— Monsieur Visconde de Chagny – começou o secretário de Raoul, tirando-o da leitura de documentos acerca das compras e vendas de seus navios na marinha mercante. Uma feliz interrupção, pois já estava mais do que aborrecido com tantos papeis, nos quais não conseguia prestar a mínima atenção.

— Sim, Monsieur Lascoux? – perguntou, mais interessado no que quer que o senhor tivesse a dizer, do que nos papeis em suas mãos. Desde que descobrira as cartas que Christine guardava, não conseguia concentrar-se em coisa alguma... Amava-a tão desesperadamente, e ela retribuíra com tal traição! A dor que a descoberta lhe causara tirava ao nobre toda vontade de trabalhar, comer, dormir... Ele dissera a ela coisas terríveis, e sabia disso, mas como poderia agir de modo diferente? Ela traíra seu amor, sua confiança... Após alguns dias, já não desconfiava que as crianças não fossem suas (a semelhança dos pequenos com o pai era inegável), mas isso não mudava nada. Pois ambos também tinham muito da mãe, e ver neles os traços de Christine reavivava seu sofrimento, fazendo com que não conseguisse sequer brincar com os filhos. Assim, qualquer coisa que o distraísse de tais pensamentos era mais do que bem-vinda.

— Há uma senhora desejando lhe falar. Madame Annika Destler.

— E sobre o que seria? Até onde sei, ela é a diretora do novo colégio, não é?

— Sim, senhor, mas disse que só falará pessoalmente com Monsieur.

— Deve ser algo acerca de patrocínio ou coisa do tipo – resmungou o nobre, consigo mesmo – muito bem, mande-a entrar.

Monsieur Lascoux o fez e, momentos depois, entrou no escritório do Visconde uma das mais belas moças que já vira: devia ter cerca de vinte e cinco anos, com cabelos louros como trigo, presos sob um chapéu verde-escuro cuja renda caía graciosamente sobre o rosto de anjo. Ele se levantou para cumprimenta-la, e ficou surpreso ao ver que a moça era quase de sua altura! Raramente conhecera mulheres tão altas... Ou tão belas.

— Madame Destler – ele lhe beijou a mão com deferência: logo via-se que era uma mulher distinta, e como tal a trataria – é um prazer conhece-la. A que devo a agradável visita?

— Perdoe-me pela inesperada visita, Monsieur Le Vicomte, mas precisava lhe falar.

— Sobre a escola, eu imagino?

— Não – a moça hesitou por um instante, e então disse de um só fôlego – sobre sua esposa.

A menção a sua mulher fez o nobre se indispor de imediato e, soando mesmo um tanto ríspido, falar:

— O que acontece entre Christine e eu não é de sua conta, Madame. Agora, eu agradeceria se saísse.

Ele abriu a porta para Annika que, contudo, sentou-se na cadeira placidamente, inalterada:

— É de minha conta, sim, senhor, uma vez que a causa de seus ciúmes é exatamente meu esposo.

— O QUÊ? – Raoul já não entendia mais nada.

— Apenas explicando-lhe, Monsieur: o homem que perturbou sua vida, no passado, é hoje meu esposo. Sua mulher me ajudou, quando meu marido estava vivendo uma fase... Difícil. Agora, devo retribuir a ela. – bem, do modo que dissera, podia dar a entender que ela e Erik estavam juntos nessa época... Não era verdade, mas tampouco seria uma mentira. E ela precisaria de jogo de cintura para lidar com o Visconde – Estou ciente do que aconteceu entre o senhor e ela.

— Então sabe que sou um homem traído, e que não desejo falar mais a respeito disso. Agora, por favor, SAIA – ele segurou Annika pelo pulso, mas anos de prática com os Garotos do Beco faziam com que ela fosse rápida. Num gesto único, ela deu uma rasteira em Raoul, que caiu sentado na outra cadeira. Com o semblante plácido de quem nada fizera, ela prosseguiu – e já que se sentou tão cortesmente para me ouvir, então podemos conversar – ele ia se levantar, mas ela ergueu o indicador autoritariamente (mais um gesto ensinado por Madame Giry), o que, de algum modo, o intimidou e fez sentar – excelente. – muito bem... Para lidar com aquele teimoso, talvez tivesse de apelar. Hipnose... Hipnose parecia uma boa estratégia.

