A fazenda dos Cuthbert já teve dias melhores. Jerry trabalhava todos os dias com Matthew e ganhou quarto de hóspedes, que ficava logo ao lado do de Matthew, no térreo da casa. Marilla continuava a rotina normalmente, deixando a casa imaculada com suas limpezas diárias, fazendo bolos e pães e, toda noite, parava em frente da lareira para relembrar de sua pequena Anne. Porém, Matthew escondia sua verdadeira condição.

Já era de comum senso o problema de coração de Matthew. Ele deveria descansar, trabalhar menos, mas ninguém era capaz de convencê-lo disso, ainda mais sem Anne em casa para lembrá-lo de não passar o dia no celeiro ou nos campos, curvado recolhendo os pequenos matos que cresciam em torno de suas plantações. Marilla cresceu e criou seu irmão, sabia que não adiantava o quanto falasse, ele faria tudo da mesma forma. Um costume formado durante toda sua criação não seria mudado em poucos dias, ainda mais depois de velho. Todos os dias ele sentava, escondido em uma curva dentro do celeiro, e sentia uma pequena e incomoda pontada no seu coração. Tinha que ficar parado por vários minutos para aguardar o coração voltar ao normal. Jerry já tinha presenciado alguns desses momentos, mas Matthew não permitia que ele chegasse perto para ajudá-lo, e temia que Anne ficasse sabendo disso. Desde o incidente com o navio que tinha suas plantações aconteceu, seu coração nunca mais foi o mesmo.

Já era noite quando os irmãos se juntaram em frente a lareira para ler a carta de Gilbert. Jerry estava logo atrás deles, comendo um pouco da compota de ameixas que Marilla tinha feito.

Marilla colocou seus pequenos óculos de leitura, e logo começou a ler a carta em voz alta.

“Prezados Matthew e Marilla,

Estou na Universidade de Toronto escrevendo esta carta para vocês. Como vocês já devem saber, Anne e eu temos sentimentos um pelo outro. Saibam que pretendo nutrir o sentimento que ambos tempos, e tenho a melhor das intenções para com ela. No natal irei conversar pessoalmente com ambos sobre o assunto, e respeitarei tudo o que vocês falarem.

Não tenham dúvidas que a amo, e quero construir um futuro com ela. Não irei brincar com os sentimentos dela.

Meu endereço está junto a carta para entrarem em contato comigo caso tiverem qualquer dúvida.

Atenciosamente,

Gilbert Blythe.”

— Já não era hora desses dois se resolverem - disse Marilla, com um sorriso estampado no rosto - Anne me falou que Gilbert foi até ela antes de ir à Universidade para os dois conversarem. Os dois formam um belo casal. Rachel vai amar essa notícia!

Anne não falou que tipo de “conversa” eles tiveram. Obviamente foi produtiva.

— Gosto de Gilbert, ele é um cara legal. - disse Jerry, com uma colher cheia de compota nas mãos - Mas vou cuidar dela para vocês quando Gilbert estiver por perto. Se ele magoar ela ou fizer mal pra ela, ele vai se ver comigo.

— Estou vendo que vou ter que ensinar você a se defender. Mal consegue ficar em pé diante do vento que já ameaça a ser arrastado junto com ele, agora quer defender Anne de Gilbert? - Matthew dizia, enquanto ria da reação assustada de Jerry.

— Sou mais forte do que você imagina, senhor Matthew!

— Ele até ganhou prêmio naquele brinquedo de força, Matthew - Marilla piscou para Matthew, que formava uma careta, contrariado - Diana está hospedada no mesmo quarto de Anne. Tenho certeza que uma vai cuidar da outra enquanto não podermos estar junto com ela. Não consigo imaginar o quão mudada ela vai estar quando voltar, quantas histórias ela vai ter!

Jerry ficou calado. Levantou-se, dando boa noite a Matthew e Marilla, e lentamente foi até seu quarto. Sentou e olhou em cima da pequena mesa que tinha ao lado de sua cama, onde tinha uma pequena lousa, um livro que Matthew tinha lhe emprestado e uma pequena figura de cerâmica em formato de Poodle. Toda vez que ele lembrava de Diana, de seu sorriso e seus beijos, abria um sorriso, porém, desde seu súbito término, não conseguia sorrir da mesma forma. Mesmo com lembranças boas, lembrava também da dureza de Diana, jogando seu livro e o presente que ele tinha dado a ela no dia de seu primeiro beijo no chão, saindo sem olhar para trás. Não sabia ao certo quais sentimentos nutria por ela ainda, mas, com certeza, a ferida ainda estava aberta. Não conseguia se desfazer do presente, muito menos esquecer a quem pertencia.

