Anjos

Capítulo 2


Despertar mostrou-se ser algo doloroso, com os olhos cansados via apenas o escuro desconhecido a sua frente, embora pelas janelas o ar frio noturno adentrasse o aposento, arrepiando sua pele protegida pelo ar quente e sufocante. Mas o que a retirou do sono não foi o calor do aposento ou o seu cheiro particularmente estranho, mas uma dor irritante, porém suportável que sentia em suas costas. A dor foi aumentando, de forma que mal conseguia manter seus olhos abertos, enquanto se esforçava para manter suas lágrimas trancadas dentro de si. Silenciosa, procurou esconder sua dor. Sabia o que estava acontecendo. Havia perdido suas asas e a dor que sentia era tamanha como a primeira noite de alguém que havia perdido os dois braços ou as pernas de uma vez e sem analgésicos. Não faria barulho algum, nunca havia suportado dor tão terrível em sua vida, mas não cabia aos anjos fugir dela, não aos anjos, somente os humanos fracos procuravam refúgio da dor. Se estava sentenciada a sentir dor, sentiria. Se fosse sentir frio, sentiria. Se por acaso se queimasse, queimaria. Não havia fuga para a dor. Não para os fortes.


Ouviu a porta se abrir e em seguida o garoto entrar apressado pelo aposento.


— Desculpe, mas meus analgésicos haviam acabado. — dizia o garoto segurando uma caixinha numa mão e um copo d\'água noutra.


— Não preciso disso. — soltou entre os dentes, se controlava para não gritar e falar não ajudava em nada.


— Aqui estão os comprimidos. — dizia o rapaz ignorando-a.


— Remédios são inúteis para mim. — mas a dor somente aumentava.


— Abra a boca. — continuava o garoto, ignorando novamente sua recusa.


— Não ouviu o que eu disse?! — gritava, já lhe apontando as garras. — Não se atreva!


Os olhos que a encararam eram sérios e ferozes, o que não combinava com o tom inocente do azul que os preenchia. Observá-los quase a amedrontava, o viu levantar as próprias garras e apanhar um dos comprimidos com movimentos firmes.


— Me desculpe por isso. — acrescentou apressado. Enquanto ela o observava tomar o comprimido e beber a água do copo.


Os movimentos do garoto novamente foram rápidos, seu corpo atordoando pela dor mal sentiu o toque violento e o puxão que se seguiu. Tinha a vaga certeza de ter sido puxada para frente, a pontada que sentiu em suas costas quase a fez gritar, aliviada, tinha certeza que seu autocontrole protegia seu orgulho angelical. As mãos firmes e desconhecidas ataram seus braços. Lentamente viu o rosto dele se aproximar, suas garras estavam prontas, inutilmente lutou contra o rapaz.


O toque que sentiu posteriormente a encheu de uma fúria avassaladora, capaz de fazê-la esquecer da própria dor e inclusive de seu autocontrole. Sentiu seus lábios se tocando, e o maldito comprimido descendo atrevidamente pela a sua garganta. Desnorteada observou quando ele a soltou, a paciência, acima da raiva, tomando conta de seu rosto.


— Não me faça fazer isso a cada três horas. — disse o garoto sentando-se no banco ao seu lado. Fúria. Fúria. As lagrimas desciam por seu rosto como se não tivesse lutado para mantê-lo seco.


— Maldito!— gritava furiosa — Como se atreve? — A dor ardente em suas costas voltava com mais força, inutilmente se levantou cambaleante, com seus olhos dourados trancando novamente as novas lagrimas, impedindo-as de sair — Como ousa medicar-me e tocar-me?!


— Vou ter mesmo que fazer isso a cada três horas? — perguntou, cruzando os braços com fingida impaciência. Encarando-a friamente.


— Posso muito bem sobreviver sem os seus medicamentos repugnantes. Meu orgulho está acima disto tudo. Não importa se perdi minhas asas, sou um anjo. — a determinação queimava em seus olhos. — Não sou uma traidora criminosa como você, que mesmo após perder suas asas continua vivo.


— A palavra é: morte? — perguntava o rapaz, esperando pacientemente sua resposta.


— Sim. — dizia com uma determinação corajosa — Morte.


— Por algo tão miserável como asas? — o próprio tom provocativo de sua voz a ofendia, a frase quase a rasgava de ódio.


— Asas são o bem mais valioso para qualquer anjo! Sem as asas nós... — A garoto se levantou, com uma força suprema que desconhecia, levantou os braços, apontando as garras afiadas, mas que para a surpresa do garoto, desajeitada, apontava para o próprio pescoço.


— Vou te dizer o que é valioso para um anjo. — sem demonstrar raiva, viu-o pegar as suas mãos, que mesmo ao seu olhar não apresentavam qualquer resistência, embora tenha imaginado e se preparado para desferir um vigoroso golpe. Seu corpo não mais obedecia à própria mente. Sem controle sob suas mãos observou ele não só pegá-las, mas, também pousá-las no próprio peito — Está sentindo as batidas?


Ela encarou-o com a fúria hesitando em seus olhos, agora podia sentir as batidas rápidas e aceleradas do coração do rapaz desconhecido, ele não aparentava nervosismo mas sentia as batidas fortes e alarmadas em seu peito.


— Isso é o mais importante. — continuava — Se as asas fossem os bens mais importantes para os anjos por que isso ainda continuaria a bater?


Seu corpo caia erroneamente pelo quarto, sentiu os joelhos tocarem o chão e o gosto da derrota eminente em seus lábios. Sua angustia aumentava, com a mente cada vez mais turva sentiu-se sentada na cama novamente. Sua mente sem conseguir absorver todas as informações. Com suas mãos, tocou com precisão o lugar onde havia perdido seu bem mais precioso, o orgulho da sociedade angelical, o poder de voar. Como poderia sobreviver sem respirar? Sem voar? A morte seria menos dolorosa.


— Me deixe cuidar do que realmente é mais precioso para você.


Ela não respondeu, enfim derrotada.