— Annika, vou sair! – avisou Gabrielle num grito, enrolando-se em sua echarpe ao descer as escadas.

— Hey, hey! – interrompeu a irmã mais velha, assomando no topo da escadaria – aonde vai com tanta pressa?

— vou sair com meus amigos da orquestra – explicou a moça – sarau no clube de música.

— Oras, está mais sociável do que eu! – riu-se Annie – está armada? - em resposta, a menina ergueu o punho da manga comprida para revelar o cabo de seu punhal; anuindo em aprovação, a pianista concluiu – boa diversão, então, querida. Vai de coche?

— Friedrich está à minha espera, na porta. – e antes que a outra dissesse qualquer coisa – se disser alguma coisa sobre reputação, Annika Destler...

— Nem passaria por minha cabeça – não, decididamente Annika nem sonharia em restringir os atos da irmã por convenção social – mas se ele bancar o engraçadinho...

— Uso minha faca para transformá-lo num cantor castratti.— apesar do sorriso, a menor falava sério – não me espere acordada, Annie! – e saiu para a rua, fechando a porta. A pianista sorriu, suspirando de prazer ao sentir Erik abraça-la pelas costas.

— Onde ela arranja tanta energia? Uma festa depois de termos passado o dia visitando a ilha dos museus?

— Juventude, querido. – respondeu a mulher, rindo – já faz tanto tempo, que se esqueceu?

— Está dizendo que sou velho? – o Fantasma prendeu Annika entre o peitoril e seu próprio corpo, a expressão transformada numa máscara séria e quase ameaçadora – é o que quer dizer, senhora Destler?

— Foi-se o tempo em que eu tinha medo de você, Sr. Destler – sorriu a mulher, segurando seu esposo pela nuca e beijando-o. Ele não conseguiu manter-se sério e sorriu – olhe só, ele sabe sorrir!

— Quando foi que perdi de tal modo todo e qualquer respeito seu por minha raiva?

— Acredite, era muito mais fácil lidar com seus rompantes de fúria do que com as três pestes dormindo no quarto, quando se entusiasmam com algo! – a moça o empurrou levemente e escapou à restrição de movimentos – graças aos céus tenho você, Gabi e a ama, ou já teria enlouquecido. Perto disso, você espera que eu ainda respeite sua “raiva”?

— Até eu quero me esconder quando eles se entusiasmam – riu o Fantasma, e Annie o fitou com amor e fascínio: era o mesmo homem ao qual roubara no beco, naquele dia longínquo? O homem amargurado, angustiado e cheio de raiva que entrara em sua vida arrombando a porta da frente, e roubara seu coração pulando pela janela? Pois embora ambos tivessem o mesmo rosto, a alegria no rosto de quem tinha à sua frente jamais poderia se esboçar nos olhos mortos daquele que um dia fora seu maior rival. O olhar dela não passou despercebido ao músico – o que foi?

— Admirando meu esposo. – ela – e vendo o quanto ele mudou para melhor. – sua recompensa foi um abraço caloroso, não do tipo apaixonado, mas daqueles que lhe inspiravam confiança e amor suficientes para toda uma vida. O tipo de abraço do qual nunca mais queria sair.

— Não quer se arrumar, meu amor? – perguntou ele, surpreendendo a dama – pedi a Frau Ines Beck para ficar com os pequenos, hoje, para que pudéssemos sair juntos.

— Sair juntos? Erik, está com febre? – ele riu e seguro o rosto da esposa, cada dia mais apaixonado:

— Estou doente, sim. Doentiamente apaixonado pela minha mulher, e pretendo passar algum tempo a sós com ela.

Ela sorriu e o beijou com profundo amor, deixando-se ter aquela maravilhosa sensação de ser amada e estar protegida nos braços do Fantasma. Fez-lhe uma carícia no lado descoberto do rosto e sussurrou:

— Vamos nos arrumar.