— Não importa o que venha me dizer, Madame, aquela meretriz que tomei por esposa não vai passar muito tempo sob meu teto.

— Oras, por favor! – disse a loira, como se tivesse ouvido um absurdo. Ela ficou em silêncio e fitou Raoul, avaliando seu semblante, seus olhos... Usou o mesmo olhar hipnótico que Erik lhe ensinara, e com ele manteve o silêncio e imobilidade do homem, que sentia-se fascinado, intimidado e intrigado com aquela mulher, sem sequer compreender de que modo ela podia ter tal controle sobre si – Vejo em seus olhos que está magoado. Milorde a ama, e a sensação de traição é insuportável. Não consegue olhar para ela sem se lembrar disso e, portanto, acha que o divórcio é uma alternativa. Não consegue olhar para seus filhos, porque vê sua esposa neles, e tal lembrança também lhe dói...

Raoul perdeu toda a orientação ante as palavras certeiras de Annika; como ela podia saber? Ele nunca fora um supersticioso, mas começava a achar que aquela mulher só poderia ser uma bruxa! Não, não uma bruxa... Uma ilusionista... Ela o estava dominando pela mente, com jogos e truques! Ele já fora enredado por um ilusionista, antes, e não seria outra vez!

— Parece certa disso. São apenas palavras, madame. – respondeu, tentando manter-se inabalado, não obstante as frases dela houvesse aberto um rombo em seu coração.

— Palavras que dizem a verdade. Eu vi a surpresa e a dor em seus olhos, quando as proferi. Sua expressão mostrou que eu estava certa. – ela se levantou e foi até Raoul, que parecia arrasado, sem tirar os olhos dos dele. Precisava manter contato visual, para que o controle perdurasse – está sofrendo, e vejo isso. Sua esposa também está. Ela sofre indizivelmente, não apenas pelos filhos, mas porque ama Monsieur mais do que à própria vida.

— Se me ama, por que, com mil demônios, guardou as cartas de paixão de outro homem?! – Ele mesmo quebrou o contato visual, levantando-se, mas atordoado demais pelas palavras dela para expulsá-la como ansiava por fazer. A dor em seu coração era forte, tão forte que quase o paralisava, pois ele amava Christine com tal força, que até mesmo seu ar estava sendo roubado ao tocar naquele assunto. A mesma sensação de quando lera as cartas que ela escondera, a sensação de estar morrendo, de ter uma parte de si mesmo arrancada do peito. – por favor, não continue este assunto... Não consigo suportá-lo. – de repente ele era um homem agonizante, incapaz de reagir, suas forças drenadas pela tristeza, pela decepção, e Annika era seu algoz, expondo a ferida aberta, torturando-o emocionalmente. Mas que raios! O que aquela bruxa fazia consigo, que ele sequer conseguia reagir e tirá-la dali, como devia?!

— Estou aqui para ajudar. Eu juro! – insistiu ela – Monsieur, eu sei o que está sentindo...

— NÃO SABE! – explodiu Raoul, fazendo a pianista levar um susto – o que sabe sobre ser traído, sobre amar uma pessoa mais do que tudo no mundo, e receber de volta uma pérfida traição? Sobre dar tudo de si mesmo, e descobrir que o coração de seu ser amado pertence a outro?

Annika não disse nada: ela sabia muito bem. Sabia porque vivera na pele, amando Erik enquanto ele rastejava por Cristine, e sabia através de Erik, que amara Christine desesperadamente, enquanto ela jamais amara outro que não Raoul, o Visconde que, agora, apoiara-se na parede, como se fosse desmaiar a qualquer momento. Ah, sim, ela o tirara completamente do próprio centro. Muito bem... Hora de mexer mais um pouco com as emoções dele.

— Ela jamais o traiu, Monsieur – disse a pianista, usando o tom de voz mais hipnótico e doce que conseguia. Raoul fechou os olhos, e uma lágrima escorreu por seu rosto, fazendo verdadeira pena à mulher.

— Como não me traiu? Como poderia não ter...

— O único modo pelo qual ela amou o Fantasma foi como um pai muito querido.

— Foi ela quem lhe disse isso?

