Quando os portões da escola se abriram, Annika pensou que iria enfartar de alegria e emoção! As crianças começaram a chegar, uma a uma, algumas acompanhadas de seus pais – a maioria da família do teatro – outras, vindas do orfanato, eram trazidas por seus tutores para o novo lar; os professores e professoras da escola, monitores – entre eles alguns dos Garotos do Beco – e funcionários ajudavam a alocar os pequenos, que tinham desde sete até doze, treze anos, todos com aqueles olhos arregalados de quem entra em um lugar pela primeira vez. Annie falava com cada um, sendo sempre gentil e delicada, o que logo encorajava os recém-chegados e lhes prometia boas experiências naquele lugar.

Foram inúmeras as perguntas e recomendações dos responsáveis pelos novos alunos, antes de rata-los aos cuidados da jovem proprietária do internato. Esta, por sua vez, tinha um enorme sorriso nos lábios, vendo cada criança chegar. Gabrielle, com a mala de seu violino nas costas, corria para lá e para cá, ajudando nas acomodações, antes que chegasse a hora de seu ensaio e tivesse de correr para o teatro. Os Garotos do Beco, os professores – fossem do teatro ou funcionários contratados – ajudavam a senhora Destler como podiam, e tudo parecia a mais feliz e perfeita loucura, para a dama que realizava um sonho. Finalmente, após uma exaustiva e deliciosa manhã, as crianças e adolescentes estavam alojados, e foram todos reunidos no grande auditório cuidadosamente projetado por Erik.

Com o auditório parcialmente lotado com os novos alunos – cerca de um terço das cadeiras ocupadas – Annika chamou os professores ao palco, e os apresentou um a um: Bianca Vicenzo, professora de história e filosofia – contratada por Annie -; Albert Weber, um médico aposentado que daria aulas de ciências; Aline la Claire, ex-cartógrafa que daria aulas de geografia e a cadeira opcional de astronomia; Alban Sourire, professor de francês; Frank Werrent, professor de inglês e alemão – os dois últimos membros do teatro. Isabelle Duchamp, professora de música – piano, canto e violino, sendo também do teatro, amiga de Annika – Meg Giry, professora de dança; Elisabeth Ludwig – uma das poucas universitárias de Paris – que lecionaria matemática e física nos graus mais avançados; Madame Elise De Goulle, que daria aulas de etiqueta e prendas domésticas – inclusive para os meninos, algo bastante inovador; Marcel Elland, professor de esgrima para meninos e meninas... E a própria Annika, professora substituta de piano e canto, e diretora do colégio.

Então, foi a vez dos professores não-regulares, que dariam aulas “esporadicamente”, mais como algo lúdico do que como disciplina: Jean, que daria oficinas de pintura – talento que descobrira trabalhando como cenógrafo; Tarim, que daria aulas de violão e marcenaria – coisas nas quais era muito bom; Sarah, a qual daria lições de dança cigana às meninas e rapazes interessados, e que brincou dizendo que os ensinaria a arremessar facas, quando a diretora não estivesse olhando – o que arrancou risos dos jovens; e Renard, que daria aulas de defesa pessoal aos interessados.

Parecia que as apresentações haviam terminado, quando, de repente, uma voz séria, parecendo vir de todos os lugares, falou:

— Com sua licença, diretora, mas eu gostaria de me apresentar. – e simplesmente aparecendo entre as fileiras do auditório, como que saído do nada, Erik surgiu: todo de negro, com capa, florete e máscara sobre o rosto, caminhou em passos silenciosos de gato até o palco, onde subiu. Annika lhe deu um breve sorriso, antes que ele se voltasse para os jovens – Muito bem, alunos, bem vindos ao colégio. Meu nome é Erik Destler, e ocasionalmente virei supervisionar as aulas. Minha função, neste colégio, é saber tudo o que nele se passa. Ajam corretamente, e rata-los-ei como meus próprios filhos. Sejam grosseiros com seus mestres, e talvez ninguém mais ouça falar do responsável pela grosseria. – os alunos ficaram sérios, entreolhando-se com pavor, quando Erik começou a rir – ora, senhores e senhoritas, menos seriedade, por favor! É apenas uma brincadeira! – ele tomou Annika pela mão – estão nas mãos da mais gentil e bondosa dama de Paris. Aqui não haverá castigos físicos, nem humilhações, como é tradição em outros locais. Só o que exigiremos será que demonstrem para conosco o mesmo respeito que teremos para com os senhores. – e então assumindo postura séria – ou posso acabar enforcando alguém.

