Anjo das Trevas

Quando tudo dá certo


— Annika, se não parar quieta, vou acabar furando você! – censurou Madame Tremain, ao marcar o decote do vestido, de modo que este se assentasse corretamente no colo da mulher loura.

— Desculpe, Madame – sorriu a moça, parando de alternar o peso entre os pés – passei o dia andando pelo velho conservatório, estou um pouco cansada. A expectativa não ajuda, também.

— Vai adquiri-lo, mesmo? – perguntou a senhora, marcando com um alfinete a pence necessária. – Pensei que seria difícil...

— Consegui, graças à Madame Giry. Ela conseguiu um preço razoável pelo prédio, acessível a minhas... Economias. – melhor não comentar sobre o dinheiro guardado por anos na parede oca de um beco, afinal. Ela tratou de ficar imóvel enquanto a senhora marcava a barra de seu vestido, sorrindo com alívio ao ouvir que podia descer da cadeira. Nesse momento, Gabi entrou no quarto da pianista, que abriu os braços e girou, mostrando o vestido:

— O que acha?

— Diferente de tudo o que já vi, mas certamente é lindo! – aprovou a adolescente – vai ser a noiva mais bonita que Paris já viu. – a garota segurou entre os dedos a fina renda das mangas, apreciando o tecido – Conheço certo Fantasma que vai ficar hipnotizado, quando vir.

— É a ideia – sorriu a mais velha, girando na frente do espelho para ter uma visão melhor do próprio corpo. Aos vinte e três anos, estava mais bonita do que já se lembrava de ter sido, e agora isso não a assustava, mas a deixava profundamente feliz. Nem mesmo as cicatrizes de açoite podiam apagar o brilho de felicidade que a envolvia. E como poderia não ser assim? Estava prestes a se casar com o homem a quem amava, adotara um lindo garotinho, sua irmã estava feliz, iniciando carreira como violinista, enquanto ela própria já começava a ser conhecida fora da França por seu talento como pianista. Seus amigos de adolescência começavam a encontrar seus próprios lugares no mundo, e a isso somava-se o fato de que a escola com a qual tanto sonhava parecia a cada momento mais perto de se tornar real. Nada poderia ser mais perfeito! Estava perdida em sonhos quando, de repente uma voz masculina a tirou do devaneio:

— Posso interromper, senhoritas? – de imediato Madame Tremain ergueu um lençol para cobrir a figura de Annika, enquanto Gabrielle bloqueava a visão do Fantasma, bronqueando:

— Erik! Não é para ver a noiva vestida antes do casamento!

— Pare com isso, Gabrielle; quero falar com sua irmã!

— Espere-me tirar o vestido! – gritou a mulher, de trás do lençol, a silhueta delineada contra o tecido mostrando que despia velozmente a peça e colocava um traje de trabalho por cima. Foi só então que Madame Tremain soltou a cortina improvisada, para revelar uma Annika sorridente – agora podemos falar.

— Você sabe que essa história do vestido é só uma superstição, não sabe?

— Estou pouco preocupada com a superstição. – ela deu de ombros – mas quero que seja surpresa, e você não vai estragar tudo espiando em momentos impróprios!

— Isso explica os panos sobre os espelhos – riu-se Erik – mas vim aqui avisar que está tudo pronto para fechar a compra do conservatório. Você havia dito que gostaria de ter-me consigo, no momento.

Sem nada dizer, a mulher deu um passo na direção de seu noivo e o beijou, para só então sussurrar:

— Eu te adoro. – Vendo a cena, Gabi pigarreou:

— Aham... Lamento interromper, mas estamos no meio de uma prova do vestido de noiva. – o casal se afastou, levemente ruborizado, e Erik declarou:

— Vou esperar lá fora.

Com um sorriso compreensivo, Madame Tremain aguardou que o Fantasma saísse, para então fazer Annie vestir novamente seu traje de casamento, a fim de marcar os últimos ajustes; a velha senhora tinha enorme afeto pela jovem, e estava sendo um prazer enorme ajudar a fazer o vestido daquela moça, que tinha a mesma idade de seus netos. Sem dúvidas, ela seria a mais linda das noivas.

