Os dias se passaram, e enfim Apolline Leclair se tornara a preceptora das crianças Destler: fora acertado que seu horário seria de segunda a sexta, das oito da manhã às cinco da tarde. A princípio recusara a hipótese de viver na casa dos Destler até encontrar uma residência - ainda traumatizada após os eventos com seus últimos empregadores - porém, ao conhecer Erik, Gabrielle e as crianças, acabara por aceitar.

Ainda que o estranho e frio Monsieur Destler a intimidasse e assustasse um pouco, fora um perfeito cavalheiro e deixara bem claro em seus modos ser uma pessoa digna. Quanto às crianças, eram alegres e ativas, brincalhonas, extremamente inteligentes e gentis; Alain era um verdadeiro principezinho, com os mesmos modos formais do pai, porém sem o desconfortável retraimento, o que o fazia ser quase galante, se fosse um pouco mais velho. As meninas eram risonhas e curiosas, muito atentas a tudo e, mesmo tão pequenas, já demonstravam gosto por travessuras. Em resumo: ficara encantada com os pequenos, e seu primeiro dia como preceptora pusera um grande sorriso em seus lábios, acelerando seu coração.

Sua “mudança” ocorrera dois dias atrás, quando Annika e Gabrielle foram com Pollie à residência de seus antigos patrões. Gritos e ameaças de chamar a polícia, insultos e coisas similares que se iniciaram para receber a menina silenciaram ante a entrada das outras duas francesas e enquanto Annika lidava pessoalmente com os patrões anteriores de Apolline, informando-os sobre a demissão da garota, Gabi correu em ajudar a outra a reunir seus pertences e leva-los para o coche. Não tardou para a moça ruiva ter tudo guardado e pronto, esperando na porta com expressão de assombro ao ver a maneira como Madame Destler parecera tomar perfeito controle da situação, tão à vontade e plena de autoridade que parecia ela própria a dona da casa, com o casal alemão de vontade submetida à sua por meio de palavras bem escolhidas e manipulação. Ela não chegara a ouvir a conversa, mas sabia pelo olhar e tom gélido na voz da pianista que provavelmente não iria querer saber o que fora dito.

Oficialmente desvinculada de seu passado, a moça ruiva dedicou o resto daquela tarde a se acomodar em seus novos aposentos, arrumando seus poucos pertences – os quais consistiam, em sua maioria, em livros. Gabrielle se ofereceu para ajudá-la e, mesmo lhe parecendo estranho aceitar ajuda de uma patroa, a violinista era tão amável e gentil que foi impossível dizer-lhe não. Assim, Annika levou as crianças ao teatro consigo e o esposo, deixando as mais moças à vontade para rirem, conversarem e se entrosarem; a conversa se dera fluída, e logo pareciam ser amigas de longa data, enquanto Gabi olhava para os trajes formais e escuros da garota Leclair e dizia que precisava urgentemente leva-la às compras, a fim de encontrar cores mais adequadas a meninas de sua idade. Pollie tentara recusar, mas novamente a insistência da jovem Andrieux venceu, especialmente quando argumentou que era um presente de amizade, e que já lhe bastava ver Erik sempre em roupas escuras – comparando-o num gracejo a um corvo.

Outros assuntos se desenovelaram facilmente, indo de mitologia a história, de política a música, e quando os Destler chegaram, à noite, encontraram Frau Beck enxotando as duas meninas da cozinha, dizendo que eram as piores ajudantes do mundo, pois não paravam de “provar” a refeição. Aquilo arrancou um sorriso aliviado de Annie, que trocou um olhar significativo com a irmã.

No dia anterior, Gabrielle decidira que as roupas de Apolline eram um insulto à beleza da moça e praticamente a arrastara para fazer compras, por mais que a garota Leclair insistisse ser desnecessário. Finalmente, Gabrielle dera um ultimato com o argumento de que era falta de educação recusar um presente, e isso fizera Pollie desistir.