Desta vez as crianças riram, mais aliviadas, e Annika estava à beira das lágrimas, comovida com o gesto de Erik, de se esforçar em aparecer publicamente, apenas para completar aquele dia já tão perfeito. Ele fitou outra vez as crianças e adolescentes, e então finalizou:

— Bem, era o que eu tinha a dizer. Desejo a todos que os dias aqui sejam os melhores que já tiveram. – e assim dizendo, girou a capa ao seu redor. Uma cortina de fogo e fumaça subiu no meio do palco, e no segundo seguinte ele já não estava lá, tendo desaparecido completamente, sem deixar rastros. Annika e Gabrielle riram baixinho, e a diretora tomou a palavra:

— Sendo hoje o primeiro dia, não haverá aulas. Fiquem à vontade para se ambientar pela escola, e fazer amizades. Devido a meu trabalho na ópera, não resido aqui em caráter permanente, mas as monitoras – várias moças na faixa dos vinte anos, algumas do teatro, outras contratadas – estarão à sua disposição para o que precisarem. O almoço será servido agora, assim que deixarem o anfiteatro, e à noite haverá uma pequena festa de recepção, com direito a doces e sem proibições quanto a correr e falar alto. Amanhã, porém, quero todos reunidos no refeitório às sete em ponto, quando falarei sobre as regras do colégio e distribuirei os horários de aulas de cada um. – Ela fez uma breve mesura – bem, senhores e senhoritas, o que estão esperando para irem almoçar? Ouço daqui os roncos dos estômagos de cada um! Andem! As monitoras mostrarão o caminho!

Ao sair do anfiteatro, as crianças pareciam eufóricas, e Annika não poderia se sentir melhor, em sua vida. Tudo dera certo. Tudo fora perfeito! Tudo era real.

Os professores foram se juntar aos alunos no refeitório, que continha várias mesas longas onde as crianças se sentaram, já começando a formar “grupinhos”. A mesa do corpo docente ficava num estrado elevado, de modo que pudessem ver o que acontecia com os pequenos, e logo a refeição fora servida. Mas faltava alguém ali... Annika.

Enquanto seus colegas tinha sua refeição no salão, com os novos alunos, a pianista descera aos subterrâneos da escola para encontrar seu amado. E tão alegre e esfuziante estava, que mal conseguia falar entre os beijos agradecidos com que lhe cobria os lábios.

— Eu não acredito que você se mostrou! – exclamou, plena de alegria – diante de todos e...

— Alguém precisa pôr ordem aqui, afinal – riu-se ele – viu como todos ficaram horrorizados quando eu falei que sumiria com qualquer aluno mal-educado? – e gargalhou. Annika não conseguia ficar séria, mas ralhou mesmo assim:

— Ah, seu monstro! Eles ficaram apavorados!

— A melhor parte, oras! – devolveu o Fantasma, puxando com força contra si tornando a beijá-la. Tudo o que Annika queria era abraça-lo e beijá-lo até o fim dos tempos, tamanha era sua alegria e a gratidão por ele ter se forçado a comparecer, mesmo detestando multidões. Ah, poderia haver alguma mulher mais feliz?

Alguns segundos depois, porém, ele a afastou e falou, malicioso:

— Se não pararmos por aqui, você não vai aparecer nem mesmo no jantar. – e com um sorrisinho malicioso – talvez nem para o desjejum, amanhã.

— Pervertido – acusou a mulher, ajeitando as saias, que se haviam amarrotado. Erik a abraçou pelas costas e sussurrou ao seu ouvido:

— Foi você quem me deixou assim. – em seguida ele retornou a sua atitude normal e, acariciando o rosto de sua mulher, beijou-lhe a fronte – agora vamos, querida. Não percamos esse dia tão especial.

— Vamos? Vai também? – perguntou ela, espantada.

— Bem, considerando que nossos filhos, Gabrielle, os Garotos do Beco e todo e qualquer amigo que temos estará na festa... A alternativa é ficar sozinho em casa e, depois que adotamos Alain, acho que me desacostumei ao silêncio.

Annie riu: de fato, depois de Alain, nunca mais haviam tido total silêncio em casa. Talvez devesse reconsiderar o apelido de “capetinha”.

*

Era noite. As crianças estavam em seus quartos, nos quais a pianista foi passando de um em um; cerca de metade das crianças havia voltado para casa, para dormir, mas o restante – ou por serem filhos do teatro, e terem apenas trocado de alojamento, ou por terem vindo de orfanatos – se acomodara nos quartos da escola. Grupinhos preexistentes dos que já se conheciam haviam adotado novos membros, após o primeiro dia, e as crianças se haviam entrosado bem, de um modo geral.