*

Annie tirou um a um os tijolos que cobriam seu esconderijo secreto. Cuidadosa, tateou lá dentro até encontrar o pequeno tesouro que juntara ao longo dos anos; não fora o bastante para comprar a liberdade dela e da irmã, mas era uma pequena fortuna! Erik e Gabi olharam, surpresos, a quantidade de moedas que ela retiro e contou cuidadosamente, certificando-se de estar tudo lá. Tudo, menos o que roubara de Erik, naquela noite em que se haviam conhecido: o danado certamente recuperara o que lhe fora tirado, antes mesmo de comprar Annie e Gabi!

Enquanto pegava aquele dinheiro nas mãos, a mulher via passar diante de seus olhos não apenas a situação que a levara a juntá-lo – seria muito difícil, para não dizer impossível, esquecer-se de todo o sofrimento no bordel – mas também em cada roubo, assassinato, invasão... Na época, não se arrependera de nada, mas agora começava a questionar se não teria havido outros meios, outras formas... Não teria ela, também, destruído famílias com os assassinatos cometidos? Alguns dos homens que matara eram, com certeza, chefes de família... E se, agora, houvesse meninas jogadas na mesma vida que ela abominara, e por sua causa? A culpa e a dúvida vinham assalta-la com força, quando sentiu as mãos pequenas de Gabi na sua, e os dedos firmes e frios de Erik em seus ombros.

— Você fez o melhor que pode, irmãzinha. – declarou a adolescente – não se culpe por coisas sobre as quais não pode ter controle. Não tinha alternativa, na época, e não pode mudar o que houve, agora.

— Eu causei tanto mal a outras pessoas... – ponderou a moça.

— Então, faça com que tudo tenha valido. – declarou Erik, firme – use este dinheiro para algo bom: dele virá a escola que pretende fazer. Faça isso, e estará quite com qualquer justiça que possa haver no mundo.

A mulher sorriu para a irmã e o noivo, e guardou as preciosas moedas; não deixava de haver em si um sentimento de vitória: ela conseguira. Não apenas sobrevivera ao inferno, como saíra dele e se tornara alguém; era hora de retribuir a bondade que a vida tivera para com ela. Assim, antes que o dia findasse, havia assinado o contrato de compra do velho conservatório. Precisava, agora, reforma-lo, encontrar professores e, se possível, vincular a fundação novamente à Ópera Garnier – pediria uma reunião com os administradores, mais para frente. Mas enfim, estava se realizando: o primeiro passo se completara, e agora estavam prontos para seguir adiante com o ambicioso projeto.

Na manhã seguinte, estavam reunidos todos os Garotos do Beco – teriam de mudar o nome, agora que havia Sarah e Marie, uma viciada em jogo de dezenove anos que conhecia todos os truques e trapaças para vencer suas apostas – além de Annie, Gabi, Erik, Meg e Madame Giry. Madame Tremain estava presente, também, assim como Isabelle, que distraía um curioso Alain, cujo desejo era o de mexer em tudo que seus olhinhos pousavam. A pianista se dedicou a mostrar todo o prédio aos amigos, e explicar quais reformas seriam feitas; os Garotos do Beco pretendiam “pôr as mãos na massa” e participar da reforma por conta própria, enquanto as damas já começavam a considerar quais trabalhadores deveriam contratar. Erik, como arquiteto, já tinha em mente o processo de organização e administração das equipes, e não estava otimista em relação ao tempo... Porém, via determinação e vontade nos olhos dos envolvidos, e sabia que o projeto seria finalizado. Ele próprio ajudaria a garanti-lo.