No dia seguinte, Marilla preparou uma cesta com vários doces e foi até a casa da senhorita Stacy. Geralmente ia até a casa da senhora Lynde, porém, queria contar a Muriel primeiro sobre o relacionamento de sua pequena menina com Gilbert. Fora isso, com Muriel ela tinha conversas construtivas, que a faziam pensar e mudar de percepção, e não precisavam falar da vida de outras pessoas para se entreterem. Chegou rapidamente, e bateu na sua porta, logo sendo recebida e sentando-se com Muriel na sala de estar.

— Muriel, olha o que eu trouxe! Tem biscoitos e um bolo. Gostaria de fazer um chá para comermos? - disse Marilla, orgulhosa de seu trabalho enquanto abria a cesta. Porém, depois que olhou para o rosto de Muriel e notou a expressão confusa que ela adotara, mal percebendo o que ela tinha falado, perguntou - Você está bem?

— Estou sim Marilla. Estou com certos dilemas em minha mente que não estou conseguindo resolver. Foi bom que você tenha vindo, talvez possa me ajudar. Vou esquentar a água para fazer o chá e volto em um instante.

Enquanto Muriel foi até a cozinha, Marilla arrumou a mesa com tudo o que ela tinha trago para comerem. Logo Muriel retornou com um pequeno bule de chá.

— Então Marilla, o que tenho é algo diferente. Você sabe como sou, certo? Gosto de ser sozinha, de ser independente, de trabalhar. Meu ex marido gostava disso, e me apoiava. Tive um relacionamento realmente lindo, diferente de muitos hoje em dia. Tenho minhas dúvidas quanto a ter um novo relacionamento. Senhora Lynde não entende, mas creio que você entenda.

— Não é como se eu tivesse alguma experiência com relacionamentos, mas de fato, entendo. Creio que seja desagradável para você Rachel procurar pretendentes.

Muriel colocou chá nas duas xícaras, sentou-se e começou a falar.

— Oh, muito desagradável - disse Muriel, com um sorriso - mas não é isso que tem me incomodado. Quero continuar a mesma, com a mesma liberdade. Foi difícil conquistar isso e ter o respeito de Avonlea ao mesmo tempo - Marilla assentiu - e em consequência, tenho que abdicar de alguns prazeres que a vida pode me dar. Como, por exemplo, entrar em um novo relacionamento com uma pessoa que compartilho certo afeto.

Muriel deu uma pausa e observou as reações de Marilla. Primeiro, ela concordava. Depois, arregalou seus olhos e abriu a boca.

— Finalmente algum homem que Rachel trouxe surtiu efeito?

— Não! Definitivamente não!

— Então, o que é?

— Tenho pensado em me abrir para novas possibilidades. Somente isso.

Muriel tentou esconder o real motivo, mas Marilla era muito boa em recolher informações das expressões das pessoas. Viveu bons anos com Anne, e com certeza estes foram treinamento para ela para desvendar o que era a imaginação e o que era realidade de sua pequena menina. E ela considerava que Muriel não era muito diferente de Anne. Definitivamente Muriel escondia algo, mas decidiu não perguntar mais o que era. Ela contaria quando estivesse preparada.

— Minha vida teve muita felicidade, mas também muita tristeza e motivos para eu me arrepender. John Blythe, o pai de Gilbert, era meu amor da adolescência. Nos beijamos algumas vezes, eu ia até a casa dele e ele na minha. Eu o amava verdadeiramente, mas precisei ficar com a minha família e o neguei. Quando ele faleceu, tudo veio a tona - tudo o que eu poderia viver, e acabei não vivendo por medo. Espero que você não se arrependa das decisões que poderia ter tomado, ou das experiências que poderia ter vivido.

Marilla terminou, deixou a xícara de chá na mesa e apertou a mão de Muriel.

— Só tenha certeza de que realmente ama o rapaz e quer viver uma vida ao lado dele, e que ele possui a mesma vontade. O restante é construído pouco a pouco.

— Obrigada Marilla. Quando eu tiver certeza de que amo algum rapaz, você será a primeira a saber - Muriel piscou para Marilla, e ambas riram. Nesses momentos, as duas pareciam Anne e Diana: espíritos afins.

