Um mês depois

Annika desceu do palco com um sorriso, com todos os “ratinhos” e “ratinhas” da escola a falarem sem parar nas coxias, cumprimentando-a. O apelido, obviamente, viera da parte de Renard e Claude, os quais haviam dito que, sendo as crianças protegidas pela “ratinha”, também elas deveriam ter o mesmo apelido. E pareciam mesmo ratinhos, com seus pezinhos fazendo barulho ao andarem aceleradamente pelas coxias, bastidores, salas e salões da Ópera.

Rindo, cercada pelas meninas e meninos de sete a treze anos, ela abriu caminho pelas mais de trinta crianças presentes – filhos do teatro e protegidos da escola – falando com todos, compartilhando com os pequenos de sua alegria. Sentia-se mesmo um pouco vaidosa, ao penar que servia de paradigma para todos eles. Instantes depois, riu quando uma voz grave e séria ecoou, parecendo vir de todos os lugares ao mesmo tempo:

— Agora já chega, pequenos camundongos. Madame Destler tem outros compromissos, além de aturar seu chilrear.

As palavras do Fantasma fizeram debandar os pequenos como andorinhas ante um barulho alto. Aquilo fez rir até Madame Giry, que se aproximou de sua protegida:

— Erik impõe mais respeito do que eu.

— Creio que a técnica da bengala funcione apenas com as meninas do ballet, Madame – brincou Annika, deixando as coxias e indo para o corredor dos camarins, onde Gabrielle a esperava, acompanhada de Renard, Erik, Alain e as gêmeas. Não tardou para Meg e Jean se juntarem a eles, com a empolgação que sempre se posava de todos em dias de apresentação. A bailarina estava linda em seu collant branco, saia de penas, meia calça branca e tiara também de penas, pronta para subir ao palco e interpretar Odette, em alguns minutos.

— Você estava linda no palco! – exclamaram juntas as duas moças mais novas, abraçando Annika, antes que Alain se jogasse nos braços da mãe, elogiando-a também.

— Obrigada! – e quando Gabrielle e Meg saíram correndo, uma para se juntar à orquestra, a outra ao corpo de ballet – boa sorte, meninas! Boa sorte!

Madame Giry saiu correndo para pôr ordem nas bailarinas mais jovens, que sempre se perdiam em mexericos e brincadeiras, enquanto Jean e Renard, após cumprimentarem Annie pela brilhante performance, iam para o anfiteatro, assistir à performance de suas amadas.

Levemente atordoada pela balbúrdia comum a todo dia de apresentação, a pianista abriu a porta de seu camarim, onde entraram ela, seu marido e seus filhos. Sorridente, ela se sentou no divã, com os três pequenos subindo em seu colo. Erik, da porta, observava a cena com um sorriso no rosto, antes de vir, enfim, abraçar sua mulher. Os pequenos deram espaço para o pai, que se sentou e envolveu a todos em seus braços, cobrindo-os com as abas da capa. As crianças riram, enquanto Annika abriu um sorriso gentil e beijou amorosamente seu Fantasma.

— Foi absolutamente perfeita, como sempre – disse ele, fazendo surgir como que do nada uma rosa vermelha e branca, perfumada como poucas. A pianista a aceitou com outro beijo, antes de dizer:

— Como posso não ser perfeita, se o que ponho em minha música é meu coração, e ele está cheio de amor e perfeição?

Erik não disse nada, mas seus olhos transbordavam amor, orgulho, felicidade; não lembrava nem de longe o homem que, há quase seis anos, comprara uma meretriz e sua irmãzinha. Assim como Annika sequer assemelhava-se à jovem tirada das ruas e posta a viver com um patrão a quem odiava e que, depois, aprendera a amar, quando vira o homem por trás das farsa que ele criava para proteger a si mesmo.

— Como pudemos mudar tanto? – perguntou ele, traduzindo em palavras os pensamentos de sua esposa. Ela, porém, não conseguiu responder, já que Alain se “vestira” com a barra da capa do pai e fingia ser o “Fantasma da Ópera”; a mãe gargalhou com a cômica e acurada imitação quando o menino falou:

— Sou o senhor desse teatro! Façam o que ordeno, ou serão “enfrocados”!