— Não. Foi Madame Giry, a pessoa que conhece sua esposa melhor do que ela mesma. – explicou Annie. Raoul a encarou, seu peito ardendo de vontade de pôr aquela intrometida dali para fora, mas incapaz de reagir, como se a postura austera e digna que ela mantinha fosse um campo de proteção ao seu redor. Ele se sentia sufocar, sentia-se morrendo lentamente. Queria chorar, mas jamais choraria diante de alguém. Queria correr para Christine e pedir-lhe perdão, arrancar de algum modo todo e qualquer pensamento sobre o Fantasma da mente e do coração de sua mulher, mas sabia que não podia... E naquele desespero, o olhar da estranha mulher continuava sobre si, hipnótico, prendendo-o, subjugando-o. Foi a voz dela que veio retirá-lo de seu estupor – ela me contou de sua história, desde o começo. Sei tudo o que se passou, desde que conheceu Christine, ainda menina, na casa de seus pais. – ela tocou num ponto sensível. Memórias profundas eram “chaves” para a psique de uma pessoa, tanto para “trancar” emoções, quanto para aflorá-las – quando recuperou a echarpe dela, no mar.

Raoul não se sentia bem; culpa, mágoa, revolta, medo... Tudo isso se misturava dentro dele, esmagando-o internamente, apertando seu coração. Sentiu então a mão fria de Annika, que o levou pela mão até a cadeira e o sentou, com um leve sorriso. Fizera bem em aprender hipnose com Erik, pois agora tinha o Visconde completamente rendido; todas as emoções dele afloravam e estavam estampadas em seu rosto, como um livro a ser lido. E ela saberia utilizar-se disso:

— Você a ama. Ama-a tanto que se desespera; seu amor chega a doer, transborda pelos olhos. Ama-a de um modo inegável. Vai deixar que um desentendimento tolo acabe com isso, Raoul? Que um mal-entendido destrua a vida que construiu com a mulher que é metade de seu coração?

— Não... Não consigo mais confiar nela. – respondeu ele, lutando para fugir ao escrutínio da pianista que, porém, dobrava-o sem grandes dificuldades. Sempre fora uma manipuladora e, agora, tinha mais armas do que nunca, naquela conversa.

— O que ela fez foi errado, sim. Mas pense por outro lado: não estaria Christine poupando-o do dissabor de saber que o Fantasma ainda tentava tê-la? Devia, antes, ver as cartas como uma prova da fidelidade de sua mulher, pois cada pedido de perdão do Fantasma significava que ela não tornou a vê-lo. Ela se manteve fiel porque, mesmo sendo Erik como um pai para ela, o amor de sua esposa por você era maior do que qualquer culpa ou saudades que carregasse. Não acha injusto acusa-la de infidelidade, até mesmo de adultério, quando tudo o que ela fez foi guardar cartas de um homem que, para ela, foi um pai e amigo? Não guardaria o senhor as cartas da própria mãe, ainda que ela houvesse enlouquecido e o conteúdo de tais mensagens fosse de natureza desagradável?

No estado hipnótico em que se encontrava, o Visconde teria aceitado até mesmo que macacos podiam voar. E ante as palavras de Annika sua mente desmoronou. Ele se pôs a chorar convulsivamente, murmurando para si mesmo:

— Christine... Perdoe-me, Christine. Eu estava cego, os ciúmes me cegaram... Perdoe-me, meu amor, perdoe-me...

A mulher deixou-o chorar por algum tempo, pois o choro alivia a alma e lava as dores. Depois de longos minutos, decidiu que já trabalhara bastante os pensamentos e emoções do Visconde. Deixando o tom hipnótico de lado, pousou a mão no ombro dele e, com um lencinho, secou-lhe as lágrimas:

— Monsieur, já é hora de se recuperar. – Aquelas palavras estalaram na mente dele como faróis a chamar a atenção para o papel “ridículo” que fizera. De imediato ele se empertigou, mas tudo o que Annie dissera ficara em seu subconsciente.

— O que fez comigo, bruxa?

— Apenas o ajudei a descobrir o que estava em seu próprio coração, Monsieur. – respondeu ela, inocente. – Agora, caso lhe interesse saber, sua esposa está em minha escola. Pedi a uma monitora que cuidasse dela, pois a pobre estava há dias sem dormir ou comer direito.

