Gabrielle entrou silenciosamente no casarão onde agora moravam os Garotos do Beco. Hum, era bom pensarem num nome melhor, já que não viviam mais num beco, e não eram mais um grupo de garotos, e sim de mulheres e homens praticamente adultos. Como um fantasma silencioso, andou pelos corredores vazios até o “escritório” de Renard: ali o rapaz tinha listas de colaboradores, armas de toda sorte, uma espécie de “livro-caixa” onde administrava os valores que eram conseguidos pelos crimes do grupo, entre outras coisas, todas ligadas a suas ações escusas no submundo de Paris. Ao ver a porta se abrir, o moço abriu um largo sorriso e correu em tomar nos braços sua amada, beijando-a carinhosamente.

— Oi, abelhinha – falou, quando seus lábios se separaram – senti sua falta nestes três dias.

— Eu também. Mas não pude vir antes. – respondeu ela, sentando-se no beiral da janela – Está sendo muito difícil para Annie...

— Como ela está?

— Com sete meses de gravidez, e odiando a si mesma. O menor esforço faz com que tenha hemorragias e dores fortes... Pode imaginar o quanto ela está adorando ficar numa cama.

— O que o médico diz?

— Que ela deve ficar em repouso absoluto, ou entrará em trabalho de parto prematuro. Erik não a deixa nem mesmo subir escadas... E você não tem ideia de quantos objetos ela jogou no Fantasma, no começo, por causa disso. – foi impossível não rir ao se lembrar de Annie jogando um sapato em Erik, por ele a impedir de subir escadas. – Mas agora se conformou. É duro, para alguém independente como ela, precisar que lhe ajudem em tudo.

— Vou visita-la, amanhã. – Renard não conseguia deixar de se preocupar com sua melhor amiga. Annika doente era algo que nunca antes passara por sua mente, mas que se tornara uma dura e cruel realidade. – como Erik está reagindo?

— Ele acha que eu não vejo, mas sei que está arrasado. Ele esconde bem, esse Fantasma: fez com as próprias mãos o berço e a cômoda para o bebê, canta para Annie, lê histórias para ela... Mas eu o vejo levantar à noite, e ir chorar no jardim. Está com medo, assim como todos nós... Talvez seja quem está com mais medo, mas se recusa a dividir isso com alguém.

— Alguém lá em cima realmente não gosta desse homem; passar uma vida sozinho e, quando encontra o amor, corre o risco de perder a mulher que ama.

— Não diga isso para ele, ou vai acabar com um laço do Punjab no pescoço. – alertou Gabrielle – e serei eu mesma a manipular o laço.

O casal trocou um sorriso tenso, antes que Gabrielle se sentasse no banco longo de madeira. Renard se sentou ao lado dela, acariciando a mão da menina – não tinha coragem de tocá-la de formas mais íntimas, como tocar-lhe a cintura ou beijar-lhe os ombros, por medo de assustá-la ou magoá-la – e, sentindo a tensão dela, declarou:

— Annika vai se sair bem, Gabi. Ela é durona. Sobreviveu a tantas coisas, que não vai ser uma gravidez complicada a derrubá-la. Ela e seu sobrinho, ou sobrinha, ficarão muito bem.

Com um suspiro, a adolescente escorregou para o colo de Renard, que ficou levemente apreensivo, e pediu a ele:

— Beije-me, raposo. Faça-me esquecer do medo por alguns momentos, por favor.

Afagando os cabelos dourados da moça, ele fez como ela pediu, e por longos minutos perderam-se um no outro, esquecidos do mundo lá fora. Haviam sido duros meses, esses últimos, sempre com o medo em relação ao estado de Annika, e poder fugir a este pensamento sombrio por alguns momentos era tudo o que queriam, mergulhados em sua paixão juvenil.

*

— Annika, minha menina! – saudou Madame Giry, abraçando a mulher no leito. Era engraçado como, mesmo acamada, a moça jamais deixava de se banhar e trocar logo pela manhã, estando sempre perfeitamente arrumada, como se fosse se levantar e retomar suas atividades a qualquer minuto.