Não se demoraram no banho; Erik vestiu uma camisa azul-escura, colete ciano, calças e casaco negro com bordados dourados e as luvas negras que destacavam a beleza das mãos grandes e elegantes. Annika deu um suspiro discreto e apaixonado ao vê-lo pronto, ela mesma envergando um vestido lavanda de gola alta e mangas longas, sobressaia drapeada e corselet lilás-escuros. Luvas lilases de renda e uma capa roxa-escura com pele branca no capuz completavam seu visual, com brincos e colar combinando com as vestes e os cabelos deixados soltos em ondas que iam até abaixo da cintura.

Antes de sair, passaram no quarto das crianças, onde Frau Beck acabara de pôr as gêmeas a dormir. Agradeceram a gentileza da senhora, dera um beijo suave nos filhos adormecidos e deixaram a casa. Alugaram cavalos, em vez de coche, de modo que pudessem apreciar a neve que caía suavemente, minúsculos flocos a espiralar em sua queda, carregados pela brisa quase imperceptível como se bailassem. Acumulavam-se aos poucos nas dobras das vestes do casal, como fios de prata a adornar suas vestimentas enquanto cavalgavam pela cidade.

Sua meta era o Portão de Berlim, mas não por alguma razão específica; apenas passeavam por prazer, conversando, cantando baixinho um para o outro e desfrutando da magia do inverno. Paravam ocasionalmente para observar as praças, onde muitos casais se divertiam, e a moça chegou a convencer seu amado a patinar no gelo consigo!

Depois de se cansarem dos patins, foram jantar no restaurante adjacente ao lago congelado; escolheram uma mesa na varanda, mesmo que estivesse frio, e pediram Schnitzel - carne de porco à milanesa - acompanhada de batatas ao molho de vinho e rodelas de limão. Como bebida, uma cerveja de fermentação leve – Pilsen. Há muito tempo não jantavam a sós, e poderem falar sobre absolutamente qualquer coisa, sem se preocupar com mais nada, nem ninguém, era uma dádiva preciosa.

— Há quanto tempo não fazíamos isso? – perguntou Erik, dando um pedaço da carne levemente tostada na boca de sua mulher, que sorriu e saboreou o alimento antes de engolir e responder:

— mais de dois anos, com certeza.

— Então, Madame Giry tem razão: eu sou um grande tolo. Tolo por perder momentos como este com a mulher mais perfeita que já existiu.

— Galanteador – sorriu a esposa, segurando a mão de seu amado contra seu rosto – mas não assuma toda a culpa: eu também tenho me ocupado muito com as crianças, a escola, a carreira... Acabamos ficando quase sem tempo para estarmos só nos dois. Andei pensando nisso...

— Já que mencionou o caso, Alain e as meninas já estão grandes o bastante para não precisarem ficar conosco o tempo todo. Mesmo porque, muitas vezes deve ser um aborrecimento, para eles, quando estamos trabalhando ou ocupados em conversas.

— Sua solução é a mesma que a minha?

— Uma preceptora? – ele sorriu ao ver Annika concordar:

— Mas não uma preceptora qualquer. Quero alguém capaz de dar a eles o tipo de ensino que devem ter. Não uma ama... Alguém que os trate com carinho, mas também lhe forneça um bom embasamento cultural, para que a velocidade de seu aprendizado não seja prejudicada.

— Tem alguém em mente?

— Irei falar com as damas do teatro, pedir indicações e avalia-las. – prometeu a moça – mas, esta noite, não falemos mais do trabalho, das crianças ou de qualquer outra coisa: hoje somos só você e eu, senhor Fantasma.

— Devo ficar com medo, senhora Destler?

Ela deu um sorriso entre maroto e malicioso ao dar um gole em sua cerveja; por sob a mesa, acariciou carinhosamente a perna de seu amado, que suspirou e lhe deu um discreto selinho cheio de palavras que levaria tempo demais se tentasse apenas falar.

— Amo você, Erik. – sussurrou ela.