— Oras, seu capetinha – Erik pegou o pequeno por um pé e o ergueu de cabeça para baixo, fazendo-o gargalhar – para começar, é enforcados, e não enfrocados, e isso é coisa do passado! Onde você ouviu isso?

— Tia Gabi. – riu o garoto, enquanto a mãe o pegava das mãos do pai.

— Eu vou matar Gabrielle – falou Annie – mas você há de convir, meu amor: a imitação dele foi perfeita.

— Peste. – acusou o Anjo, bagunçando os cabelos da esposa e voltando, então, atenção para as filhas, que se ocupavam brincando com sua capa. Com um ano recém-completado, elas ainda não falavam fluentemente, mas tinham um bom repertório de palavras, e conseguiam fazer-se entender muito bem. Saindo de baixo da capa de Erik, Carol pediu:

— Balé, papai! Balé! – ele entendeu de imediato: a pequena queria assistir à apresentação. Era engraçado o modo como as gêmeas ficavam sentadas no colo dos pais, quietas, ouvindo a música e prestando atenção a cada ato, fascinadas. Talvez ainda não tivessem idade para entender os enredos e as complexas histórias, mas ficavam quase hipnotizadas pela música e pela coreografia dos bailados, assim como pelas encenações das óperas. E ambos os pais incentivavam tal fascínio.

Acalmando um pouco a agitação dos pequenos, o Fantasma e a pianista se dirigiram para fora do camarim, em direção ao camarote cinco. No caminho, Julie e Armand – um menino de onze anos, tirado das ruas pela dama, que também a adotara como “mãe” – juntaram-se a eles. No começo, Erik ficara muito incomodado pela proximidade com tantas crianças novas, mas mudara sua postura ao lembrar-se de como ele próprio fora uma criança que teria dado qualquer coisa por um pouco de atenção e carinho. Ainda se sentia um pouco desconfortável, mas fazia todo o possível para não o demonstrar, e ser tão gentil quanto podia com todos os pequenos. Quando não conseguia lidar com toda a balbúrdia e agitação – não sabia como Annika conseguia – escondia-se sozinho na Casa do Lago, para buscar um pouco de silêncio. Mas verdade é que já havia momentos em que, estando sozinho, sentia falta de tudo aquilo. Pois tudo quanto quisera, por toda uma vida, não fora ser amado? Agora ele era. Sem restrições, e sem medo. Pois o que tinham a temer crianças cujas vidas anteriores haviam sido de fome, dor e abandono? Ele podia apostar que, mesmo se tirasse a máscara, nenhum dos pequenos lhe teria terror, e isso fora tudo quanto pedira, em cada sonho, desde menino.

Acomodaram-se juntos no camarote, deixando que as crianças se refestelassem com a beleza das coreografias, da música, do cenário e do jogo de luzes, estes últimos cada dia mais aprimorados pelas novas técnicas que Erik – e às vezes Annika – inventava. Naquele momento, tudo estava perfeito.

*

Alguns dias depois, Annika se pusera a ensaiar no anfiteatro da escola que, a essa hora, estava vazio. As meninas dormiam no quarto, e Alain estava ao lado da mãe, que já lhe dava lições há alguns meses. Três anos e meio era uma boa idade para se começar a aprender, afinal, e o garoto possuía uma excelente concentração, aprendendo depressa tudo o que lhe era ensinado.

Estavam ali havia quase uma hora, quando um monitor – Jacques Merchand – entrou no auditório, o que fez a pianista parar imediatamente as escalas que tocava para treinar os ouvidos do filho.

— Bom dia, Jacques – cumprimentou ela, no que foi imitada pelo filho – está tudo bem?

— Está tudo bem, Madame Destler, mas há uma senhora que deseja falar consigo. Está na sala da direção.

Imaginando tratar-se de alguma mãe interessada em matricular os filhos, ou dona de orfanato/reformatório querendo transferir alguma criança, a mulher se levantou do banco:

— Muito bem, estou indo. – e para o filho – ensaie mais um pouco, meu amor, e depois vá brincar com seus amigos, está bem.

