Madame Giry ficara mais do que satisfeita em orientar as jovens irmãs Anjou em seu intento de criar uma escola; com anos de prática em administrar turmas, tanto de crianças que residiam no teatro, quanto de alunas que vinham apenas para ter aulas, advertiu que o primeiro passo seria obter permissão legal para criar tal instituição. Nisso, ela e Annika estavam trabalhando juntas, uma vez que havia enorme burocracia envolvida; o passo seguinte, necessário mesmo para se obter a permissão de funcionamento, seria ter um lugar apropriado. E nisso, não apenas os Garotos do Beco, mas também Erik, haviam se empenhado. Após um mês de procura, já haviam passado em revista praticamente todo prédio que oferecesse as condições necessárias a uma escola, mas parecia que nada se encaixava perfeitamente. E foi quando a frustração já começava a se apossar da mulher loura que, uma noite, Erik a chamou a seu ateliê na Casa do Lago.

A jovem chegou ainda no começo da tarde, tendo deixado Alain com Gabrielle, que amava cada oportunidade de ter o sobrinho só para si. Curiosa, foi direto até a mesa onde o Fantasma se debruçava sobre grandes folhas cujas pontas se enrolavam sobre si mesmas. Várias velas e espelhos haviam sido colocados de modo a focar a luminosidade sobre os desenhos, e a expressão do homem era de pura concentração, embora houvesse nisso um ar de deleite e satisfação. Ele amava sua arte, definitivamente.

— É o velho conservatório da Ópera Garnier, a algumas quadras daqui? – perguntou Annika, aproximando-se e reconhecendo de imediato as plantas-baixas que seu noivo estudava. Pareciam diferentes do original (certamente alteradas por Erik), mas era perfeitamente reconhecível. O Fantasma sorriu:

— Com algumas alterações, é claro. Mas possui a infraestrutura de que vai precisar para seu objetivo; fiz alguns esboços das reformas possíveis, para que os veja. – Ele apontou a ala adicionada, onde pretendia construir os alojamentos – adicionei uma ala a leste, para os quartos e salas comunais, para aproveitar o sol da manhã. Deixei a biblioteca e as salas de música voltados para o sul, e transformei as salas e corredores da ala norte numa área de convívio interno. Um grande salão, com lareiras para manter o aquecimento. O anfiteatro só precisa ser reparado, mas possui um bom tamanho, e a acústica não é ruim. Poderá desenvolver algumas atividades interessantes, ali.

— Parece perfeito! – exclamou a mulher, debruçando-se sobre as plantas e analisando cada detalhe, eufórica, examinando cada linha e traçado – Mas... acho que não é muito bom o modo como o anfiteatro é todo fechado. Muito úmido, vai acumular mofo... Podemos implantar claraboias voltadas para o sul, leste e oeste, para permitir a entrada de luz e ar fresco?

— Janelas de madeira presas a um eixo central, que as faça girar sobre si mesmas: fechamento perfeito, sem entrada de luz externa durante as apresentações, e permite que se regule a luminosidade ao longo do dia. – concordou o artista, assinalando com pequenos asteriscos os pontos onde deviam ser inseridas as aberturas. Depois corrigiria as plantas. – gosto do modo como pensa nos detalhes, antes de a planta sair do papel. Na reforma da Ópera, tive de refazer as plantas várias vezes, à medida que iam pedindo mudanças nos planos originais, conforme a construção avançava. Você sabe o que quer, desde já.

— Estou aprendendo com o melhor. – respondeu a pianista, dando um beijo no rosto de seu amado, cheia de gratidão por ele participar de seus sonhos. Seus olhos varreram outra vez a folha do segundo pavimento – você fez as salas de aula como eu havia mencionado!

— Salas de aulas teóricas, e aulas práticas. Por isso escolhi o antigo conservatório – explicou o Fantasma; parecia empolgado, extremamente satisfeito com o trabalho que realizava – tem a infraestrutura de que precisamos; é só uma questão de distribuição e aproveitamento do espaço que já está lá. Reformar um prédio antigo vai ser bem mais barato do que construir um do zero, e cabe em nosso orçamento. Com boa vontade e sorte, serão seis meses a um ano de trabalho, e poderá abrir seu internato.

— Você é inacreditável, meu querido! – sorriu a dama, abraçando-o pelas costas e deitando o rosto em seu ombro – não tenho como lhe agradecer pelo que está fazendo.

— É sua missão, não é? – perguntou ele, virando-se para sua noiva e sentando-a em sua perna – sempre gostei de recriar coisas que já existem. Foi um prazer procurar a construção perfeita para abrigar sua escola, e nem preciso comentar como estou me divertindo em remodelar o conservatório. Ocupa meu tempo livre, e estimula minha mente.

