Anjos

Capítulo 3


— Meu nome é Marcus. Qual é o seu? — perguntava determinado o rapaz de olhos azuis. Não pode evitar pousar os olhos em seu rosto por alguns instantes, o cabelo negro estava anormalmente bagunçado e embora os olhos emitissem um caloroso e puro brilho, olheiras fundas deformavam a sua face angelical.


— Eillen. — respondia a garota, sentindo acima da tão irritante quanto suportável dor nas costas um sentimento que mesclava culpa e raiva.


— Não é animador, Eillen? Finalmente sair daquele quarto?


Sim, era animador.


Pela primeira vez em duas semanas sentia-se capaz de andar normalmente, assim como qualquer humano.


Andavam pelas ruas humanas mal cheirosas e sem cor. Com os seus sensíveis olhos angelicais dourados, seguia o olhar por cada detalhe das ruas memorizando-os como um grande quebra-cabeça, analisando com suas narinas o cheiro podre do esgoto humano, dos legumes podres do comércio humano, o odor de suas respirações, o som de suas vozes. Sentia o nojo e a repulsa subirem sua garganta tornando o mundo ao seu redor com um sabor intragável.


Cinza.


O mundo humano parecia ser dominado por esta não-cor. Os prédios, as casas, a cada passo seu como se uma nuvem fedida e agourenta a perseguisse. O cinza enchia os rostos ao seu redor, retirando deles qualquer sinal de vida, enquanto os olhos humanos a observavam com desconfiança e um ódio sufocado, uma tristeza justificável. O olhar deles acusava-a.


Seus olhos dourados em pânico procuravam a cor. Nas lojas os alimentos cinza a enojavam, a carne, os legumes, os animais sujos das ruas, os filhotes humanos brincando em meio ao cinza podre do seu próprio mundo.


Desgovernados, seus olhos atentos procuravam a cor. A cor. A cor. A cor!Cinza? Sua cabeça rodava pelo seu novo mundo cinzento.


Fuga! Fugir! Correr?! Voar...?


Seu antigo refúgio a chamava, a provocava, rindo-se de seu desespero. Azul! O céu é tão azul.


Parou de andar, sentia Marcus ao seu lado, e ao mesmo tempo não o sentia, sabia que agora se encontrava na ponta dos pés, o mais próximo que poderia chegar ao local onde sua mente nesse momento vagava. A brisa refrescante em sua delicada casa branca, o som do vento, o branco, as janelas translúcidas... E o azul. Com descuido sentia-se novamente num mundo além deste, um mundo feito de nuvens.


O céu azul enchia-se das puras casas angelicais, numerosas e puras como as suaves nuvens no céu.


Seu corpo se esticava o máximo que podia. Tão perto. Podia sentir até o vento em suas asas... O vento roçando seus cabelos tão dourados quanto seus olhos à luz do sol...


— Eillen? — a voz de Marcus a puxava para a realidade. — Você ainda está aqui Eillen.


Não era uma pergunta, ele afirmava.


— Sim. — respondia, recolocando seus pés devidamente no chão.


— Mantenha os pés no chão — dizia ele com o tom de voz sério — ou você acabará tropeçando.


— Oh. — dizia ainda olhando para as inocentes casas angelicais.


Seus olhos novamente voltaram-se a encarar o mundo ao seu redor, um olhar fraco para um mundo feio e sujo. Seu corpo ainda fazia questão de lhe lembrar do que realmente desejava. Sabia que não queria ver o cinza novamente.


— Olhe pra mim enquanto estiver falando com você. — dizia Marcus, apalpando seu rosto delicadamente, de modo que fosse forçada a encará-lo nos olhos. — Quer voltar?


Nada respondeu.


— Ah — disse após uma longa pausa, livrando-se lentamente das mãos de Marcus, como um movimento mecânico, pois sua mente havia se perdido novamente — Há um pouco de azul em você.


— Um pouco de azul?Está falando dos meus olhos? — dizia o rapaz com um sorriso singelo, não parecia ser a primeira vez que ouvia isso. — São bem incomuns entre os anjos, não? Eu nunca encontrei outro com olhos azuis. Normalmente são dourados.


— Dourados ou prateados. — Eillen corrigiu novamente como um gesto mecânico — Marcus, você sempre procura fugir às regras angelicais? — era uma constatação obvia, mas que havia fugido por seus lábios, porém, Marcus parecia uma verdadeira exceção aos anjos, o fato dele próprio estar vivo comprovava isso.


— Acho que sim! — a risada divertida e surpresa que ele soltou não deu espaço para arrepender-se de sua inocente observação, tão pouco de respirar, o sentimento que tomava a sua mente era outro, uma intensa curiosidade, profunda e gritante. Seus lábios procuravam formar palavras que sequer sua mente havia planejado. Havia perguntas. Infinitas perguntas. Tantas que mesmo ao formulá-las sua mente sequer imaginava por onde começar. Curiosidade. Sentia tanta curiosidade. O pouco de azul que existia em Marcus logo a observava. Duas orbes atentas e mais brilhantes que o céu acima de suas cabeças. — Nesse caso vou tentar não fugir às regras humanas, afinal eles também têm olhos azuis.