para outro lugar. Mas não se importava mais com elas, queria só estar com ele. Seu Gilbert.

Ele logo abriu seus olhos e puxou ela para um abraço, segurando sua cintura firmemente, e encostando seus lábios nos dela. Ela, como estava com uma das suas mãos nos cabelos dele, colocou seus braços ao redor de seu pescoço e o aproximou ainda mais dele.

Não existiam pessoas que pudessem parar esse momento, ou tempo o suficiente para que ele fosse terminado. O beijo daquele momento era totalmente diferente do de alguns meses atrás, pois estava cheio de saudade e de desejo. Anne amassava seu cabelo com os dedos, e Gilbert a aproximava ainda mais, apesar de já não ter mais espaço entre os dois. O beijo se intensificou, despertando algo dentro de Anne que ela não sabia o que era, mas trazia urgência, e assim ela reagia. Gilbert, ao contrário dela, conhecia o que estava sentindo, medindo a intensidade de seus beijos, porém sem muito sucesso.

Logo escutaram um pigarreio. Os dois se separaram com relutância, e olharam a fonte do barulho. Uma senhora os olhava com desaprovação, enquanto o senhor ao lado dela olhava para eles fazendo um sinal para continuarem, chamando a atenção da mulher.

— Margareth, pare de fazer isso! Éramos iguaizinhos a esses dois jovens! Seu romance terminou junto com a sua idade?

Anne corou de vergonha, e Gilbert riu da situação. Olharam ao redor, e várias pessoas disfarçavam que estavam assistindo os dois. Anne pegou a mão de Gilbert e logo o puxou para fora da ferroviária, andando rapidamente.

Chegando na saída, os dois se olharam e riram. Gilbert logo a abraçou novamente, beijando sua testa.

— Achava que você já estaria a caminho de Avonlea. Algo deu errado?

— Decidi esperar você para tomarmos um café juntos antes de irmos. Estava com muita saudade de você. Saudade imensurável. - Disse Anne, fazendo carinho com o polegar no rosto de Gilbert - Fiz certo?

— Não poderia ter feito mais certo do que isso.

Gilbert deu mais um beijo em Anne, que ficou na ponta dos pés e o abraçou. Afinal, algumas regras não tinham sentido.

Gilbert e Anne foram de mãos dadas até o café que as meninas frequentavam. Anne pediu um chocolate quente, e Gilbert pediu o mesmo. Faltavam quarenta minutos para pegarem o trem à Avonlea, então, tinham no máximo vinte minutos para ficarem juntos em Kingston.

Os dois tiraram seus casacos e sentaram de frente um para o outro. Logo, Gilbert percebeu algo bem diferente nas roupas de Anne. Já não tinham as mangas bufantes que eram tão comuns a ele agora, e a cor de seu vestido ressaltava seus olhos e cabelos. Mas o decote definitivamente era algo muito novo.

Ele já sabia que Anne se considerava adulta, e, mesmo com dezesseis anos, a roupa lhe dava um aspecto de mulher. Uma mulher definitivamente atraente.

— Anne, você está extremamente linda.

— Obrigada! - Disse Anne, corada - E você está realmente encantador. Estava com saudades de você. Sabe, as cartas são lindas, mas nada se comparadas a ter ver pessoalmente. - E te beijar. Definitivamente de beijar. Escreveria isso em uma carta, mas não tenho coragem de falar pessoalmente.

— As meninas te deixaram facilmente sozinha aqui em Kingston?

— Não, na verdade elas não sabiam que ficaria aqui sozinha. Falei que ia buscar seu presente na pensão, mas ele estava o tempo todo na minha mala. Creio que só a Diana tenha percebido isso, e acabou facilitando minha fuga da ferroviária.

— Novamente Diana nos ajudando.- Disse Gilbert, sorrindo - Meu presente está nessa mala então?

— Sim, mas você só poderá abrir no natal.

Gilbert fez uma careta, e Anne riu. Logo ela estendeu sua mão para o meio da mesa, e ele segurou, fazendo carinho em sua palma.

— E o meu presente está contigo?

— Sim. Tenho certeza de que você irá gostar, mas igual ao seu, ele só será dado no natal. - Gilbert pegou o chocolate quente que tinha acabado de chegar, assim como Anne - Sei que não é agradável falar sobre isso, mas uma hora, teremos que entrar nesse assunto. E o ideal é conversarmos sobre isso antes de chegarmos à Avonlea. Diferente daqui, lá temos familiares e amigos. Creio que não vamos poder nos tratar como nos tratamos aqui.

— Sim, receio sobre isso também. Se ousarmos nos aproximar como nos aproximamos aqui, Marilla irá reprovar e senhora Lynde vai falar sobre isso para todos. Provavelmente falando alguns absurdos e falando que temos que nos casar logo, como já aconteceu com alguns outros.

— Então, você aprova que não sejamos tão próximos lá?

— Aprovo com uma condição.

— Qual?

Anne o olhou com malícia. Já tinha pensado nisso a alguns dias, não dando tempo de enviar uma carta com isso. E, também, gostaria de falar isso pessoalmente.

— Desde que, quando você for me visitar, pedir permissão à Marilla para passearmos. Podemos ir à alguns lugares mais reservados, e assim, quem sabe, agirmos como agimos aqui.

— Nos beijando?

— E abraçando, segurando mãos. Tudo o que nosso romance tem direito.

Gilbert sorriu, pegou as duas mãos dela e as beijou, causando arrepios da sua amada.

— Aceito sua condição.

Os dois amantes foram para a ferroviária, novamente de mãos dadas. A viagem seria rápida, com algumas poucas horas de duração, e logo estariam em Avonlea.

Chegando na ferroviária, logo entraram no trem e escolheram seus acentos. Gilbert deu um beijo suave na sua amada, que ninguém viu, pois estavam virados para uma das divisórias. Abraçou-a com um de seus braços, e Anne se aconchegou em seu peito. Quem os via, facilmente saberiam que eram dois jovens apaixonados.