Depois de mandar dormir um grupo de meninas de doze anos, que falava animadamente – animadamente até demais, para a diretora – sobre Monsieur Destler e os rapazes do Casarão, a dama fechou a porta daquele quarto quase rindo. Entretanto, quando entrou no quarto seguinte, o último, viu que todas as sete meninas dali – com idades de seis a nove anos – estavam dormindo, à exceção de uma. Esta, miudinha, de cabelos castanho-claros, com sete anos de idade, estava sentada na cama, abraçada às próprias pernas. Se Annika bem se lembrava, a pequena se chamava Julie. Aproximando-se da menininha, que lhe lembrava muito Gabrielle, quando pequena, a mulher se sentou na cama e perguntou:

— Julie, meu amor, o que houve?

A pequena enxugou as lágrimas, e respondeu:

— não quero ir embora daqui.

— Embora, querida? Por que iria embora?

— Porque sempre me mandam embora. Meus pais me entregaram para o orfanato... As famílias que me adotaram me devolveram logo... E vocês também vão me mandar embora! Eu sou uma garota má!

Annika ficou sem reação: tudo o que podia fazer era abraçar a pequena e confortá-la. Enfim lhe ocorreu uma ideia:

— Olhe, eu não sei o que significa, para você, ser uma garota má. Mas sabe aqueles professores, os senhores Andrieux? - A menina anuiu, fungando – eles todos eram meninos muito maus. Maus mesmo. Mas nós nunca desistimos uns dos outros, porque somos uma família; e não se desiste da família.

— Mas eu não...

— Agora é, sim, de nossa família, querida. Seus colegas são seus irmãos, seus professores são seus tios e tias, padrinhos e madrinhas...

— Você é minha mãe? – perguntou a menina, deitando a cabeça no colo da pianista, que sentiu os olhos se encherem de lágrimas:

— Sim, Julie. Eu sou. – ela fez a pequena se deitar na cama, cobriu-a e beijou-lhe a testa – e eu prometo que não vou desistir de você. Porque já conheci uma garota má, antes, sabe? Ela fez coisas horríveis, embora não tenha tido muita escolha. Ainda assim, ela era má, mesmo.

— E o que aconteceu com ela?

— Cresceu. Encontrou alguém que mostrou a ela que não era tão má assim. Agora, ela está falando com você.

— Era você! – riu a pequena, baixinho.

— Sim, era eu. E como aqui, nessa escola, todos fomos crianças muito más, então você pode ter certeza: ninguém vai manda-la embora. Agora você está em casa.

Julie sorriu e deu um beijo no rosto de Annie, que beijou a testa da menina:

— Boa noite, Julie.

— Boa noite, mamãe. – sussurrou a pequena, e logo em seguida havia caído no sono. Annika sorriu e deixou o quarto, encontrando duas monitoras no corredor: Anne-Louise e Laís. Ambas eram do teatro, amigas e bem conhecidas da diretora, que lhes falou:

— Parece que Julie era uma criança problemática. Sejamos pacientes com ela, sim? Tem medo de ser mandada embora.

— Criança problemática... – começou Laís – depois daqueles garotos encapetados que você chama de irmãos, Annie, qualquer criança é um anjo! É claro que teremos paciência com ela.

— Já descontamos a raiva em Charles e Miguel – riu-se Anne-Louise – sabe que os pequenos estão bem, conosco.

— Tenho absoluta certeza. – a diretora esfregou a nuca, cansada – e agora, senhoritas, se me dão licença, vou para casa. Boa noite.

— Boa noite. – responderam as duas, em uníssono.

Erik esperava por sua amada com um coche, onde as três crianças dormiam profundamente após o dia agitado. Gabrielle e Renard foram do lado de dentro, com os pequenos, enquanto a pianista foi com seu esposo, na boleia. Pelo caminho, ia repassando em sua mente o rosto de cada criança, menino ou menina, que viera de orfanatos e reformatórios... Via a si mesma, via Erik, Renard, Gabi em cada uma daquelas crianças. Cada uma com um problema, com uma peculiaridade, com seus próprios medos e traumas... Mas agora, poderia fazer por aquelas crianças o que só fora feito por ela quando já adulta. Poderia dar a elas uma vida.

Gabrielle e Renard haviam concordado em dormir no teatro, hoje, de modo que césar foi guardado no estábulo da Ópera, e enquanto Gabi ia para seu quarto, Annika e Erik desceram para casa. Fora um dia longo, pleno e, acima de tudo, perfeito. Depois de colocarem as crianças na cama, o Fantasma e sua esposa banharam-se juntos, cheios de sorrisos e palavras carinhosas, antes de irem se deitar. E em suas mentes, ambos reviviam o próprio passado, agora como adultos, e conseguiam aos poucos perdoar a si mesmos por tudo o que haviam feito de errado. Pois se eles estavam ensinando aquelas crianças, o contrário também já começara a ocorrer.