Annika e Christine estavam sentadas à sombra de uma frondosa árvore no pátio da escola, observando enquanto Alain brincava com os amigos pelo gramado, e as gêmeas cochilavam deitadas no colo da mãe, exaustas após correrem uma atrás da outra, com seus pezinhos ainda vacilantes, por todo o pátio. As mulheres, por sua vez, haviam conversado muito, até que Christine perguntou:

— Posso lhe fazer uma pergunta muito pessoal, Annie?

— Só poderei responder se souber a pergunta, Christine. – sorriu a outra, acariciando os cabelos das filhas.

— Como acabou se envolvendo com Erik?

Annika hesitou ante aquela pergunta: como contar sobre seu passado, sobre quem e o que ela fora? Franca, falou:

— Meu passado é algo que pode chocar um pouco, Christine. Algo que poderia vetar qualquer amizade que esteja surgindo entre nós.

— Vetar? – perguntou a morena – O que estou vendo diante de mim é uma mulher digna, mãe de três filhos, dona de uma escola com uma bela missão. Uma mulher carinhosa com as crianças das quais cuida, e uma pianista que, pelo que se diz nos jornais, chegou a receber convites para tocar em outras companhias da Europa. Mas se lhe for doloroso falar, é claro que compreenderei.

— Não. – suspirou a outra – já ultrapassei o ponto em que falar me causava sofrimento. – e então deu de ombros – sejamos sucintas, e digamos apenas que perdi minha mãe aos doze anos. Tinha uma irmãzinha de quatro anos recém-completados e... O mundo é duro para duas meninas órfãs. Fomos vendidas.

— A uma... Casa de prazeres? – perguntou Christine, que sabia bem o que acontecia a órfãs sem proteção, naqueles tempos.

— Se prefere chamar assim. – Annika sorriu amargamente: as pessoas “da sociedade” criavam nomes suaves para não se confrontarem com os horrores eu produzia. Bem, se o nome fazia as damas se sentirem menos desconfortáveis com os lugares que os maridos frequentavam, o que poderia ela fazer? – Comecei a roubar para tentar comprar nossa liberdade e, um dia, roubei o homem errado.

— Erik...

— Ele ficou obcecado por vingança. Rastreou-me, e comprou a mim e a Gabrielle. Passamos a ser criadas dele. – ela fitou a soprano – foi quando passei a lhe levar as cartas, em vez dele. – então os olhos azuis voltaram a fitar o céu – no começo, ele queria se vingar de mim. E eu o odiava: teria cravado uma faca em seu peito, se ele não houvesse sido tão bom para com Gabi. E com o tempo... – ela riu sozinha, lembrando-se de todas as brigas e beijos roubados – Ele adorava cavar buracos em meu peito, para plantar flores, depois. Acho que em algum momento de nossas brigas, percebemos que era mais do que raiva. – e rindo – acho que foi quando joguei o atiçador em sua cabeça! Confundi os pensamentos do homem, que já não era muito são!

— O quê? Você jogou um atiçador nele? – riu-se Christine, admirada da ousadia, força e coragem da outra.

— E muitas outras coisas. Vasos, castiçais... Arranquei sangue uma ou duas vezes, e ele retribuiu. E quanto mais eu me apaixonava, mais o odiava por me fazer amá-lo. Faz algum sentido?

— Acho que sim. – a soprano ouvia a história, vendo um lado de seu mestre que jamais imaginara existir: o homem, o ser humano, com falhas e qualidades. Nem anjo, nem demônio... Apenas um homem.

— No final, foi a música que nos aproximou. Meu gosto pelo piano, e alguma ajuda de Gabrielle, fizeram com que estabelecêssemos algumas tréguas, e... Bem, fomos ficando mais e mais próximos. Mesmo que possa ser aterrorizante quando está zangado, eu vi o lado bom de meu esposo: o modo como tinha paciência com minha irmã, suas pequenas gentilezas, as tentativas de ser um cavalheiro, mesmo quando eu o estava tentando matar. – ela parou pensativa – Mas foram os piores momentos dele que me fizeram me apaixonar. Eu vi sua dor, sua tristeza, o modo como toda a crueldade e frieza eram só uma máscara para esconder uma alma gentil, que sofrera demais.

Christine calou, envergonhada: ela não fora capaz de ver este lado de Erik. Para ela, ele fora primeiro o Anjo da Música, a figura que substituiu seu falecido pai; depois, fora o Fantasma que a perseguia e aterrorizava, o demônio que a queria levar para seu submundo... E finalmente fora a culpa que carregara por anos, porque jamais deixara de amá-lo como uma filha ama seu pai. Ele fora parte dela e, ainda assim, ela nunca o compreendera como Annika conseguiu.