— Sim, mamãe – disse ele, pondo-se a tocar as escalas com suas mãozinhas pequenas e gordinhas de bebê.

A mulher acompanhou seu funcionário até a diretoria, onde este lhe abriu a porta com deferência. Todos ali não apenas respeitavam, mas amavam muito a proprietária e diretora do colégio, que era justa, gentil com os que mereciam, e inflexível quando se tratava de defender os seus. Quando a porta se abriu, Annika divisou a imagem de uma mulher pequena, com cabelos castanhos e cacheados semi-presos por uma fivela, voltada para a janela. Quando esta mulher se voltou, porém, a pianista sentiu o coração pular, tamanha a surpresa, pois tratava-se de ninguém mais, ninguém menos, do que Christine de Chagny!

— Christine! – exclamou Annika, atônita ao ver ali a mulher com a qual não falava há quatro anos.

— Annika... – sussurrou a viscondessa, com um tom de esperança na voz. Mas ela parecia diferente da jovem que Annika conhecera, através dos portões: estava pálida, abatida, os olhos sem brilho e os cabelos presos, sem viço. Havia dor em seu coração, e tanta tristeza! A tristeza no olhar da morena, somada ao cansaço de seu rosto e desesperança em seu semblante, fez com que a outra de imediato fosse até ela, abraçando-a:

— Faz tantos anos! Vamos, sente-se – e vendo a exaustão da outra – Jacques, por favor, peça um chá de especiarias bem forte, nas cozinhas, para Madame de Chagny.

— Não é preciso, muito obrigada – agradeceu a viscondessa, esfregando a têmpora com a mão – apenas preciso falar com você, Annika, a sós.

O monitor entendeu de imediato, e deixou a sala da diretora, fechando a porta atrás de si. Sozinha com Christine, a pianista perguntou:

— O que houve, menina? Parece tão esgotada que mal pode andar!

— E estou... – gemeu a soprano. Ela tentou manter a compostura, mas lágrimas teimosas lhe escaparam aos olhos, preocupando a diretora, que sabia reconhecer quando alguém estava em real desespero – Annika, eu lamento perturbá-la, mas vim aqui porque você é minha única esperança!

— Como assim? – ela se sentou de frente para sua conhecida e segurou-lhe as mãos de modo confortador.

— Há quatro anos você me pediu que falasse com Erik... Eu o fiz. Agora, venho lhe pedir que me ajude, também... Pois Raoul descobriu as cartas de Erik que eu mantinha guardadas, e agora acusa-me de infidelidade. Ele disse... – ela soluçou - Disse mesmo que duvida da paternidade de nossos filhos! Que vai pedir o divórcio, e mandar os meninos para um internato, quando tiverem idade... Disse que nunca mais o verei, ou a nossas crianças! – seu pranto se tornou intenso – por Deus, Annika, eu juro: todo o amor que tive por Erik, e que ainda tenho, é o de uma filha por seu pai! Eu jamais traí Raoul, eu... Eu o amo verdadeiramente, e jamais lhe seria infiel! Mas ele não crê nisso, por conta do teor das cartas de meu mentor... – a partir deste ponto, o choro tornou-se forte demais para que ela pudesse falar.

Por alguns instantes a mulher loira ficou perplexa, tentando organizar as informações: primeiro, Christine guardara as cartas que Erik lhe enviara, em vez de jogá-las fora, como seria mais prudente. Segundo, ela as escondia de Raoul – obviamente. Terceiro, o Visconde descobrira as cartas, e agora duvidava da fidelidade da esposa – algo que, à pianista, pareceu absurdo, uma vez que todas as cartas remetidas pelo Fantasma, na época, pediam à soprano que retornasse para si, que o perdoasse, o que por si só dizia não haver mais nada entre ambos...

— Christine, eu... Nem sei o que dizer. Ele não tem batido em você, tem? – ante a negativa da outra, ela organizou a própria mente – como ele pode pensar que você o trairia, se as cartas de Erik pediam a você que retornasse para ele? É incongruente!