— Acredita neste plano? – perguntou Annika, lembrando-se das discussões que haviam tido quando decidira realizar algo tão ousado. Erik ficara irritado e ciumento da atenção que Annie dirigia ao projeto, e manifestara isso muito claramente. Ela o mandara ao inferno, em palavras bem menos doces, e chegara a arremessar um sapato nele, durante um dos enfrentamentos. Contudo, nunca conseguiam ficar brigados por mais que algumas horas, e a pianista acabara vencendo, no final, convencendo seu amado a fazer parte daquilo tudo.

— Não. – respondeu ele. Erik não acreditava na humanidade, e achava que Annika sofreria uma séria desilusão, ao não receber de volta a dedicação que dirigiria a seus “alunos”. Seria duro, especialmente por ser uma instituição mantida por uma mulher, de moldes totalmente diferentes de qualquer escola, reformatório ou orfanato existente... Ela teria de lidar com inspetores corruptos, assédios de toda sorte, ingratidão e incompreensão. - Mas acredito em você. Sei que leva suas ideias a termo, não importa o quanto isso lhe custe, e fará o mesmo com esta escola. Mas sabe que isso não porá fim aos problemas do mundo, não sabe?

— Precisamos começar por algum lugar. – afirmou a jovem, acariciando o rosto dele – Sei que enfrentaremos muitos problemas, mas a primavera começa pelo desabrochar de uma única flor, que perde sua timidez e abre-se aos céus, mesmo que o vento frio possa arrancá-la. Se for forte, resistirá, e outras se juntarão a ela.

— Uma frase de sua mãe? – perguntou o homem, com um sorriso. Já se acostumara às frases da moça, que conseguiam, de algum modo, despertar algo de bom em si.

— Não. Minha. – respondeu ela, tirando do decote do vestido uma rosa branca, com a qual acariciou o rosto de seu futuro esposo – chega uma hora onde temos de sair da sombra dos grandes, para encontrarmos nosso próprio tamanho e lugar, no mundo.

— Não tome como ofensa a sua mãe, mas você já é bem mais do que ela foi. – o semblante da jovem se tornou mais sério, e ela deu a volta na mesa, para ver as plantas de outro ângulo – já chegou mais longe do que ela jamais foi, e se tornou muito mais do que a vida permitiria a outra pessoa, Annika.

— Acho que ela não chegou mais longe por que não teve chance, mas, mesmo assim... Obrigada, meu amor. Devo muito do que sou a você.

— Teria chegado longe, mesmo sem minha ajuda. – ele baixou o rosto para as plantas, memorizando o que teria de modificar, quando o toque frio de uma lâmina em seu pescoço o fez erguer a cabeça: Annika segurava sua espada, com ar travesso, deslizando-a contra a pele do homem numa brincadeira que já haviam feito antes.

— Annika, essa brincadeira de novo? – perguntou ele, num sorriso perigoso – você sabe que é péssima em esgrima. Não desafie o mestre.

— Não se pode ser bom em tudo, afinal. – devolveu ela – mas vou correr o risco de desafiá-lo. Posso gostar das consequências.

Erik aceitou o jogo, levantando-se bem devagar sob a mira da arma. De repente, num gesto rápido demais, afastou a espada de si com um castiçal vazio de metal, e contornou a mesa para alcançar a jovem. Ela escapou, subindo as escadas para perto do órgão de foles, rindo:

— Precisa ser mais rápido, monsieur!

— Não devia brincar com a sorte, mademoiselle.

Ele subiu as escadas atrás de sua noiva, a qual tentou fugir descendo as escadas do outro lado, o que a deixou encurralada entre o lago e o Fantasma. Ela tentava ficar séria ao erguer a espada, deixando-a entre si e seu noivo, mas um risinho teimava em escapar aos seus lábios enquanto Erik se aproximava. Com seu costumeiro ar arrogante e orgulhoso, ele deslizou o castiçal contra a espada, como se fosse uma luta de verdade, travando a lâmina no alto, até estar a centímetros de Annika. Sua mão se fechou sobre o punho da arma, e uma torção rápida a arrancou das mãos da moça, que ria demais para conseguir lutar. Os braços do músico se fecharam ao seu redor, indiferentes à sua tentativa de fuga, e ele a ergueu no ombro.

— Erik! – exclamou ela – pare com isso!

— Alguém precisa esfriar seu ânimo, Mademoiselle – ele a carregou para dentro do lago, e a jogou na água rasa, escutando o grito de protesto dela ao sentir o líquido gelado contra sua pele quente. Mas as coisas não saíram bem como ele planejara, pois ela o puxou consigo, e logo os dois estavam encharcados – mas que droga, Annika!