— Madame Giry! – havia alegria na voz cansada da moça – como é bom revê-la! Estava com saudades!

— Eu sei; queria ter vindo antes, mas a última semana foi muito corrida, com as turmas do balé. – a senhora fitou atentamente a figura de sua protegida, cujo sorriso não fora prejudicado pela palidez e pela gravidez já muito adiantada. Amava aquela menina como o fazia a Meg, e a preocupação com a saúde dela era enorme – e como está o bebê?

— Está ótimo! Tem horas em que chuta tanto, que parece estar querendo vir logo para o mundo. – ela riu – Erik o acalma cantando para ele. Ou ela. Nunca o vi ser tão carinhoso... Ele está tão feliz, falando sempre sobre o futuro...

— Aquele bobalhão – comentou a viúva, com um sorriso – adora parecer mau e assustador, mas por sob o muro de espinhos que construiu, seu coração é o de uma criança assustada. – Antoinette pegou a cesta que trouxera consigo, e a colocou junto de Annika – todos no teatro estão com saudades de sua pianista. E suas amigas mandaram algumas coisinhas para o bebê.

— Ah, agradeça a todas por mim! – pediu a mulher, vendo uma por uma as roupinhas de bebê lindamente costuradas, algumas lisas, outras bordadas. – são lindas!

— Tínhamos certeza de que ia gostar. – sorriu a senhora. Porém, quando Annika se levantou, perguntou com surpresa – aonde está indo?!

— Guardar as roupinhas, é claro! Foi o doutor François quem disse que não posso ficar apenas na cama, e agradeço a ele por isso, ou Erik já teria me acorrentado aqui.

— Mas e as dores? E as hemorragias?

— Bom – começou a moça, indo em direção à porta com a cesta nas mãos – isso é um problema, é claro, mas não corro perigo se fizer tudo devagar. – Madame Giry percebeu que Annika estava pior do que parecia, mas se recusava a mostrar a própria fraqueza; garota orgulhosa!

A moça foi para o atual quarto das crianças: Erik e Gabrielle haviam feito questão de trocar de lugar o quarto no piso inferior e a sala de música, de modo que o quarto dos pequenos – Alain e o bebê que chegaria – ocupava o lugar da velha sala de música, e esta o quarto que, anos atrás, deveria ter pertencido a Christine. A moça puxou a cadeira de balanço e se sentou de frente para a cômoda, onde começou a guardar as roupas ganhas junto às que ela própria fizera – o “repouso absoluto” não lhe dava chance para muitas atividades além de costurar e bordar, de sorte que o enxoval do bebê já estava pronto.

— E onde está Alain? – perguntou Madame Giry, desejando ver seu “neto”.

— Foi com o pai para a Ópera. Gabi saiu para ir ver os Garotos do Beco, e o senhor Fantasma não quis deixar nosso filho comigo, por achar que ele me daria muito trabalho! – ela se levantou com as mãos na cintura - Se Erik continuar a me tratar como inválida, vou fazê-lo engolir o piano!

A viúva soltou uma gargalhada, realmente divertida ao imaginar a cena mencionada por Annie; aquela garota era incrível! Não perdia a força e a vontade, nem mesmo quando mal podia aguentar consigo mesma. Fazia a senhora desejar, um dia, ter metade da coragem dela!

— Ele está sendo um marido cuidadoso. Não seja tão severa com ele.

— Dominador, a senhora quer dizer. Ele sempre foi dominador, mas eu o mandava para o inferno e fazia as coisas ao meu modo. Mas agora, ele tem todas as desculpas do mundo para me dar ordens: faça isso, não faça aquilo, coma isto, beba mais água... Eu vou MATAR aquele homem, Madame! – bem, numa coisa Annika era igual a todas as mulheres: os hormônios alterados faziam de suas emoções uma verdadeira montanha-russa. Conhecendo o processo, uma vez que ela própria tivera emoções muito descontroladas na gravidez de Meg, Antoinette sorriu e abraçou a mulher loura, falando:

— É para o seu bem. Se ele continuar autoritário depois que o bebê nascer – ela sabia que sim, autoritarismo era uma característica intrínseca de Erik – você poderá fazê-lo engolir o piano. Agora vamos, menina: o modo como você está se curvando já me diz que está com dores.

