Anjos

Capítulo 5


O mercado como sempre se mantinha cheio e sua mente infantil já previa as reações dos adultos à sua volta. As mãos pequenas tremendo de excitação. Como um gesto de alto controle apertou a caixa que segurava, quase se esquecendo da carga valiosa que carregava, com surpresa observou o seu gesto involuntário, com cuidado abriu a caixa. Remédios, bandagens, algodão, comprimidos... Tudo intacto. Talvez seu pai sentisse falta do seu precioso kit de primeiros socorros, mas isso não perturbava sua mente, que nesse momento se concentrava em sua missão.

Com a destruição de uma cidade vizinha, muitos refugiados haviam chegado à sua cidade e os comerciantes estavam mais desconfiados que nunca. Já havia conseguido algumas frutas e um pouco da carne que havia sido seu almoço. Quem sabe pão?

Astuto se aproximou do pequeno comércio do padeiro da cidade, que carregava uma cesta de pães acima da cabeça. Atento subiu na pouca madeira e nos panos que formavam as bancas da cidade. Acima das cabeças dos demais esperou até que o padeiro se aproximasse.

Suas pequenas mãos foram tão rápidas quanto as suas pernas. Que agora moviam-se a toda velocidade para o limite da cidade. Onde a guerra contra os anjos havia se intensificado. Não se assustava com o que havia sobrado das cinzas e escombros ao seu redor, que agora formavam a seu local predileto de exploração e pouca atenção lhes dava.

Havia encontrado algo muito mais precioso.

Com demasiado cuidado se aproximou de uma das únicas casas restantes. O que havia encontrado era realmente muito intrigante, mas mesmo a sua mente infantil sabia, sentia, que aquilo que havia encontrado era muito perigoso.

- Olá... - dizia o garotinho, abrindo a porta ruidosa com cuidado excessivo, segurando o pequeno tesouro em suas mãos.

As orbes azuis no interior do quarto viraram-se para ele fulminantes, fazendo com que apertasse novamente o kit em suas mãos. Dentro da pequena casa sobrevivente havia algo que parecia um rapaz, com os cabelos negros e assustadores olhos azuis repletos de ódio.

Sabia que ele era um anjo. A diferença era gritante. A beleza do seu rosto, as garras em suas mãos e os ferimentos em suas costas. Ele era um anjo.

Lembrava-se de tê-lo encontrado inconsciente, por acaso, em uma de suas explorações. Era a primeira vez que o encontrava acordado e seus olhos o assustavam.

- Quem é você, vermezinho? - perguntava o rapaz no interior com o tom imponente e provocativo, a voz lhe lembrou o barulho do vento, forte e intenso. Com dificuldade, respondeu.

- Sou o Tales. - respondeu o garotinho com falsa distração, como se fosse uma resposta óbvia. - Não sou um vermezinho, não esta vendo que sou um humano?

- Vejo que sim. Obviamente é por isso que é um verme. Como ousa? Um filhote como você, daqueles malditos, ter a ousadia de vir até mim?

- Vim para ajudar. - dizia Tales determinado, sentindo as pernas tremerem com a intensidade do medo que sentia.

Assustador, ele é assustador.

- Me ajudar? Ainda é capaz de proferir tal blasfêmia em minha presença, desgraçado? Por que não se aproxima para que eu possa saciar por poucos momentos o ódio quente em minhas veias?Venha! Agora! Venha vermezinho!

Suas pernas se moveram sem a sua permissão. Com passos largos correu da pequena casa, escorregando, sentindo o gosto da terra em sua boca por diversas vezes, com o coração palpitando descontroladamente. Para a sua surpresa os remédios ainda se encontravam em suas mãos, que aos seus olhos pareciam pequenas e inúteis. Mesmo que trouxesse os remédios as suas pequenas mãos não eram páreos para as garras afinadas que lhe eram apontadas tão facilmente.

Vendo-o correr para longe, Marcus ainda se perguntava como teria chegado até ali, naquela casa humana, provavelmente teria sido aquele filhote humano.

Em sua mente lembrava-se vagamente da derrota dos anjos, da grande máquina e da morte de Abramo.

Em meio a estas lembranças podia sentir uma ainda mais dolorosa, sentia a dor latejante e insuportável em suas costas, não se atrevia a olhar, a tocar suas costas, ter a absoluta certeza que não estavam ali. Não.