Definitivamente, parecia não haver ninguém mais teimoso do que a mais jovem das irmãs. Uma fisgada de curiosidade a atingiu quando Gabi riu de tal observação, e ante o olhar indagador da preceptora, a violinista respondera:

— Apenas conviva com Annika e Erik, e vai descobrir que uma mula empacada é menos teimosa. Eu sou branda, doce e suave, extremamente flexível, pelo menos se comparada à cabeça de pedra da Annie. – contudo, Apolline duvidou. Não conseguia imaginar ser possível alguém mais insistente do que a moça Andrieux! É claro que ela logo viria a descobrir a verdade...

Assim, apesar da relutância inicial, aos poucos a jovem de cabelos fulvos parou de tentar escolher as peças mais simples e apagadas que conseguia encontrar, e acabou descobrindo que fazer compras poderia mesmo ser divertido.

Controlar os ânimos de Gabrielle era um desafio à parte, e algumas vezes a mais velha precisou ser firme em negar algo que jamais usaria, fosse por falta de ocasião, como um magnífico vestido de veludo-cristal e cetim em tons degradê de azul-esverdeado, ou por pudor, como no caso de um vestido carmesim de decote quadrado, por assim dizer, “generoso” demais no que revelava. A quantidade também foi motivo de discussão, pois Gabi parecia querer levar a loja inteira! A fim de deixar Apolline menos desconfortável, acabou levando peças para si, também. Foi algo totalmente novo para a jovem preceptora, que lembrou à menina loira muito de si própria quando fora pela primeira vez com a irmã a uma loja, quando tivera o último estirão de crescimento, pouco depois de começarem a trabalhar no teatro.

Finalmente, conseguiram chegar a um acordo; a musicista parecia muito satisfeita em literalmente refazer o guarda-roupas da outra jovem, dizendo que haviam comprado apenas o essencial, enquanto Pollie tinha plena certeza de que o número de sacolas e caixas era algo absurdo!

— Relaxe, mulher! – sorriu Gabrielle, quando já estavam no coche – Deixe-se mimar um pouco.

— Mademoi... Er, Gabrielle, eu não estou desfazendo de sua gentileza, mas não lhe parece... Demais? – ela estava quase tão vermelha quanto a cor de seus cabelos ao sol.

— Talvez um pouquinho mais do que o essencial. – a loira deu de ombros – Mas você é jovem e bonita, e sua vida não pode se resumir a cuidar das crianças. Precisa ter roupas para sair, passear e se divertir, para ir a um museu ou a um concerto, e até mesmo para uma ou outra travessura. – assim dizendo, a mais nova jogara para a outra mais uma sacola – Enquanto as modistas te mediam inteira, dei um pulinho na alfaiataria e comprei um par de calças e algumas camisas que devem servir em você. Caso queira apostar uma corrida à cavalo, ou escalar telhados, quando a neve derreter. - O arregalar de olhos da outra provocou mais uma gargalhada, e foi a deixa para que contasse à garota Leclair um pouco de suas aventuras e explorações com os Garotos do Beco, quando não estava no teatro ou na escola. Omitiu, é claro, que isso era apenas um reviver de épocas em que tais momentos eram tanto uma distração e alívio dos tormentos, quanto incursões em que os rapazes obtinham dinheiro para viver mais um dia.

Encerraram a tarde num café, rindo e compartilhando histórias – Apolline já sabia que Annika e Gabrielle haviam vivido nas ruas, mas ainda estava horrorizada com as histórias de corridas sobre telhados, brincadeiras de luta e escaladas perigosas! Tremia apenas de pensar em alturas! Porém, quando a conversa se desviou para o campo da cultura, as palavras fluíam e as ideias se complementavam, especialmente no campo da literatura. Retornaram para casa já tarde, bem depois de anoitecer, encontrando Annika e Erik lendo juntos na sala – provavelmente esperando por ambas.

O Fantasma prontamente se levantou e saudou as meninas, retirando algumas sacolas das mãos delas (ao menos tantas quanto conseguia) para ajuda-las. Apolline pensou em se escandalizar, mas já compreendera ser aquela família tudo, menos tradicional.