— Tivemos bons momentos, juntos. Então adotei Alain, e a ideia de nos tornarmos uma família ficou mais forte. Acabamos por nos casar e, agora, temos estes três diabinhos para nos enlouquecer – brincou ela, quando Alain passou correndo perto da mãe.

— Você é uma mulher incrível, Annika. Não só por ter sobrevivido ao que eu sei jamais poder imaginar sobre seus tormentos, ainda na infância, mas... Sua capacidade de compreender Erik... De amá-lo, mesmo com seus defeitos...

— Erik e eu somos muito parecidos, Christine. Não é difícil amar uma pessoa, quando você vê a si mesma refletida nela. – ela segurou a mão da jovem – como você fez com Raoul.

A soprano deu um sorriso triste, pensando no marido a quem tanto amava, orando para que ele a perdoasse e viesse, ao menos, conversar consigo. Seus pensamentos foram interrompidos por Annika:

— E você, Christine? Sei tudo sobre você e Raoul, mas... E quanto a Erik? Você acreditava, mesmo, que era um anjo quem lhe ensinava?

A soprano sorriu: as lembranças do Anjo da Música eram as mais doces que possuía, de sua vida no teatro.

— Existe uma lenda sueca, que meu pai me contava, sobre o Anjo da Música. Eu era criança, e acreditava piamente nela. À medida que fui crescendo, bem... Lá no fundo, eu sabia que era um homem quem me ensinava. Mas era algo que eu não queria admitir para mim mesma, porque...

— Porque quebraria a magia que envolvia a relação de vocês.

— Isso. Assumir que ele era um homem... Posso dizer apenas que era muito mais mágico, muito mais fácil, fingir que eu ainda acreditava no Anjo da Música. Pois, para mim, ele realmente fui este Anjo. Fez de mim o que sou, lapidou minha voz e meu dom... Foi meu mestre, meu pai, meu amigo. Meu Anjo. Então, mesmo sendo um homem de carne e osso, ele ainda correspondia a tudo o que a lenda significava. Entende?

— Sim. – Annika entendia, perfeitamente: quantas vezes não mentira para si mesma e para Gabi, criando histórias fantásticas nas quais eram princesas perdidas, ou fadas que tinham sido enviadas à terra para aprender uma lição, e que tudo aquilo se acabaria quando houvessem cumprido seu trabalho? Cada história mais surreal que a outra e, ainda assim, ela mentia para si mesma, na esperança de acreditar. E muitas vezes, chegara a crer, mesmo que por alguns poucos minutos. Para Christine, uma menina órfã a viver nos dormitórios da Ópera, a ideia de ter o Anjo a protege-la fora uma doce fantasia, que ela não quisera interromper. Claro, ela nunca poderia imaginar que este Anjo era um homem ciumento, possessivo, capaz de matar friamente e, finalmente, doentiamente apaixonado por ela. Ah, as peças que a vida pregava!

— Foi por isso que guardei as cartas. – concluiu a jovem – porque ele foi, e sempre vai ser, uma parte de mim. Admito que sinto falta dele, como o mentor que sempre tinha a palavra certa, como o guardião que me fazia sentir feliz e protegida... Foi tolice, eu sei... – ela meneou a cabeça – Como acabamos numa conversa tão pessoal, mesmo? – perguntou a soprano, recostando-se ao tronco da árvore.

— Falando sobre maridos e como eles, muitas vezes, merecem que os ponhamos de castigo como se fossem crianças mimadas. – brincou Annika – e por falar em maridos... Acho que você conhece aquele que vem lá – e apontou um dos corredores abertos, pelo qual vinha caminhando um distinto homem de cabelos dourados e compridos até os ombros, atados num rabo de cavalo. Os olhos cinzentos estavam pousados em Christine, cheios de emoções, e sua postura era de ansiedade, expectativa.

Surpresa e feliz, mas receosa das palavras que trocariam, a viscondessa se levantou; seu esposo continuava vindo em sua direção, e ela permanece onde estava: quando menos de um passo os separava, abriu a boca para falar, mas sua voz foi abafada pelo beijo de Raoul, que a segurou pela cintura com uma das mãos, pousando a outra no rosto de sua mulher. Beijou-a profunda e apaixonadamente, fazendo-a relaxar em seus braços, entregando-se. Quando enfim se separaram, fitou-a nos olhos e perguntou:

— Christine, consegue me perdoar?

A soprano não sabia o que dizer, dividida que estava entre a surpresa, a extrema alegria, o ressentimento pelo modo como Raoul a tratara. Porém, maior do que tudo era sua felicidade, que a fez lançar os braços ao redor dos ombros de seu marido e estreitar-se contra ele, desfrutando do abraço tão querido e desejado, que ela temera nunca mais sentir. Ah, como poderia, algum dia, agradecer a Annika?!