-Perdi minhas asas.

Durante muito tempo tentou esquecer, imaginar que elas ainda estivessem ali, o que conseguia em grande parte do tempo, sendo preciso somente fechar os olhos durante alguns segundos. Esquecer o cheiro humano que preenchia seu abrigo, a poeira da guerra e o ar abafado a sua volta, fazendo seu corpo se molhar com o suor. Se concentrando, ainda podia se lembrar do rosto de Abramo e acreditar que ele ainda estava vivo, que o veria planar ao seu lado, elegante. Dentro daquela casa escura tudo o que havia acontecido lhe parecia um sonho distante e impossível, sua mente se convencia cada vez mais, lentamente, que nada havia acontecido, não havia caído, em sua mente estava apenas descansando após mais uma vitória. Nessas horas Marcus tinha certeza que podia sentir em seu rosto um fraco sorriso, uma felicidade plena e sincera. Aquilo teria que ser um sonho. Não havia como os humanos vencerem os anjos! Mas então ela voltava, a dor latejante, fraca no inicio, mas se tornando tão intensa como se procurasse puxá-lo novamente para a realidade, empurrá-lo e pressioná-lo para que nunca mais sonhasse, para que desistisse. Sua vida já havia acabado, não precisava sentir mais nada, tudo estaria acabado, não tinha mais asas.

-Vou poder vê-lo de novo, Abramo? - sim, iria revê-lo. Sua vida iria acabar ali, se certificaria disso, de forma que nada fez quando sentiu frio. Quando sentiu seus membros endurecerem fracos. Suas garras, os seus olhos, nunca mais os usaria novamente.

-Ei!Acorda!

Podia ouvir aquela voz gentil e assustada, não soube exatamente onde se encontrava, com a vista embaçada pode ver um vulto com asas. Um anjo? Por alguns instantes imaginou que havia realmente morrido, instantes o suficiente para sua visão se ajustar a luz que o cercava, certamente já era manhã e o ser a sua frente não se tratava de um anjo, era um filhote humano, como pode constatar, forçando a memória o encontrou quando o assustou, carregava a mesma caixa embora desta vez trouxesse um par de asas nas costas, feitas com penas de animais e presas com uma corda, tinha certeza que com o menor vento elas voariam para longe, o abandonando.

-Que bom que acordou!Vamos, tome esse remédio. - dizia com a voz autoritária.

Somente então percebeu o curativo e as grandes faixas. Cuidados médicos? Não!Havia decidido morrer!Como se atrevia?!

-Como...?Você, seu verme!

-Não sou um verme!Já disse!Meu nome é Tales! - gritava o garoto puxando um comprimido e o empurrando junto com um copo d'água. - E agora eu sou um anjo como você. - dizia apontando para as pequenas asas.

-Não me faça rir!Que insolência!

-Não me chame de insolente! Qual é a grande diferença entre nós dois?!

-Somos duas raças diferentes. Eu poderia te matar agora mesmo, filhote.

-Qual é a grande diferença?! - ele gritava, puxando as asas das costas. Estava certo, não sobreviveriam sequer a uma brisa. - Se eu tirar minhas asas eu vou ser igual a você! Se essa é a única diferença, então agora somos iguais!

Marcus olhou solene para o rosto do garotinho a sua frente, estava um pouco sujo, o cabelo embaraçado e os olhos fundos pela a noite em claro, olhos azuis, não tão azuis quanto os dele, faltava a eles um brilho celestial, não soube identificar, ainda o odiava, odiava todos os humanos, eles e sua raça, todos eles que haviam matado Abramo.

-Mesmo que você me odeie!Me deixe cuidar de você. Não vou deixá-lo morrer.

-Por que não? - como poderia... Aquele garoto...? - Por quê? Eu não tenho mais asas, não tenho mais nada, não tenho vida. Eu sou um anjo, um soldado. Matei mais humanos do que você já viu na vida garoto. Não sente medo de mim?

-Sinto. - respondeu entregando o comprimido, colocando-o com cuidado nas mãos do anjo caído - Sinto muito medo. Mas eu não quero acreditar somente na morte.

- A palavra então é morte, meu amigo e companheiro?

-Droga...

Naquele dia, Marcus tomou o remédio, não reclamou durante as dores ou os efeitos da perda das asas, não se preocupava. Nascia uma nova chance, e dessa vez sua escolha seria essa. A vida.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.