Anjos

Capítulo 4


Logo abaixo, observava a cidade pegando fogo. O gosto das cinzas no ar invadindo sua boca e o cheiro de carne queimada. Ouvia claramente os gritos humanos subindo como a fumaça que o rodeava.

Sobrevoava a cidade, impiedoso, concentrando-se no som de suas asas em atrito com o vento forte.

Tinha certeza que suas asas negras poderiam ser vistas do interior das poucas casas humanas restantes, não veria nenhum deles, não enquanto sua sombra sinistra pairasse pela cidade.

Mas ele via o caos: haviam destruído mais uma cidade humana.

A guerra parecia se intensificar cada vez mais, sabia que felizmente os anjos possuíam a maior vantagem, ao mesmo tempo em que sabia que não havia em seu interior espaço para sentir algo pelas criaturas que matava.

Insetos repugnantes.

Não só como soldado, como anjo, era seu dever proteger sua raça desses ratos terrestres.

— Marcus! — gritava Abramo o jovem anjo voando elegantemente ao seu lado. Abramo, seu grande amigo, orgulhosamente possuía algo considerado por toda a sociedade angelical impossível para os anjos soldados. Uma leveza no vôo quase mística e uma esperteza fundada na criatividade. Com as enormes asas brancas e o cabelo prateado, contrastava com o jovem ao seu lado, com firmes asas negras e porte rígido. Marcus, o anjo violento e herói de guerra.

Mesmo com a aproximação do jovem, os olhos azuis de seu companheiro negro não se desviaram da ação no solo, desconfiado, sequer olhou para o recém chegado.

— O que desejas Abramo, meu amigo e companheiro?

— Marcus! Não ouvistes a ordem do comandante? — dizia Abramo, apreensivo. — Cessar ataque, meu amigo e companheiro! O que pretendes em meio a este campo de guerra e matança?

— Me certificando que nenhum deles sobreviva. — a resposta lhe parecia mais que obvia. — Há casas angelicais acima de nós.

— Não há mais humanos para assassinar, volte Marcus. Seu dever como soldado é proteger os anjos, não perseguir qualquer humano inocente que tente deixar a cidade.

— Eles não são inocentes, meu amigo e companheiro. São vermes imundos. É de conhecimento público Abramo, que eles criaram novas armas, capazes de atacar inclusive as nossas casas protegidas pelos céus.

— Mas é claro. — replicava com uma suave batida de asas — Não fomos nós, que atacamos e destruímos suas moradas? Não são somente os anjos que sentem desejo de vingança.

— Exatamente — replicava violentamente o anjo negro, desviando seu olhar da cidade incandescente encarando o companheiro branco com raiva, como sempre Abramo dizia coisas sem sentido — Se o desejo de vingança destas criaturas for equivalente à minha sede de sangue sinto que estaremos todos de acordo.

— Marcus, meu amigo e companheiro. Não sente pena deles? Sendo atacados por criaturas contra as quais não possuem qualquer defesa?

— Não somos criaturas, Abramo. Somos anjos, fortes e orgulhosos. Não há como eu entender como um humano imundo e fraco pensa.

— A palavra então é morte, meu amigo e companheiro?

O som que ouviram em seguida foi alto e ensurdecedor. Diante de seus olhos o chão se abria em meio às casas em chamas e um tenebroso maquinário surgia devastando todos os escombros em seu caminho.

O maquinário pontudo inclinou-se com a ponta voltada a dupla de anjos. Desnorteados, pouco fizeram além de observar a nova forma que tomava conta de suas vistas. Mesmo Marcus, sentia em seu interior uma curiosidade inofensiva.

Da ponta do nefasto maquinário surgiu uma gigantesca bola de luz cristalina como um pequeno sol, radiante e belo. Dentro da sua mente a curiosidade se dissipava dando lugar para um sentimento inquietante.

Tão logo Marcus percebeu que não poderia sair dali. Seus músculos haviam congelado. Por alguns segundos esquecera-se inclusive de bater as próprias asas, retomando-as assustado consigo mesmo. Concentrado percebeu sua respiração ofegante e o descompasso das batidas de suas asas.

Medo. Aquela luz o assustava. Nunca sentira nada parecido em nenhum momento de sua vida. Sabia que Abramo sentia o mesmo. Em frente aquela luz desconhecida, paralisado de medo.