— Aquela tola... – censurou Raoul; então olhou para Annika e, por mais irracional que isso fosse, sentiu que podia confiar nela. Soube que ela vira suas emoções mais profundas, então nada havia a esconder, mais. Mas que droga! Desde quando uma mulher o controlava daquele modo?! – O que faço, Madame Destler? Esconder aquelas cartas de mim, foi errado. Foi uma traição, mesmo que ela nada tivesse com o Fantasma.

— Ocultar-lhe algo assim talvez tenha sido errado. Guardar as cartas, talvez, tenha sido um erro. Mas é algo que precisam conversar, em vez de gritar um com o outro, e certamente as crianças não devem ser envolvidas nisso. Mas, como disse, sua esposa jamais teve o Fantasma como amante, especialmente nos últimos anos: isso eu posso garantir, pois ele estava ocupado demais em minha cama, para ir atrás dela. – Annika enfatizou a palavra “minha”, apenas para ver Raoul constrangido, o que bem funcionou. Ele ficou vermelho como uma cereja. Certo, hora de mais alguns joguinhos, apenas para consolidar o que já fizera...

— Veja bem, Monsieur... É natural que marido e esposa tenham ciúmes um do outro. Mas ciúmes exagerados, bem... Eu não tenho ciúmes de meu marido, pois sei que nenhuma outra mulher o completaria como eu o faço. Nem ele precisa ter ciúmes de mim, pois sabe que a recíproca é verdadeira. Para ter tantos ciúmes e dúvidas em relação a sua esposa... O senhor certamente não deve estar cumprindo todos os papéis de um marido. – cartada final, apenas para irritar e envergonhar o lorde – Talvez não seja muito bom na cama, e temeu que ela fosse procurar prazer em outros braços?

Raoul ficou vermelho, agora não apenas de vergonha, mas também de raiva, e bradou:

— FORA DAQUI! – Annika continuava com aquele ar inocente de quem nada fizera, e declarou:

— Foi apenas uma pergunta.

— Uma pergunta – disse o nobre, com desprezo – Madame mais fala como se fosse uma meretriz...

— Talvez. Mas olhe em meus olhos, e diga que não tenho razão. As únicas mulheres que têm motivos para trair seus esposos são as solitárias, as mal-tratadas ou aquelas cujos maridos não cumprem seu “dever”. A menos que milorde se encaixe em uma de tais categorias, nada há a temer. – Raoul parecia estar se segurando para não esbofetear Annika, mas o olhar dela era intimidador o bastante para lembra-lo de que um cavalheiro não erguia a mão contra uma mulher... Especialmente uma que, ainda há pouco, o derrubara sentado com gesto mínimos.

— Vá. Embora. – Rosnou, enfim.

— Eu irei, é claro. – disse a pianista – sua esposa estará sob meus cuidados, Monsieur. Assim que tiver as ideias no lugar, e a mente mais calma, procure por ela no Colégio l’Espoir. – Levantando-se, ela arrumou as saias dos vestido e, como se houvessem tido uma conversa normal, fez uma mesura – uma boa tarde, Monsieur. – e saiu, deixando atrás de si um perplexo Visconde, que ponderava se aquela mulher era real ou apenas uma alucinação de sua mente. Poderia existir uma mulher assim? Ele não tinha certeza do que acabara de acontecer, mas uma coisa estava certa em sua mente: ele amava Christine. Amava-a de todo o seu coração, e não suportaria viver sem ela. Assim, tomou logo sua decisão: iria em breve ao colégio. Precisavam conversar, sim, mas não aos gritos, nem com acusações. Apenas conversar. Esclarecer a situação, e encontrar um modo de resolvê-la. Pois não conseguiria ter uma vida sem aquela a quem tanto amava.

POV ERIK

Segui minha esposa até o escritório do maldito De Chagny. Enquanto ela entrou para falar com o garoto, ocultei-me nas sombras, sem ser visto, mas vendo e ouvindo tudo quanto se passava ali. No início, queria matar o nobre, por maltratar Christine, e quando ele segurou o pulso de Annika, poderia ter voado em seu garganta no mesmo instante, se ela não o houvesse derrubado tão facilmente. Ah, minha querida, sabe o orgulho que tenho de você?