Por três dias, Annika e Erik explicaram as plantas desenhadas a cada um dos presentes; ao cabo do terceiro dia, todos já sabiam o que fazer. Havia paredes a serem derrubadas, e outras a serem construídas, um jardim a ser plantado, teto e chão a serem reparados. Graças à ajuda de Isabelle, Annika e Erik conseguiram contratar uns poucos homens, bem como arranjar material para a reforma. Teriam de fazer tudo aos poucos, mas não era impossível.

Com o casamento se aproximando, o sucesso de Annika como pianista, a felicidade de Gabrielle e Renard, a presença de Alain... Parecia que, de algum modo, tudo estava dando certo! Havia um enorme sorriso estampado no rosto da pianista e, para a surpresa de todos, também do Fantasma. Sim, ele estava feliz. Não... Não estava... Pela primeira vez na vida, ele era feliz!

*

— Annika, pelo amor de Deus, acalme-se! – censurou Isabelle, tentando fechar o espartilho da amiga – você está tremendo!

— Não consigo evitar! Estou até suando frio! – replicou a moça loira, ficando tão imóvel quanto podia. Gabrielle, que arrumava em cachos os cabelos da irmã, riu:

— Mas vocês dois já vivem como marido e mulher! Por que tanto drama?!

— Não é drama! – protestou a noiva – estou realmente nervosa! Ora, Gabrielle, eu vou me casar!

— Era para estar feliz! – zombou a pequena, já pronta com suas vestes de dama de honra: um vestido longo e armado, branco, com pequenas flores róseas na sobressaia e nas mangas longas. Uma tiara de renda branca se perdia entre os caracóis da jovem, que parecia mais uma fada, com aquelas roupas.

— E estou! – Annie se debruçou na penteadeira – na verdade, tão feliz que parece um sonho. Tenho medo de acordar, e estar de volta àquele bordel, sem Erik, sem Alain, sem todos os nossos amigos...

— Mas isso não vai acontecer – interrompeu Isabelle, erguendo a cabeça da amiga para que a adolescente pudesse terminar seu trabalho – você está livre, feliz, e vai se casar. Isso se nos deixar terminar de arrumá-la, é claro!

A noiva riu, e ficou imóvel em seu banco, deixando-se pentear e maquiar pela irmã e pela amiga. Sarah entrou no quarto com um grande embrulho nos braços, praticamente oculta por trás do que carregava:

— E agora – disse ela – o vestido da noiva!

Maquiada e penteada, Annie se levantou afobada, um sorriso enorme em seu rosto quando abriu o embrulho que escondia o vestido: estava perfeito! Exatamente como imaginara! Só Madame Tremain conseguiria finalizar aqueles pequenos detalhes tão delicados!

— Uau, Annika! – exclamou a cigana – é lindo! Mas a cor é... Bem pouco convencional...

— No Egito, era a cor da fertilidade, da abundância e da vida. – respondeu a mulher loira – além disso... Essa cor tem um significado especial, para Erik e eu.

— Não ia esperar outra coisa de você, Annie – brincou Gabrielle – a noiva do Fantasma tem de estar vestida de acordo!

Em meio a gracejos e brincadeiras, as mulheres terminaram de arrumar a noiva. Extremamente feliz, ela mal podia descrever o que sentia: seu coração parecia prestes a saltar do peito, e a expectativa era tão grande que chegava a lhe dar vertigem! Quando olhou no espelho, e viu-se pronta, afinal tudo assumiu um ar de realidade: ela ia, realmente, casar-se com o homem a quem amava mais do que a própria vida. Finalmente a felicidade era sua, e não deixaria que lhe fosse tirada, outra vez.

Com o coração palpitante e a respiração acelerada, acompanhou as amigas para fora; Madame Giry a esperava fora do quarto, usando um vestido verde-escuro bem mais vistoso do que suas sóbrias e elegantes vestes negras do dia a dia; seria a senhora quem levaria Annika ao altar, fazendo as vezes do pai que a jovem não possuía, e da mãe já falecida. Seus dedos gentis se fecharam sobre os da moça, e a voz da senhora pareceu vir de muito longe, para a noiva, quando falou:

— Venha, menina. É hora de ir ao encontro de seu amor.