— Também amo você, Annika. – a refeição prosseguiu entre conversas acerca de história, política mundial (especialmente as tensas relações entre França e Alemanha sobre a pretensão de ambas à região de Alsace-Lorraine, e as possíveis consequências), artes... Fluíam de um assunto a outro, desfrutando simplesmente do fato de terem alguém que os compreendia, que amava a cultura, que se comprazia em discutir sobre assuntos mil com a naturalidade de quem comenta os fatos do dia.

Encerraram o jantar com um delicioso Apfel Strudel com bastante canela, acompanhado por vinho quente com especiarias. Erik arqueou os olhos para sua esposa e perguntou:

— Não vai ter uma ressaca, amanhã?

— Torço para que não – riu-se ela – mas, se tiver, amanhã é domingo. O máximo que pode acontecer é eu implorar para você deixar as crianças longe da sala de música. – ela respirou profundamente o ar da noite, deixando-se inebriar pelo frio e pelos múltiplos aromas – sente isso, Erik?

— O que, meu amor?

— Este... Este ar. – ela olhava ao redor com olhar vivo e cheio de curiosidade, como o de uma criança – nosso mundo entra em novos tempos, tantas coisas são descobertas a cada dia... As distâncias se encurtam com os navios, o telégrafo... A eletricidade muda o modo como quase tudo pode ser feito... – ela encarou a iluminação elétrica recém-instalada das ruas – é mágico! É magnífico! Como se o mundo a cada momento estivesse incomensuravelmente diferente do que conhecemos...

— Um mundo novo que começa a cada segundo, cheio de infinitas possibilidades, onde o impossível se torna mais e mais uma palavra inadequada. – sorriu o Anjo, fascinado com o modo que sua esposa tinha de ver o mundo exatamente como ele – incertezas, potenciais... Perguntas infinitas sobre o que existirá amanhã, e que papel teremos nesse mundo.

— Sei que pode parecer exagero, mas... Olhar para as transformações, para as novas criações... Sinto como se o céu fosse o limite. – ela olhou para cima – ou talvez, nem mesmo ele.

— Os astrônomos falam de outros sóis distantes, a distâncias impensáveis – disse o músico – tão longe, que sua luz leva milhares de anos para nos alcançar. Quando olhamos para elas, olhamos para o passado... E se algumas forem sóis como o nosso, então...

— Talvez, em algum lugar muito longe, exista outro casal, sentado sob as estrelas, olhando na direção de nosso sol e imaginando o que pode existir lá fora – sorriu Annika, antes de conter a risada – ah, você é um homem maravilhoso, Erik! Um sonhador, visionário... Se falasse disso com qualquer outro, seria internada, mas você...

— Mentes pequenas rejeitam probabilidades impensadas, ou assustadoras. – ele também fitou o céu, finalmente livre das nuvens que por horas haviam despejado a fina cortina de neve – mas sonhar... Cada coisa inventada já foi um sonho. Tudo o que vemos, tocamos e usamos em nossos dias foi um sonho na mente de um “louco”; então, talvez os insanos não sejam mais do que mentes capazes de enxergar o mundo não como ele é, mas como poderia ser.

Os dois riram baixinho, frontes unidas, compartilhando daquela deliciosa sensação de poderem divagar e inventar juntos, suas mentes acompanhando o raciocínio uma da outra, sem se prender a dogmas ou regras, nem mesmo ao que seria ou não possível ou científico. Apenas imaginar, sonhar, pensar...

Pagaram a conta e retomaram o passeio: iam voltar para casa, mas um grupo de músicos tocando num coreto chamou sua atenção. Annie sorriu para seu esposo, que deu de ombros e desmontou com ela. Imaginou que fossem apenas se aproximar para ouvir, mas a pianista o puxou para o espaço coberto e, com uma mesura elegante, perguntou:

— Concede-me a honra, Monsieur?

Erik ficou visivelmente nervoso, um pouco pálido e trêmulo ao responder:

— Annie, eu não danço em público. Você sabe disso...