De longe, a pianista observava com um sorriso satisfeito no rosto; discreta, olhou para cima, para onde seu marido observava, também silencioso, e arqueou as sobrancelhas de modo triunfante. Ele lhe lançou um sorriso e deu de ombros, como se dissesse “o que faço com você?”. Mas ambos estavam felizes por Christine.

— Perdoe-me Christine. Por favor, perdoe-me – pediu Raoul, segurando as mãos dela contra seu peito, como se temesse que ela fosse lhe voltar as costas e fugir – eu fui um tolo, patético em meus ciúmes exagerados.

De seu lugar, Annika viu Erik formar com os lábios as palavras “patético você sempre foi”, e riu baixinho enquanto os olhos da Viscondessa enchiam-se de lágrimas:

— Você confia em mim, Raoul? Acredita agora que eu jamais o traí?

— Sim, sim, meu amor! Nem sei como pude pensar o contrário! – ele a abraçou com força e a beijou novamente... Hm, se aquilo continuasse, Annika ia pedir a ambos que se retirassem do pátio, pois havia crianças por perto, oras! Mas estava tão empolgada com o sucesso de sua intervenção, que não estragaria o momento do casal... – Eu sinto muito pelo que disse, e mais ainda pelo que fiz.

— Eu também não deveria ter escondido... Perdoe-me por não ter lhe contado. Seus ciúmes foram exagerados, mas também eu não deveria ter-lhe ocultado o que acontecia.

O Visconde deu um meio-sorriso e abraçou sua esposa outra vez, pousando o queixo no topo de sua cabeça. A sensação que o tomava, e da qual a soprano compartilhava, era a de estar completo outra vez. Como se, separados, fossem apenas um quadro pintado pela metade; apenas juntos aquele quadro tomava forma e vida. Apenas juntos encontravam sentido para suas vidas. Pois o amor é a energia que torna as cores mais vibrantes, os sons, mais melodiosos, e as paixões, mais intensas! Que mundo desbotado e silencioso é aquele onde não há amor... Como é triste e insosso tal mundo, do qual haviam provado um breve momento, e que não queriam experimentar, nunca mais!

Depois de algum tempo, Annie tomou a liberdade de se aproximar; após deixar sua capa na grama, com as filhas ainda cochilando sobre o tecido macio, foi até os De Chagny:

— Tenho sua permissão, senhora e senhor De Chagny?

Ambos a fitaram ao ouvi-la – Christine com gratidão e alegria no olhar, enquanto Raoul tinha certo desconcerto misturado à felicidade – e responderam:

— É claro, Madame Destler. – E Christine completou – para uma amiga como você, nossos nomes terão de bastar. Raoul e Christine, apenas.

— Fico feliz que me encare como uma amiga... Christine. – Disse Annika – Então devo pedir que me tratem por Annika. Ou Annie, se o preferirem. – ela deu um de seus sorrisos misteriosos – embora eu creia que Monsieur Le Vicomte tenha algumas objeções a ver-me como amiga.

— Confesso que ainda estou confuso e desconfiado em relação a sua pessoa... Annika. Mas o que quer que tenha feito, trouxe-me de volta à lucidez, e mostrou-me a tolice que estava prestes a cometer. Então... Sim, creio que possamos desenvolver algo como amizade, conquanto não repita seus ardilosos truques comigo.

— Não o farei... Raoul... A menos que volte a agir como um tolo inconsequente. – havia tanto atrevimento no olhar daquela mulher que, mesmo se vestindo como uma dama, parecia antes uma menina travessa!

— Truques? – perguntou Christine – do que ele está falando, Annika?

— Deixarei que seu esposo lhe conte, depois. – riu-se a mulher, ainda com aquele ar enigmático e divertido – Porém, antes, creio que este assunto deva ser definitivamente encerrado.

— Creio que ele já esteja concluído, Annika. – disse o Visconde, mas a pianista retrucou:

— Não até que a causa do problema deixe definitivamente de ser motivo para crises futuras. – Sentindo a presença próxima, ela chamou – Erik, trate de se mostrar! Como causador de tudo isso, o mínimo que deve fazer é sair à luz do Sol. Garanto que não vai mata-lo.

Uma sombra se destacou das demais, no corredor aberto, delineando a figura de um homem de máscara e capa, vestido de negro e púrpura escuro, os cabelos pretos impecavelmente penteados para trás. Um homem que, por um momento, fez Raoul ter ensejos de pegar sua espada – que não estava em seu cinto – e trouxe um breve estremecimento a Christine. Annika, porém, segurou de modo afetuoso e confiante a mão do mascarado, beijando castamente seus lábios, antes de se votar para o Visconde e sua esposa, e dizer:

— Creio que conheceram meu marido por outro nome. Agora, eu o apresento a ambos como Erik Destler, meu esposo e diretor artístico da Ópera Garnier.