Ouvi cada palavra de sua conversa, e fui sentindo-me cada vez mais culpado: se eu não houvesse sido um tolo, um idiota que pensava estar apaixonado pela mulher a quem criei como se fosse minha filha, ela não teria tido tais problemas. Não teria sofrido. Ah, Erik, seu imbecil! Como sempre, magoando pessoas por onde quer que passe! Seu perfeito idiota! Mas Annika... Eu a via hipnotizar Raoul, dobrando-o com os olhos e com a voz, fazendo dele o que bem queria, trazendo à tona as emoções que ele lutava para ocultar. Por um instante, quase temi minha mulher. Eu não percebera o quão persuasiva e manipuladora era se tornara, pelo menos não em toda a sua intensidade... Ela parecia uma rainha diante de seu servo, ele não era senão uma marionete cujos títeres ela manipulava habilmente, inserindo na mente do rapaz as ideias e pensamentos que desejava, fazendo-o seguir sua própria linha de raciocínio... Ah, Annika, minha doce, inteligente e maravilhosa Annika! Como eu te amo! Quão afortunado sou, em tê-la como mulher!

Se antes fora lá para castigar Raoul, agora permanecia apenas para ver até onde minha amada seguiria naquele jogo. Ela fez o Visconde chorar e implorar perdão a Christine, totalmente fora de si... Não serei hipócrita em dizer que não me deliciei com cada segundo de choro daquele covarde. Pois embora Christine tivesse deixado de existir em meus pensamentos, saber que Raoul a machucara, ainda que não fisicamente, trouxe de volta uma enorme raiva. Não, eu não a amava como mulher – nunca mais amaria outra mulher, além de Annika – mas aquela ainda era a menina que eu terminara de criar, que transformada de uma pedra bruta em diamante lapidado. Sim, eu descobri que ainda tinha afeto, carinho e até mesmo preocupação em relação a Christine. E quanto às crianças... Podia ser os filhos daquele bastardo, mas criança alguma merece ser ignorada ou maltratada pelos pais. Para mim, essa questão era muito pessoal. E ver que Annika o fazia sofrer e se culpar pelas próprias ações, que o dobrava sob o peso da própria culpa... Ah, minha amada pianista! Poderia haver alguém mais perfeita no mundo?

Minha sede de vingança arrefeceu: agora, eu queria apenas ver o que Annika faria. Vi quando ela secou as lágrimas de Raoul – isso me irritou. Não queria ver atos de compaixão em relação àquele bastardo, mas Annie é uma pessoa boa demais... Muito melhor do que eu jamais seria, e certamente dava àquele rato melhor tratamento do que ele merecia. Ainda assim, tive de me conter para não rir, quando ela o fez ruborizar com as inesperadas palavras rudes – rudes demais para a dama que ela aparentava ser. Senti-me ruborizar quando ela assegurou que Christine não poderia ter estado comigo, nos últimos anos, pois fora ela, Annika, quem estivera em minha cama. Ah, essa mulher sem freios na língua! Porém, quase gargalhei quando ela questionou a capacidade do Visconde de satisfazer uma mulher. Logo depois, Ela se levantou e vinha saindo, o que me fez esconder ainda mais nas sombras. A porta do escritório se fechou, tudo se aquietou e, poucos minutos depois, deixei meu esconderijo sem ser visto, indo até César e voltando então para o teatro, com um sorriso satisfeito. Agora, estava em dúvida: devia ou não ir ver Christine? Pois apesar de tudo, eu fora parcialmente culpado por sua situação atual... Talvez lhe devesse um pedido de desculpas.

Mudei de direção e fui para o colégio. Coloquei césar para dentro do pátio frontal, e segui à procura de minha mulher; como esperado, ela estava saindo da sala da diretoria, seguindo para os jardins internos. Ao me ver, correu em minha direção e me abraçou, deixando-me confuso.