— Por nada, imagine! Agora, deixe eu te contar uma novidade. Anne e Gilbert estão juntos!

Muriel fingiu surpresa, passando despercebida pela Marilla diante da felicidade da amiga, e começaram a conversar sobre como já sabiam que os dois terminariam juntos.

Chegou final de semana, e junto com ele, o encontro entre Anne e Ruby. As duas tinham marcado logo após o fim das primeiras provas para irem ao café, assim como Diana tinha indicado à Anne. Anne estava cada vez mais bela, com aparência de uma jovem adulta, com cabelos presos em coque e chapéu, com leves tranças em sua composição, e um vestido verde longo. Atraía os olhares dos jovens da faculdade, porém, todos que ousavam perguntar as suas amigas sobre ela, recebiam a resposta curta e efetiva: estava comprometida com Gilbert Blythe, um jovem da Universidade de Toronto que estava seguindo o sonho de ser médico. Após a resposta, todos perdiam a esperança.

Ruby, mesmo apaixonada por Moody e olhando ameaçadoramente para todas as garotas que ousavam olhar na direção dele, não recebia nenhuma indicação dele de que ele desejava se comprometer. Era óbvio que ele estava apaixonado por ela, e nenhuma de suas amigas sabia o porque ele não confessava a ela seus sentimentos. Logo, recebia flores e cartões de seus admiradores sempre, porém, sem nenhum brilho nos olhos ou ansiedade em lê-los. Seu rosto estava com a aparência mais madura, com cabelos mais longos e seus vestidos de cores claras. Já era conhecida na faculdade por ser uma jovem amorosa e gentil.

As duas se encaminharam juntas ao café, com braços cruzados um ao outro e conversando animadamente sobre os professores e as aulas que tinham. Logo que chegaram, escolheram uma mesa ao lado da janela, que tinha vista para o jardim, pois, como Anne sempre dizia, “uma bela paisagem oferece mais escopo para a imaginação”.

As duas fizeram seus pedidos, e logo Ruby indagou:

— Anne, sobre o que essa conversa se trata?

A ruiva arrumou sua postura, e se preparou para o que iria dizer. Já tinha se preparado mentalmente para a conversa, assim como se preparou conversando com o espelho e também com Diana. Como Diana não conseguia interpretar tão bem o papel de Ruby, ela sempre interpretava Anne, e Anne falava tudo o que imaginaria Ruby respondendo. Claro que esperava a melhor resposta de Ruby, mas também sabia que nem sempre a realidade condiz com a imaginação.

— Tem algo que quero te contar faz muito tempo. Na verdade, a cerca de um mês, mas como o tempo passou tão devagar, parece que espero a quase um ano! Não é algo tão importante. Não importante para você, mas muito importante para mim! É a respeito da minha felicidade. Quero que você seja feliz também, e não suportaria ver você machucada porque eu quero ser feliz.

— Calma Anne. Respire. Falando tão rápido eu mal te entendo! - Disse Ruby, rindo da careta que se formava no rosto de Anne - Claro que a sua felicidade é importante para mim. Até imagino do que se trata.

— Espere, como assim?

— É sobre Gilbert, não é?

Anne se surpreendeu, quase deixando cair a xícara de café que segurava em suas mãos. Ruby riu de sua reação, e logo Anne se juntou a sua risada.

— Anne, claro que eu sei! Mas óbvio que você não sabia. Esqueceu que meu quarto dá de frente para a saída da pensão? - Anne assentiu, ainda não entendendo como sabia - Vocês se beijaram como se não houvesse ninguém perto, então é claro que não se lembraria de eu e a Josie na janela observando. Fora a carta de Gilbert que chegou para você e mais para ninguém.

Anne estava vermelha, combinando perfeitamente com as mechas de cabelo que caiam no seu rosto. Ruby riu ainda mais da reação da amiga. Como poderia guardar segredo por tanto tempo de sua amiga?

— Ruby, por que não falou nada? Tenho guardado esse segredo por semanas! Queria tanto falar ele para você, para as meninas. Como você está com tudo isso?

— Óbvio que estou bem. O que sentia pelo Gilbert já se foi a muito tempo, não era recíproco, você sabe. Olhando para trás, eu e Josie percebemos que ele tinha olhos somente para você. Conversei com Josie para ela não falar para ninguém, assim como eu não contaria. Esperaríamos até o tempo que você estivesse preparada para contar.