— Então, não dance para um público – ela pousou as mãos no peito dele – mergulhe em meus olhos, meu Anjo: mergulhe em meu amor por você. Deixe que sejamos apenas nós dois e a música. – ela passou o braço dele por sua cintura, e o toque dela o tranquilizou e fortaleceu. Suas mãos se firmaram quando a enlaçou de modo mais próximo, os olhos dourados capturando os da dama, a mão esquerda segurando a direita da pianista. Seus pés se moveram em sincronia, e de repente todo o mundo desapareceu: só existia o azul dos olhos de Annika, o perfume dela, a calidez do corpo entre seus braços e a música que conduzia a ambos. Era mágico, perfeito... Um momento do qual um segundo faria valer à pena uma vida inteira.

— Annie – perguntou o Fantasma, parando enfim de dançar e estreitando-a num abraço que os deixou com os rostos a centímetros um do outro, fogo e gelo se encontrando em seus olhares – você é feliz, comigo?

— Feliz? – perguntou ela, acariciando-o – feliz não é o termo certo. Não chega sequer perto. Você é... – sua voz se embargou – nunca achei que diria isso, mas não saberia viver sem você, Erik. Você não “tem” parte de meu coração... Você “é” parte de meu coração. – ela o beijou, alheia ao pequeno escândalo que isso causou – felicidade é apenas um suave eufemismo, comparado a isto.

Ele beijou com respeito e carinho as mãos de sua parceira e, uma vez que os músicos se dispersavam, sugeriu:

— Vamos para casa, amor. Já é tarde.

Voltar para casa não encerrou as maravilhas da noite: reviveram na sala de música muitos de seus melhores momentos, fosse com composições de maestros consagrados, ou criações próprias. Beijos calorosos intercalavam-se a cada melodia, até que afinal o Fantasma ergueu a esposa nos braços e a carregou escadas acima até o quarto. Exaustos e plenos após o ato do amor, adormeceram abraçados, seus lábios curvados em sorrisos satisfeitos.

*

Annika e Gabrielle haviam saído para irem almoçar juntas, e agora retornavam com as crianças para o teatro; os pequenos já haviam cativado metade dos membros da orquestra, atores e bailarinos, além de terem feito amizade com algumas outras crianças frequentadoras do local, de modo que seu tempo era ocupado com infinitas atividades, que iam de aulas de música a pregar peças e bisbilhotar na companhia de outros infantes e, não muito raramente, do pai. Para Erik, a nova Ópera era um labirinto a ser explorado, e boa parte dos corredores e passagens “secretas” já haviam sido por ele mapeadas. Annika se divertia com isso, e mais ainda por saber que seu marido conseguia vencer o passado e gozar da alegria de viver que não pudera fruir em sua primeira juventude. E de um modo geral, haviam conseguido adaptar-se muito bem à nova cidade, aos novos colegas e público. A despeito de todas as tensões entre seus dois países, não eram tão diferentes, afinal.

Caminhavam pela rua em direção ao teatro quando, duas quadras à esquerda, numa travessa da avenida pela qual seguiam, Annika viu uma mulher sendo empurrada por um homem, caindo numa poça deixada pelo derretimento da neve e lutando para ficar de pé na lama, enquanto o homem – um policial, ela agora via – gritava impropérios em alemão. A pianista franziu o cenho e virou-se para Gabrielle:

— leve as crianças para o pai.

— Annie, você não...

— Faça o que eu disse, Gabrielle! – ela deu um leve empurrão na irmã – agora. Não quero que eles vejam isso. – ela se virou, mas a irmã segurou seu pulso:

— Annika... Cuidado.

A mais velha anuiu e, vendo Gabi conduzir as três crianças confusas para longe, acelerou o próprio passo em direção à dupla; a moça se erguera e, com um pronunciado sotaque francês, confrontava o policial, que ergueu a mão para esbofeteá-la. Não chegou, contudo, a desferir o golpe, pois dedos finos e duros se fecharam em seu punho, pressionando o nervo de modo a lhe roubar toda a força; olhos azuis espantados fitaram os da dama, que perguntou em alemão perfeito:

— Algum problema, Mister? Algo grave o bastante para justificar bater em uma – ela ia dizer mulher, mas viu o quão jovem esta era – garota.