— Raoul está cego de ciúmes. Ele não enxerga nem mesmo algo tão óbvio... – os olhos castanhos se ergueram para a diretora, desesperados, desconsolados – por favor, Annika, fale com ele. Ajude-me. Fiz tudo o que podia, mas ele não quer mais sequer ouvir o que tenho a dizer. Ainda vivemos na mesma casa, mas não há de ser por muito tempo... Por favor, estou desesperada, e não sei a quem recorrer! Meg ou Madame Giry não seriam ouvidas por ele, mas você...

— Ele não sabe que nos conhecemos. Há de me receber, é claro. - Ponderou a loira – Quanto a tem maltratado, Christine, para que esteja tão abatida?!

— Não fisicamente, mas suas palavras são tão mordazes, e passou a tratar-me com tal indiferença... E o que mais dói: passou a tratar nossos dois filhos com indiferença. Por Deus, isso é como uma facada, para mim, e sabem os céus as brigas que tivemos por conta disso. – ela voltou a soluçar – Annika, por favor, ajude-me.

— Acalme-se, Christine – a pianista abraçou a outra, compadecida e com raiva, ao mesmo tempo: como Raoul podia ser tão estúpido? E tão cruel, pois era óbvio o estado deplorável em que se encontravam as emoções da jovem! – está tudo bem. – embora não se sentisse em débito para com a soprano, que não fizera mais do que o próprio dever em falar uma última vez com o Fantasma, Annika não conseguiria desamparar a moça, por mais que a própria tolice dela a houvesse posto em sua atual situação – escute, eu falarei com Raoul, hoje mesmo.

— Ah, obrigada, Annika! – exclamou a outra, enxugando as lágrimas – perdoe-me por pedi-lo, mas...

— Não tem de me pedir perdão. – disse a loira – mas você está com uma aparência terrível... Devia comer algo, e tentar dormir um pouco. Temos quartos vazios, aqui... Pedirei a Anne-Louise que a acompanhe, está bem. Fique aqui, até que eu resolva tudo.

A soprano pareceu querer dizer algo, mas Annika não lhe deu chance, saindo para ir atrás da monitora, que logo veio toda em sorrisos, para levar consigo a viscondessa.

— Venha, Madame de Chagny: levá-la-ei ao refeitório, e depois terá um quarto só para si, para um pequeno descano. Certamente lhe fará bem.

A pianista e a soprano trocaram um olhar, e Annika fez um gesto com a cabeça, encorajando a outra:

— Cuidarei de tudo. Eu prometo. Terá sua vida, seu esposo e seus filhos de volta.

Depois de a soprano deixar a sala da diretoria, Annie desceu até seus aposentos privados no subterrâneo, onde se vestiu para sair: vestido verde-escuro com espartilho, chapéu da mesma cor, adornado por plumas pequenas e discretas, também verdes, e uma delicada renda negra pendendo discretamente sobre parte do rosto. Colocou luvas negras, sapatos pretos, e mirou-se no espelho: os cabelos presos numa trança enrolada sobre si mesma lhe davam um ar respeitável e autoritário – fora com Madame Giry que ela aprendera que o vestuário correto já era excelente arma na hora de impor respeito. E a dama que a fitava do espelho era alguém inflexível, determinada e digna, alguém a quem nem mesmo um visconde desrespeitaria. Bendita Madame, que tanto lhe ensinara!

Ela saiu de fininho, sem se deixar ver pelas crianças em aula ou pelos professores, indo até os estábulos, onde encilhou Brisa, sua égua de pelos cor de mel e crina branca. Montou e pôs-se a caminho: sabia onde ficava o escritório do Visconde, pois este não era longe do escritório de advocacia onde ela cuidara dos trâmites necessários à abertura da escola. Só o que não percebeu foram os olhos dourados que a acompanhavam de longe, cheios de preocupação e irritação misturadas, enquanto as mãos enluvadas de seu portador manejavam as rédeas do irritadiço cavalo negro. Erik ouvira a conversa, e não ficara nem um pouco feliz em saber que Raoul andava maltratando Christine. Menos feliz ficou ao ver sua adorada esposa indo encontrar aquele crápula. Talvez o Fantasma devesse agir, outra vez.