As duas voltaram ao quarto, e Annika se deitou na cama com os olhos vermelhos, irritados por choro contido; com um suspiro, ela declarou:

— Estou me sentindo uma inútil. Não posso ensaiar, não posso cuidar de minha casa... E nem mesmo ficando deitada posso garantir que meu bebê ficará bem. Madame, acho que vou enlouquecer! Já li praticamente todos os livros da biblioteca, terminei o enxoval do bebê, decorei um monte de partituras...

— É claro que sim! Você não sabe o significado de descanso; está sempre às voltas com alguma coisa para fazer, senão, não seria você. – a mulher mais velha acariciou o rosto da mais nova – está fazendo algo muito difícil, menina: está mantendo seu bebê vivo. Isso é o mais importante.

— Tenho medo por ele, ou ela... Medo de que algo dê errado e...

— Não pense nisso. Annie, você já venceu sete meses e meio. Mais duas semanas, e seu bebê poderá nascer e ficar bem. Vocês dois vão ficar bem, querida.

— Eu só posso agradecer, Madame. – disse a futura mãe – Agradecer por toda a sua gentileza, por todo o apoio. Principalmente o apoio que tem dado a Erik; ele é quem mais preocupado está, mas não demonstra, e sabemos o quanto isso o destrói. A senhora é a única pessoa a quem ele permite se aproximar e ver a dor dele.

— Faço o que posso. Amo aquele garoto como se fosse meu irmão, a despeito de toda a loucura dele. Está, mesmo, sendo bastante difícil para Erik, mas ele é forte, assim como você. E, sendo filho de tal pai e mãe, seu bebê será outro vitorioso. Vai ver: todos iremos rir disso, daqui a umas poucas semanas.

— Sim. – a pianista sorriu, beijando a mão da mãe adotiva – vamos desobedecer às ordens de Erik? Estou morrendo de saudades do jardim!

— Ah, menina, você não tem jeito, mesmo! – riu a senhora, ajudando a moça a se levantar e, lentamente, descer as escadas. Mesmo sendo uma pequena transgressão, menos saudável do que sair do repouso era, para uma mulher jovem, ficar confinada ao próprio quarto. Tomar um pouco de sol e vento faria bem a ela, e melhoraria seu ânimo. E ânimo era algo difícil de manter, na situação da jovem senhora Destler. Apenas uma sonhadora poderia manter a alegria e, por sorte, sonhar em situações difíceis.

POV Annika

Aqueles últimos oito meses haviam sido bastante difíceis. Talvez pareça que eu não estivesse feliz com a gravidez, mas era justamente o contrário: amei aquele bebê assim que tomei conhecimento de sua existência, e isso tornava tudo ainda mais difícil, devido ao medo de não conseguir chegar ao fim da gestação. Muito maior do que meu medo de morrer – que irônico, alguém que já considerara o suicídio agora não querer a morte – era o medo de ver meu bebê morrer. Só alguém que já foi mãe poderia compreender...

Porém, sei que o mesmo não se passara com Erik. No começo da gravidez, tive por vezes a nítida sensação – ou melhor, a nítida certeza – de que ele chegara a odiar aquela criança, porque a gravidez punha minha vida em risco. Poderia dizer que compreendo, que entendo as motivações dele, mas... A verdade é que não consigo. Sei que Erik me ama acima de qualquer coisa, e que a ideia de me perder lhe é insuportável, mas nosso bebê não tem culpa disso. Ele não pediu para ser concebido, e não é ele quem está me deixando doente: minha vida passada está cobrando seu preço, e deixando meu bebê e eu doentes. Ele é tão vítima desta fraqueza quanto a mãe, oras! Mas meu marido, de fato, não cresceu emocionalmente. Sua psique ainda é a de uma criança, e demorou um pouco para eu o fazer compreender que nosso filho não tem culpa de nada. Quando o fez, porém, também caiu de amores pelo bebê, e hoje sei que teme tanto por mim quanto por ele – ou ela.