— Uma baderneira, Damen – disse o policial – uma imunda das periferias que adentrou a cidade para mendigar, no mínimo.

— Mas que afronta! – exclamou a jovem, que tinha cabelos ruivo e, no momento, as faces tão rubras quanto os cabelos – eu sou uma...

— Você é o que eu disser que é, francesa inútil! – tentou bater na garota, mas Annie foi rápida o bastante para entrar na frente e desviar o golpe com o braço. Nada muito difícil para quem ainda hoje competia com Renard, Claude e Jean em lutas corpo-a-corpo; com uma rasteira rápida, derrubou o homem de traseiro no chão e sibilou:

— Talvez isso o ensine a ter mais respeito por uma senhorita e, principalmente, por uma francesa. – impediu-o de se erguer com sucessivas rasteiras, até ele se afastar de gatinhas, praguejando em alemão. Nesse momento, a mulher virou-se para a garota, que tremia de frio e lamentava não o vestido ensopado e sujo, mas o livro encharcado, caído na sarjeta. – você está bem?

— Obrigada pela ajuda, Frau...

— Madame Destler – Annika passou a falar em francês, seus olhos vivos submetendo a ruiva a um rápido e completo escrutínio, avaliando desde a compleição franzina e delicada até os traços elegantes com toque levemente pueril, tais como as bochechas com covinhas, lábios de coração e olhos grandes, expressivos e, no momento, cheios de mágoa, gratidão e susto – francesa também. Ele a machucou, mademoiselle...?

— Apolline Leclair. Pollie, se preferir. E tenho alguns arranhões, apenas... Meu pobre livro é quem mais sofreu – ela tirou o volume da água e o abriu – ilegível...

— Bem, não posso fazer muito pelo seu livro, mas você parece péssima – Annie tocou as mãos da outra, esfoladas e gélidas – vai acabar adoecendo! Onde mora?

— Não posso voltar para casa assim. Eu tropecei e caí numa poça... Ia entrar em uma hospedaria para me recompor, mas o policial me confundiu com uma pedinte e... Arrastou-me para cá, para piorar a situação. – havia lágrimas retidas nos olhos verdes da garota – obrigada pela ajuda.

— Só impedi aquele idiota de machuca-la mais – disse a loira – odeio esses imbecis que ganham um pedaço de pau e um apito, e já acham que são algo, sempre tentando humilhar e machucar apenas para aliviar seus complexos de inferioridade. – ela olhou ao redor – veja, você está machucada. Não vou deixa-la sozinha. Posso leva-la ao teatro onde trabalho, à minha casa, ou a uma hospedaria. O que prefere?

— Deixe minhas coisas na hospedaria, aqui perto, onde dormi ontem. – ela tentou caminhar, e constatou que torcera o tornozelo; sem sequer pensar, Annie passou o braço da menina por seus ombros e praticamente a levantou do chão, devido à diferença de altura. A mais moça já se perguntava de onde saíra aquela mulher, que bem lhe parecia um anjo da guarda, fosse pelo momento oportuno em que surgira, pela beleza peculiar, pela força incomum a uma dama ou pela bondade altruísta que há muito não via em alguém.

A pianista ajudou Pollie a chegar à hospedaria e garantiu que, dessa vez, ninguém encostasse um dedo que fosse na menina ruiva. Foram até o quarto em que Apolline se hospedara, onde a mais velha ajudou sua protegida a lavar as mãos esfoladas e sujas e, depois, a tirar o vestido encharcado que pesava uma tonelada. Virou-se de costas enquanto a menor tirava o resto das roupas, limpava-se da lama e vestia-se outra vez, e depois ajudou-a a descer as escadas até o pequeno restaurante onde serviam as refeições aos hóspedes.

Pediram duas refeições quentes, e enquanto aguardavam Pollie perguntou:

— Madame Destler, por que me ajudou?