— Agora, seu ânimo também está frio – declarou ela, levantando-se. Erik ficou de pé no lugar onde caíra, apenas fitando a moça, fascinado. Só podia ser um sonho! Quando fora que se tornara merecedor daquela mulher? Ela torcia os cabelos, e percebeu o olhar de Erik sobre si.

— O que foi? Foi você quem começou! – ele nada disse, apenas se aproximando e acariciando o rosto feminino com delicadeza. Era tão bom ser tocada por ele! Erik começou a beijar-lhe o ombro exposto pelo vestido; ela suspirou de contentamento, e perguntou num gemido:

— Está tentando me enlouquecer, Fantasma?

— Eu só comecei, mademoiselle – brincou ele, tomando-a num beijo intenso.

Horas mais tarde, deitados juntos no leito em forma de cisne, trocavam beijos suaves e carícias delicadas, apaixonados, quando Erik sussurrou ao ouvido da dama:

— Até quando pretende continuar me enganando, Annika?

— Enganando-o? – ela soou genuinamente confusa. Do que ele falava?

— Há seis meses a pedi em casamento. O que estamos esperando? O fim dos tempos? – ele se apoiou num braço e tomou o rosto dela na mão livre, beijando-a suavemente – merecemos ter esta alegria, Annika. Gabrielle já é uma moça, e Alain entrou em nossas vidas... Quero que seja minha mulher, e quero poder adotar Alain. O que mais estamos aguardando?

Ela riu baixinho, tocando a fronte dele com a sua, e respondeu:

— Não sei. Talvez esperar tenha se tornado um hábito... Mas você está certo. Não há motivos para aguardar. – a pianista virou ambos no leito, deitando-se sobre o corpo de Erik, distribuindo pequenos beijos em seus lábios, queixo e pescoço – quero ser sua, Erik, para sempre.

— Então seja – ele segurou seus pulsos com força, beijando-a novamente, com intensidade – para sempre. Sem esperar mais.

— Sem esperar mais. Vamos escolher uma data. Eu serei sua, meu amor. Para sempre. – concordou ela. Parecia que todos os seus planos e sonhos estavam, enfim se concretizando. Sonhos bem diferentes daqueles que tinha quando era apenas uma escrava, quando sonhava apenas com não ser mais um objeto. Agora, era uma pessoa, e isso porque Erik lhe dera tal chance, porque fora o primeiro a trata-la como um ser humano, em vez de uma posse. Talvez isso houvesse despertado o amor que sentia por ele, embora algo dentro de si suspeitasse, lá no fundo, que o amara desde o primeiro momento em que despertara nos braços dele, dentro da carruagem, anos atrás.

POV Erik

No dia seguinte, fiquei responsável por Alain, enquanto Annie e Gabi ensaiavam; geralmente, uma das amigas delas cuida do menino, mas fiz questão de mantê-lo comigo. Amo aquele pequeno, um amor forte, distinto de tudo o que conheço. Não importa o que as leis digam, não importa o que o sangue diga, ele é meu filho, meu primogênito; sua primeira palavra foi “pai”, dirigindo-se a mim! É verdade que me sinto desajeitado, e muitas vezes não sei o que fazer com uma criança de dez meses, mas fiz o possível... Estou aprendendo. Deixei que engatinhasse pela Casa do Lago, vigiando para que não se ferisse com algum objeto caído no chão, e depois o pus sentado em meu colo, para que suas pequenas mãos explorassem o órgão de foles. Ele parece tão pequeno e frágil, que chego a temer machuca-lo. Mesmo assim, consegui distraí-lo por várias horas, antes de leva-lo para a superfície, onde Meg – recém-saída de seus exercícios matinais – me salvou, levando-o para comer. Sabendo que ele estava em excelentes mãos, embrenhei-me nas passagens do teatro, meditativo, pensando em tudo o que se passava.

Annika e eu escolhemos a data de nosso casamento para a próxima lua cheia, dentro de três semanas. Talvez eu seja possessivo demais – afinal, nossos nomes assinados em um papel não fazem diferença alguma, uma vez que já vivemos como marido e mulher – ou talvez seja fruto apenas de meu velho medo de ser abandonado. Mas sei que isso não acontecerá, com Annika. Ela não é traiçoeira, sabe muito bem o que quer, e não tem medo de expressá-lo – impossível não pensar nos sapatos e candelabros que voam, durante nossas brigas. De fato, não teria aceitado meu pedido, se não desejasse realmente ser minha mulher. Porém, sinto nela certo medo. Ela teme algo, e por isso esperou tanto em escolher um dia para a cerimônia; mas creio que nem ela mesma tenha consciência deste medo. Compreensível, dado o seu passado... Um casamento não deixa de ser um laço, uma perda de liberdade, ainda que voluntária. Annie tem o direito de estar assustada e hesitar, por mais que sua atitude me fira com ciúmes. Ah, eu sou realmente doente, por sentir-me assim!