Mas não posso me queixar: durante os últimos meses, ele cuidou de mim como nem mesmo minha mãe o fazia. Se eu não impusesse limites, ele seria capaz de até mesmo me banhar e vestir! Com meu Erik, as coisas são assim: ou tudo, ou nada. Ele ama ou odeia, só começa um projeto se for para se lançar de cabeça nele... Tento me zangar e chama-lo à razão, mas adoro seu modo intenso de viver as coisas. É claro que, quando o assunto é cuidar de mim, preciso ameaça-lo de enfiar o piano por sua garganta... Ele não tem medida mesmo, e isso me faz rir muito!

Porém, nunca imaginei que Gabi entraria nos delírios psicóticos de meu marido, ajudando-o a praticamente me amarrar à cama! Se antes eu conseguia, pelo menos, manter a ordem na casa, preparar as refeições e descer à sala de música para ensaiar, agora havia dois guarda-costas, ou mesmo três, se considerasse Madame Tremain, para garantir que eu não faria absolutamente nada que pudesse ser considerado um “esforço”. E esforço, para esses três, é fazer qualquer coisa além de respirar. Sim, eu quase enlouqueci por muitas vezes, e acho que fui insuportável em alguns momentos, quando o estresse e o aborrecimento, somados à instabilidade de minha emoções, me fizeram explodir com aqueles que só queriam meu bem. E até nessas horas eles são cuidadosos e compreensivos. Chega a ser irritante. Queria brigar, ralhar com alguém, pôr para fora todos os sentimentos presos, mas ninguém estava disposto a participar de uma briga. Assim, tive de me conformar.

Quatro meses atrás, Gabrielle fez sua estreia como violinista da orquestra. É claro que eu não podia perder sua primeira performance e, pele primeira e única vez na gestação, Erik discutiu acaloradamente comigo. Mas até mesmo ele viu que eu não poderia perder a apresentação de minha abelhinha, e deixou-me ir. Foi um dia alegre e festivo, em que Gabi parecia reluzir em meio aos outros violinistas, tomado por um brilho e uma chama intensos demais para passarem despercebidos: o brilho da alegria, e a chama da paixão pela música. Meu marido tinha um sorriso orgulhoso enquanto a assistíamos, sorriso que foi logo substituído pelo puro ciúme quando Renard foi o primeiro a correr em abraçar Gabi, após a apresentação. Pobre Renard, que vive pisando em ovos para não dar ao Fantasma qualquer pretexto para o estrangular. Ah, Erik! Deixe de ser tolo, meu amado anjo! Gabrielle não é mais uma menininha, e Renard a faz feliz. Se ele faz esse drama todo por causa da cunhada, só posso imaginar como vai lidar com a adolescência de nosso filho, ou filha. Já ri sozinha muitas vezes, imaginando as cenas.

E não apenas a carreira de abelhinha progredira, como também as obras do conservatório. Agora faltava tão pouco, que era até difícil de acreditar em tal sucesso! Mas ele era bem real e, embora não pudesse mais sair para visitar o lugar, ou assistir às apresentações regulares de minha irmãzinha – tenho de reconhecer que até mesmo levantar, agora, me causava dores fortes – todos nós compartilhávamos a alegria que desta vitória advinha!

Finalmente, quando já beirava os nove meses de gravidez, o Dr. François tornou-se neuroticamente preocupado com minhas condições. Temendo que eu entrasse em trabalho de parto sem assistência médica, devido ao risco de meu útero se romper – era tão desagradável o modo como ele salientava essa hipótese... – ele insistiu em minha internação. Outra briga, da qual fui a única integrante, uma vez que Erik não discutiu: deixou-me gritar, extravasar e protestar à vontade, antes de me levar no colo até o coche e ordenar que este nos levasse ao hospital.

Assim, passei os últimos dias da gravidez sendo mimada por Gabrielle, Erik, Madame Giry, os Garotos do Beco e vários dos amigos que fiz no teatro. Não era agradável ficar acamada, mas eu sabia que a vida podia ser bem pior. Na verdade, eu não tinha direito algum de reclamar.