— Bem, pode me chamar de Annika, ou Annie. E respondendo sua pergunta... Você precisava de ajuda.

— Mesmo assim. Não conheço muitas damas, alemãs ou francesas, que teriam sequer olhado uma segunda vez para mim. Eu realmente parecia uma pedinte.

— Meus melhores amigos foram pedintes. – explicou a loira – eu fui. Cresci nas ruas, e tipos como aquele adoravam abusar de sua autoridade em crianças magras e indefesas. – ela viu Apolline arregalar os olhos, espantada – pelo menos até que ficamos ágeis e fortes o bastante para revidar.

— Não parece ter sido uma criança das ruas... É uma perfeita dama!

— É... Talvez – Annie sorriu e pegou a garrafa de vinho da mão do garçon, agradecendo – pode deixar, que eu sirvo. – E enquanto servia ambas – não ficar parada, quando vejo covardia ou injustiça, é uma questão bastante pessoal. – ela bebericou seu vinho – mas e você? Disse que não podia voltar para casa daquele modo, mas está hospedada em uma estalagem. Espero que não esteja fugindo de casa: seria uma péssima ideia.

— Eu... Bem, pode-se dizer que estou, sim. Mas não da casa de meus pais... Da casa de meus patrões.

— Preceptora? – oras, que coincidência! Há dois dias falava com Erik sobre contratar uma!

— Creio que meu desespero com meu livro foi uma boa denúncia – a ruiva sorriu de modo cansado – eles são minha vida.

— De onde você é, Apolline? Eu diria que do sul, por seu sotaque.

— Marseille. – ela sorriu – e eu sei o que está pensando: como uma garota do interior se torna preceptora? Meus pais se esforçaram para me dar uma boa educação, e tivemos uma vizinha britânica que trabalhara como preceptora; ela achou que eu tinha potencial, e me ensinou tudo o que sabia. – ela deu de ombros – quando eles morreram, tutelei uma garotinha por seis meses, antes de vir para a Alemanha. – ela suspirou, um pouco mais solta pela bebida – devia ter ficado na França.

— Patrões desagradáveis? – Annie levou uma garfada do lombo de porco à boca, interessada.

— Creia-me: desagradáveis é um suave eufemismo – ela bebeu mais um pouco - seja como for, eu creio que pedi demissão, ontem... Mas ainda não tive coragem de voltar para buscar minhas coisas.

— Acredita que pediu demissão? Como assim? Ou pediu, ou não!

— Bem, imagino que espetar a mão de seu patrão com um garfo e jogar um balde de água suja em sua patroa seja um pedido de demissão implícito. – Annika segurou uma gargalhada, o que a fez engasgar com a comida. Quando parou de tossir, perguntou incrédula:

— Fez mesmo isso?

— Nem eu acredito que fiz. – a expressão de Pollie era misto de incredulidade e vergonha – mas ninguém aguentaria aquela família por mais tempo. O pai é um beberrão rico, dono de inúmeras residências que lhes dão muito dinheiro sem terem de trabalhar. A mãe é insuportável, pensa-se superior a qualquer pessoa, sempre com aquele ar arrogante e prazer em humilhar os outros... E o garoto... ARGH! – a ruiva fez uma careta de raiva e nojo – pirralhinho mimado, que não pode ser contrariado de forma alguma! E acredite, isso é apenas um breve resumo, porque eu não vou aborrecê-la com os detalhes.

— Deixe-me ver... – Annie ponderou – Mulher rica e histérica, que exige ser tratada como uma rainha, e o filho, como um pequeno príncipe cuja palavra é lei. Se estou certa, raramente acerta seu nome, não quer ter de cuidar do próprio filho e confunde uma preceptora com uma ama-seca; é você quem levanta à noite, quando o fedelho grita e quer algo, e ele te trata como uma criada. O pai... – ela estreitou os olhos ao ver o modo como a moça pareceu constrangida – quantas vezes ele tentou invadir seu quarto, à noite?