E por falar em doente, há algo que não contribui para minha sanidade: não consigo demover Gabrielle de seu romance com o garoto Renard. Ele pode ser um ótimo amigo para Annie e Gabi, mas isso não significa que vá fazer bem à menina. Irônico, não é? Eu vou me casar com a irmã mais velha, e censuro a irmã mais nova por se envolver com um rapaz cujos crimes são infinitamente menores que os meus, e que nunca irá fazer a ela os males que já fiz a Annika. Ainda assim, eu o avisei, quando decidiram assumir seu “namoro”: se Gabrielle derramar uma única lágrima por causa dele, eu o farei derramar dez vezes mais, antes de mata-lo. Apenas um lembrete amigável, caso ele se sinta inclinado a trair ou machucar minha aluna; amo aquela menina como se fosse minha irmãzinha, e não hesitaria em torturar alguém que a magoasse. Mas devo admitir que o garoto está se saindo muito bem, até agora. Ela está feliz, e isso o mantém vivo, por hora.

Acabei descobrindo que a companhia daqueles jovens delinquentes, a quem Annie chama Garotos do Beco, pode ser bastante agradável. Todos tiveram vidas difíceis, e julgamento é algo que não se encontra em seu meio. São divertidos, e levam a vida como podem, ora com trabalhos “honestos”, ora com seus delitos; não sou ninguém para censurá-los, e já cheguei a ensinar um ou dois truques de luta a Charles e Miguel, os mais jovens, que competem nos tais clubes de luta. Annika, às vezes, treina com os mais velhos, e fiquei, bem... Surpreso, quando a vi desafiar a moça Sarah. As duas mais pareciam dois gatos selvagens brigando, e censurei minha noiva por isso... Ela me mandou ao inferno, ou melhor, a um lugar um pouco menos elegante, e discutimos outra vez. Estamos sempre discutindo – longe de Alain, é claro – mas nunca dura. Não consigo ficar com raiva de minha noiva. Amo-a demais para isso.

Definir o amor que sinto por Annie é difícil... Dizer que mataria por ela? Não é o suficiente, pois matar, para mim, é fácil – às vezes, é mesmo prazeroso. Eu morreria por ela? Sem hesitar, mas não temo a morte. Em verdade, meu amor por ela é tão grande, que eu a deixaria partir, se isso a fizesse feliz. Mas, diferentemente do que houve com Christine, isso não me mataria por dentro: eu me alegraria com a felicidade dela, e faria disso o meu sustentáculo. A este ponto chega meu amor por ela. E como poderia não ser? Annika não é uma musa perfeita, uma deusa sem defeitos... Ela os possui, mas faz suas qualidades serem muito maiores do que suas falhas; não hesita em ser ela mesma, em dizer o que pensa, em fazer o que acha certo. É corajosa, teimosa como uma mula, doce como o mel ou ardida como pimenta, dependendo da situação... E, acima de tudo, é boa. Seu coração é cheio de luz, embora também possua trevas, sem se deixar tomar por elas. Minha noiva é um enigma, que tenho o prazer de desvendar a cada dia. Logo, logo, estaremos casados, e seremos uma família, com nosso pequeno Alain.

Saí de meus devaneios, escapando para o terraço: de lá, eu podia ver o telhado do antigo conservatório. No dia seguinte, Annie e eu iríamos à prefeitura, tomar conhecimento dos procedimentos necessários à sua aquisição. De fato, eu não cria muito em sua ideia – ela poderia mudar a vida de dez, vinte, trinta crianças, mas sempre haveria uma pessoa a mais, sempre haveria um sofrimento que ela não poderia aplacar, e isso a frustraria profundamente. Mas, também, sabia que ela era teimosa, forte, persistente... Ela teria sucesso. Eu podia não crer que a medida teria real diferença, mas lembrava-me das palavras de minha noiva: talvez não mudasse o mundo todo, mas mudaria o mundo de cada pessoa cuja vida fosse transformada. No fim, talvez eu estivesse começando a crer; crer em Annika, no modo como ela queria passar a diante o bem que lhe fora feito. Sim, eu queria participar disso. Queria participar de seu sonho, e estar ao seu lado quando enfrentasse as dificuldades que certamente viriam; talvez fosse mais um passo para me redimir não apenas para com o mundo, mas para comigo mesmo.