Em meio ao medo, o sentimento que surgiu o assustava ainda mais. A coragem. Com sua velocidade tenebrosa voou em direção ao maquinário desconhecido. Desejava destruí-lo. Quebrá-lo em milhões de pedaços.

O sangue subia a sua cabeça como uma onda de fúria e selvageria. Com suas garras afiadas golpeava inutilmente o corpo metálico. A luz ficando cada vez mais forte, mais golpes, inútil.

Esqueceu-se de Abramo e da cidade que deveria proteger a custo de sua vida por apenas alguns instantes.

Instantes o suficientes. A máquina lançou impiedosa a grande massa de luz.

Em instantes Abramo deixara de existir. Em instantes o céu, antes envolto pela fumaça da cidade humana em chamas agora se via coberto por um vermelho incandescente.

As casas angelicais caiam do céu, como meteoros num mar de fogo que continuava a persegui-las em terra.

Marcus ouvia os gritos dos anjos, eles caiam, com as asas em chamas. Seus gritos estridentes o arrepiavam a alma. Seus sentidos pareciam mais afiados que nunca, sentia o cheiro da fumaça poluindo seus pulmões, o calor das chamas, via as casas caindo ao solo.

— Abramo? Onde você está?! Abramo!

Na sua mente já ouvia a certeza, Abramo não existia mais.

A máquina voltava a acumular luz. Um sol que havia destruído tudo.

No horizonte o exército angelical surgia alarmado, com sua formação perfeita e sincronizada.

Marcus sabia o viria em seguida. Violento, atacou a máquina novamente com suas garras, empurrou-a, atacou-a desesperado. Via a luz mais forte, cada vez mais forte como uma bomba relógio.

Novamente a máquina disparou. E assim como Abramo, tropas inteiras foram varridas do céu. E com eles o seu mundo.

Em poucos segundos sentiu o chão, desnorteado não havia tirado os olhos da máquina a sua frente, desesperadamente levantou-se pronto para um novo vôo. A dor que sentiu em seguida o destruiu. Suas asas não o obedeciam, no lugar da cega obediência de seus membros angelicais sentiu uma dor dominante, como um império conquistando um país através do fogo, sentiu a dor se alastrando por todo o seu corpo, imobilizando-o, torturando-o. Com as mãos às cegas tocou suas próprias costas, uma asa havia desaparecido por completo e a outra se encontrava mutilada, como um pedaço grosseiro do que já fora um dia, batendo o que restava e lutando teimosamente contra a realidade. Mesmo ao chão, Marcus manteve seus olhos azuis fixos na máquina. Que agora parecia procurar inutilmente novos e inofensivos alvos no céu, ainda vermelho vivo.

Não havia defesa, não havia modo algum de pará-la.

— Abramo?

Sua consciência falhava, sua visão o enganava, deixou-se abandonar em meio à cidade humana já em cinzas, o corpo abatido.

Quando abriu os olhos novamente, sentiu seu corpo tremer com uma única certeza. Havia morrido. Não havia outra realidade para um anjo sem asas.

Sim, fazia questão de manter viva em sua mente o que sentira naquela noite, a noite em que perdeu a vida como a conhecia.

— Então? Não é lindo, Eillen, o céu à noite? — perguntava Marcus, tocando-a no ombro.

Durante muito tempo a morte fora perder os seus bens mais preciosos para a máquina que os atacara naquela noite. A perda de tão preciosos bens, suas asas. Durante muito tempo, viveu como um morto-vivo, alguém sem vontade, que possuía como único talento a sobrevivência.

Mas, seu coração ainda batia. Mesmo quando seu corpo havia se chocado violentamente contra o solo terrestre. Mesmo após a dor de perder sua vida como anjo, mesmo após o período que viveu em meio as cinzas e o lixo humano. Ele não pararia de bater tão facilmente, teimoso como as suas asas que lutaram até o ultimo segundo de sua vida angelical.

Vivo. Um coração vivo e teimoso. Como lhe dizia aquele pequeno.

— É! — respondia a garota a sua frente, com o tom de voz alegre, encarando-o nos olhos. — O céu é muito bonito à noite.

Talvez Abramo já soubesse, que na verdade, desde sempre a palavra fora vida.