Com lágrimas de felicidade nos olhos, Anne levantou e foi abraçar a amiga. Como era importante para ela o afeto que ela recebia!

— Oh Ruby, como estou aliviada! Obrigada por me esperar! É como se uma tonelada saísse das minhas costas!

— Anne, calma! Qualquer amiga faria isso.

Anne se sentou novamente, e respirou lentamente até se acalmar. Ruby ria de sua expressão, e ambas sentia que estavam mais próximas com o que aconteceu. De fato, Anne pensou naquele momento que talvez espíritos afins poderiam ser construídos com o tempo, e outros, de forma automática. Quem sabe, o que ela e Ruby tinham poderia se tornar uma conexão de almas?

As duas voltaram a conversar, e Ruby perguntou:

— Então, quem se confessou primeiro?

— Gilbert, na fogueira que fizemos depois das provas - Ruby ficou surpresa, e Anne sorriu - Bem, na época não respondi para ficarmos juntos. Falei para ele casar com Winifred! Mas felizmente depois conseguimos conversar. Ele se recusou a pedir Winifred em casamento porque não a amava, e iria para Toronto seu saber que eu o amava. Mas felizmente Diana estava no mesmo trem que ele. Vou dar todos os detalhes quando nós e todas as garotas nos reunirmos para um chá no jardim, tudo bem? Assim, todas saberão de como aconteceu.

Ruby assentiu, sorrindo.

— Ah Anne, essa história parece um de seus contos do nosso clube. Claro que sem nenhuma morte! - As duas riram, lembrando de suas histórias românticas e trágicas - Você beijou ele também, não é?

— Sim! - Anne enrubesceu, envergonhada do ato.

— Não fique envergonhada! Tenho reunido coragem para fazer o mesmo. Você sabe, Moody não me confirmou nada sobre nós. Cada dia que eu o vejo é uma agonia diferente. Como eu quero que ele se confesse para mim! Mas caso ele não o faça, eu mesma farei.

— Claro que você deve fazer isso! Por que esperar por ele se você mesma pode fazer isso? O não você já tem, então, não tem nada a perder!

Ruby sorriu. Ela já esperava essa resposta, diferente da que Josie Pye tinha dado.

Sebastian preparou a carta para responder Gilbert, e se preparou para ir até o centro de Avonlea para enviá-la. Sua mãe ficou em casa com Delphine, que começou a balbuciar palavras. Ele estava ansioso pelo primeiro “papai”. Sua mãe estava mais sociável e amorosa, e o relacionamento dos dois melhorou muito. Tanto que, quando saiu, sua mãe se despediu dele com um beijo em uma de suas bochechas.

Foi andando até o cavalo, com uma bolsa à tiracolo, tendo nela a carta e uma folha com os dados bancários de Gilbert. Antes de Gilbert viajar, ele tinha ido junto com Sebastian ao banco local para abrir uma conta, assim, ficaria mais fácil de fazer transações. Ainda teria que ir pessoalmente para mover o dinheiro até ele, mas era mais prático e seguro do que enviá-lo por carta.

Felizmente já tinha se acostumado a viajar a cavalo. Foram meses de aprendizado e de dor na parte interna das pernas, dias andando curvado, mas o esforço surtiu efeito. Subiu e logo foi em direção a Avonlea.

Não escreveu muito na carta. A mente ainda estava o traindo, lembrando do último momento com Muriel, e estava se culpando por isso. A aliança ainda estava no seu dedo. Mas, mesmo com poucas palavras, conseguiu transmitir a saudades que sentia e o quanto queria que seu irmão estivesse de volta a Avonlea logo.

Chegando ao centro, notou alguns olhares tortos que recebia. A maioria dos moradores já tinham acostumado a terem um novo morador “de cor”, como eles falaram, mas alguns ainda o recebiam com preconceito, e haviam estabelecimentos que, mesmo podendo entrar, se recusavam a vender-lhe algo. Estes, quando denunciados por ele à senhora Lynde, recebiam sua ilustre visita como membro do comitê e uma severa advertência.

Enviou a sua carta, e se encaminhou até o banco. Transferiu um bom dinheiro ao seu irmão, o suficiente para alguns meses de aluguel e algumas viagens até Avonlea. Ou, quem sabe, até Kingston? Sorriu, lembrando-se de Gilbert e Anne, ansiando pelo dia que Anne visite a casa dos dois e recebendo ambos como um casal.