Mais tarde, após conversar brevemente com os novos patrões – que se recusavam a serem chamados assim; para o Phantom, bastaria Monsieur em público, e Erik quando em casa. Annika insistira em ser tratada apenas pelo nome, ou pelo apelido – Apolline agradeceu enormemente toda a gentileza da nova amiga, e foi com felicidade enorme que, ao se trocar para dormir, vestiu uma camisola de lã fina e macia, cujo toque era praticamente uma carícia em seu corpo. Mais um mimo desnecessário, mas ela via o quanto Gabrielle queria agradá-la; ainda não entendia muito bem, mas parecia muito importante para a menina mais nova garantir-lhe aquele tipo de felicidade boba, mas tão cheia de ternura.

Pensou nas palavras de Annie, sobre terem sido ambas crianças de rua, e sorriu ao pensar em como, em vez de endurece-las, o fato as tornara tão generosas e ansiosas por fazer o possível pelos outros. O pensamento a fez sorrir, decidida a retribuir da melhor forma possível, e ainda melhor, enquanto o manto suave do sono a recobria.

*

Foi com novo vigor e brilho de felicidade no olhar que ela desceu bem cedo para o primeiro andar, encontrando-se com Annika na cozinha, o que a pegou de sobressalto:

— Santo Deus! Que susto Mada... Annika! – depois riu de si mesma e se aproximou – O que faz acordada, tão cedo?

— Eu perguntaria o mesmo – sorriu a mulher loira, enquanto abria uma garrafa de leite e vertia o conteúdo numa chaleira – Perdi o sono, e decidi preparar o desjejum. E você?

— Acho que tive a mesma ideia – deu de ombros a mocinha – Posso ajudar?

— Será um prazer! Aqui, pode cortar em pedaços esse chocolate, por favor? – Annie estendeu para a garota um grosso tablete de chocolate amargo, e nesse movimento a mocinha viu seus antebraços, desnudados pelas mangas arregaçadas, reparando nas cicatrizes grossas em redor dos pulsos, e nas múltiplas cicatrizes de cortes ao longo dos antebraços. O QUE ERA AQUILO?! Pegando o ingrediente, percebeu que a outra reparara em sua indiscrição e tratou de virar o rosto para longe. Annika não parecia desconfortável, mas ainda assim desceu as mangas do vestido – Todos temos nossas cicatrizes do passado. Não se impressione, são muito antigas para importarem.

— Posso perguntar... O que...?

— Não importa, Pollie. Todos temos nossas cicatrizes, mas isso é passado. – a voz da mulher era doce, mas havia um pedido implícito para não tocar no assunto – Vamos continuar, sim? – e ante o anuir da menina, começou a sovar o pão de frutas – Dormiu bem?

— Extremamente bem! A senhora... Digo, você e sua irmã foram tão boas para comigo, que mal sei como retribuir.

— Quando vir alguém em necessidade, e tiver os meios de ajudar, faça isso. – respondeu a mais velha, com um sorriso – Corte o chocolate, depressa, que eu logo vou precisar dele!

Após aquele incidente a conversa seguiu em torno do preparativo dos alimentos, e do que Apolline planejava fazer com as crianças. Afinal, Annika sugeriu que a jovem as acompanhasse ao teatro, para se familiarizar melhor com a personalidade e hábitos das crianças, a fim de poder traçar um método de ensino. A ideia pareceu ótima, e assim foi acordado.

Durante o desjejum, Gabrielle exultou com a ideia, empolgada em mostrar à nova amiga o lugar onde ora trabalhavam, e insistiu em que a jovem usasse um dos novos vestidos de passeio comprados no dia anterior. As crianças também se entusiasmaram – já demonstravam gostar muito de sua preceptora – e falavam ao mesmo tempo, até Annie e Erik colocarem ordem com algumas poucas palavras. Contidos, alternaram-se para contar a Apolline o que desejavam lhe mostrar, e o carinho com que a jovem de cabelos ruivos ouvia e respondia a cada frase dos pequenos enchia os três outros adultos com a certeza de ter sido uma escolha acertada. Era como se Apolline fosse uma velha conhecida de todos, passando uma sensação de segurança que a fechada família raramente experimentava com alguém.