— Muitas... – a voz de Apolline era um mínimo sussurro – entende por que eu perdi o controle?

— Longe de mim te julgar. – sorriu Annika – sei exatamente como é esse tipo de gente. Tenho uma escola, em Paris, e ouço as histórias das professoras que contrato. – ela olhou preocupada para a menina – e o que vai fazer, agora? Precisa voltar lá, algum momento, e depois continuar sua vida.

— Não tenho força de voltar. Não ainda. – disse a menina, e sua palidez disse tudo a Annika:

— Ele não apenas tentou entrar em seu quarto. Ele entrou. – ela conhecia bem aquele tipo de medo. Bem demais para não o reconhecer na moça - Você deixava um garfo ao alcance para se defender, porque temia a hora em que isso fatalmente aconteceria. Entrou, tentou ataca-la e você se defendeu, mas está envergonhada e apavorada demais. – ela falou baixo, para que mais ninguém ouvisse, ainda que a conversa fosse em francês.

— Como... Como soube isso tudo? – a voz da menina era só um fiapinho de som, e seus olhos estavam marejados com lágrimas de vergonha.

— Eu disse: cresci nas ruas. Contratei muitas professoras que passaram por coisas similares. – ela segurou gentilmente a mão de Apolline – não a estou julgando, Pollie. Você é pouco mais velha do que minha irmãzinha... Esse tipo de porcos imundos é mais frequente do que imagina, e... A culpa não é sua. Não tenha vergonha: a desonra é inteira dele.

A jovem baixou o rosto, extremamente constrangida, e sua interlocutora prosseguiu:

— se precisar, eu posso ir com você, buscar suas coisas.

— Já fez por mim muito mais do que qualquer um faria – recusou-se a jovem, não querendo abusar da bondade de Annika.

— Na verdade, pretendo fazer mais. E você pode retribuir, se lhe interessar.

— Como assim, SE me interessar? Farei o que precisar! - a voz da menina era carregada de expectativa: precisava retribuir de algum modo a bondade daquela mulher!

— Bem, eu procuro uma preceptora para meus filhos. O menino tem cinco anos, e as meninas acabaram de completar três. – ela viu a expressão surpresa da outra – eu sei que são jovens, mas... Possuem um aprendizado rápido, e como todos em casa trabalhamos no teatro, receio que seu aprendizado tenha avançado mais no ramo das artes do que nos demais. Por isso procuro alguém que possa lhes dar educação mais sólida, quando o pai, a tia e eu estivermos no teatro. – ela fitou o rosto incrédulo da jovem – o que me diz.

— Eu... É... Eu sequer sei o que dizer! – ela suspirou, sentindo o coração bater rápido demais, como se quisesse sair do peito. Num momento estava desempregada, assustada e rechaçada na rua, caída na lama e imaginando como conseguiria se manter... E agora... Ah, Deus devia ter ouvido suas preces! Precisou de todo o seu autocontrole para não abraçar Annika com todas as suas forças. Enfim conseguiu organizar as palavras – é claro! É uma oportunidade maravilhosa! Entretanto, preciso buscar minhas coisas, conhecer as crianças, e temos de acertar...

— Calma. – Annika sorriu – meu Deus, é mal dos vinte anos ser tão afoita? – tomou a liberdade de arrumar uma mecha de cabelo que escapara do penteado de Pollie – escute, precisa de alguns dias para se arranjar, pensar na proposta, conhecer meus filhos e colocar sua vida em ordem. Eu não tenho pressa, e entendo que é um momento difícil o que está vivendo.

— Eu... – Pollie tinha um sorriso enorme – Annika, eu aceito. – sentia vontade de pular, rir, fazer qualquer coisa para externar sua alegria: num momento sua vida parecia emaranhada a um labirinto de espinhos, e em pouco mais de três hora tudo parecera se acertar como por milagre!

Annika também sorria: sabia reconhecer pessoas boas, e ainda mais as que precisavam de ajuda. Apolline Leclair era as duas coisas, e algo dizia à pianista que uma excelente amizade começava ali.