— Obrigada por não interferir, meu amor – disse-me ela, causando grande surpresa. Então, sabia que eu estava lá? Meu olhar deve ter feito essa pergunta, pois ela sorriu e respondeu – é claro que eu sabia. Senti seu perfume, ouvi sua respiração. Sinto sua presença quando está por perto, Erik. Você é meu marido, afinal. Acha que eu não sabia estar sendo observada quando falava com Christine, ou com Raoul? Acha que não vi o cavalo negro, sempre uma esquina atrás de mim? – ela segurou a frente de minhas vestes e me puxou para um beijo, ao qual correspondi, apaixonado – não se esqueça: posso me vestir como dama, mas aprendi na escola das ruas. Isso nunca vai mudar.

— Nem eu quero que mude. – disse, acariciando seu rosto de marfim – Você é perfeita exatamente deste modo, Annie. Orgulho-me em ser seu marido.

A resposta de Annika foi outro beijo, antes que dissesse:

— Venha. Sei que quer falar com Christine e, apesar de ter ciúmes... – ela deu de ombros – sei que não são uma coisa racional.

— Ciúmes de mim, com Christine? – eu dei um sorriso condescendente – mas é mesmo uma tola! Como poderia ter ciúmes de qualquer outra mulher, se nenhuma chega sequer aos seus pés?

Ela riu e me puxou pela mão, levando-me até minha antiga discípula. Ela estava no terraço ajardinado, sentada ao Sol; tão pequena quanto eu me lembrava, franzina e delicada, parecendo uma bonequinha de porcelana que poderia se quebrar a um toque mais rude. Os cabelos estavam soltos, e ela tinha o mesmo ar inocente e pueril de seus longínquos dezesseis anos, embora o rosto estivesse mais maduro, e o semblante, menos vulnerável. A única diferença marcante, de fato, era a grande tristeza em seu olhar. Tristeza que mesclou-se a surpresa, quando virou-se e me viu.

— Anjo! – exclamou, com tom incerto na voz.

— Christine. – Olhei para Annie, que assentiu. Com três passos, alcancei minha antiga aluna e a envolvi num abraço, sentindo-a retribuir e, dessa vez, havia por ela apenas carinho e sentimento de proteção, como se abraçasse a jovem Meg, ou uma das meninas do colégio. Senti as lágrimas dela molharem minha camisa, mas não liguei – Perdoe-me, Christine. Perdoe-me por fazê-la sofrer. – tomei seu pequeno rosto em minhas mãos – Eu a perturbei demais, por longos anos, sem entender que você precisava continuar sua vida.

— Anjo, por que veio aqui? – perguntou ela, ainda abraçada a mim.

— Você me libertou quando eu mais precisava. Agora, devo retribuir o favor. Afinal, parte disso tudo é minha culpa.

Ela deu um sorriso fraco e anuiu, abraçando-me de novo. Olhei para minha esposa, que sorria de modo contemplativo, satisfeita, embora seus olhos brilhantes mostrassem que muitas coisas se passavam por sua mente. Finalmente soltei Christine de meu abraço, e lhe disse:

— Tudo há de se arranjar. Annika falou com seu esposo e, ou muito me engano, ou ele estará aqui em breve. – olhei para Annie – Mas agora eu devo ir. Não seria bom seu marido chegar e me ver aqui. Tampouco eu tenho qualquer desejo de revê-lo.

— Eu cuidarei dela, meu amor – disse ela, aproximando-se e pousando a mão em meu braço – peça a Meg e Gabi para me trazerem as crianças, por favor. – eu anuí e beijei os lábios rubros de minha esposa. Ah, sim, definitivamente, ela nunca precisaria ter ciúmes da soprano... Pois se Christine era um cristal raro, Annika, certamente, era um verdadeiro diamante.

Deixei-as sozinhas e, pegando César, fui até a Ópera. Falei com Meg, diverti um pouco meus filhos e, quando estes foram levados para a mãe, desapareci nos subterrâneos, voltando para a escola, de onde ficaria à escuta. Se Annika precisasse de ajuda – por pouco provável que isso fosse – ali eu estaria, por ela. E enquanto só o que ouvia eram as vozes das crianças, enquanto minha amada e Christine conversavam baixinho, estive tranquilo. Por longas e tranquilas horas apenas entretive-me com um livro, empoleirado no terraço mais alto, vendo as damas que passeavam pelos vários jardins mais abaixo, acompanhadas das crianças. Pelo menos por enquanto, tudo estava bem.