Capítulo 4. A natureza sente.

Don't Wanna Know

"Ainda bem que sempre existe outro dia. E outros sonhos. E outros risos. E outras pessoas. E outras coisas."

Clarice Lispector.

Abertura

Sarazal Ludwig sorriu enquanto observava os pingos de chuva caírem com força na grama. Estava sentada na saída do refeitório, saboreando o delicioso bolo de limão que havia recebido das mãos da própria Josephina, a Chef de Cozinha. Não tinha como seu dia estar mais adorável. Tudo bem, o pessoal havia acabado de voltar do enterro e do velório de Norwood (com ela inclusa), mas não era por conta disso que ficaria para baixo o resto do dia. Gostava de Norwood, admite, ele era até um bom rapaz. Mas no geral o via somente como o Águia, e não era muito fã do Águia.

Mordeu mais um pedaço do seu bolo analisando ao redor. Eram poucas as pessoas que a filha de Gothel e Narcissus Ludwig via. No geral, aqueles que gostavam de chuva tanto com ela — ou até mais, se for comparar com aquele grupo que dançava na chuva. Já havia visto Ethan White passar andando com a postura impecável que ela tanto odiava, havia trocado algumas poucas palavras com Phoenix LeGume quando ele chegou ao refeitório (poucas porque Phoenix estava realmente para baixo com a morte de Norwood, e mesmo adorando o rapaz, Sarah tinha certeza de que seria um pouco fria perto dos sentimentos do rapaz). Havia até visto Faye Zörn sair na porta do prédio de dormitórios — o que ela tinha até achado surpreendente, contado que a garota nem havia ido ao enterro do Jones.

A menina deixou um sorriso se formar em seus lábios finos, e então recostou as costas na cadeira de madeira pintada de azul. Sarazal bebeu um gole de água e então continuou observando. Gostava de observar as pessoas — não mais que conversar com elas — quando estava em seu tempo livre. Mas no fundo estava adorando ficar de folga em plena quarta feira à tarde, quando tinha que ir para a aula de Artes, que — foco — ela havia sido obrigada a se inscrever. Não que Sarazal odiasse arte, ela adorava, principalmente quando podia desenhar retratos das pessoas com carvão, mas...

Sem mentiras, ela odiava o Professor Donnie. E no geral, não eram somente desenhos que ela tinha que fazer. Essas duas aulas de Artes compreendiam teatro e dança também, o que Sarazal não era muito fã. Ela nunca foi a melhor dançarina, e nas aulas de dança é extremamente comum ver Sarazal conversando sobre aleatoriedades e sendo chamada várias vezes por Donnie para prestar atenção na aula. E no teatro, bem... Sarazal era sempre aquela que interpretava os personagens que menos apareciam. Ela gostava mais somente da parte onde eles tinham de interpretar emoções, e conhecer feições, e da parte onde eles tinham que arrumar o auditório para poderem apresentar uma nova peça.

A morena bebeu mais um gole de água enquanto observava a filha de Ariel e Eric andar na chuva com um pequeno sorriso segurando um guarda chuva transparente. Rosemary Heen era colega de quarto de Sarazal, e por mais simpática e amigável que ela fosse, Sarazal realmente não gostava muito dela. Talvez pelo fato dela estar sempre rodeada de pessoas, ou então pelo fato de que os homens pareciam cair aos seus pés mesmo sem ela ter aberto a boca. Mas Sarazal a aguentava, porque além de dividirem um quarto, elas ainda faziam parte do mesmo Clube (por mais que Sarah tivesse a certeza absoluta de que Rosemary não gostava muito de fazer parte do Clube).

— Oh, hei Sarah! — a menina cumprimentou quando chegou próxima a colega de quarto. Sarazal percebeu que além do guarda chuva, Rosemary ainda tinha botas de plástico nos pés e uma capa de chuva. Provavelmente para não ganhar uma cauda no meio da terra. Se bem que Sarazal realmente riria se isso acontecesse. O que de certa forma aconteceu.

Uma sonora risada saiu dos lábios da filha de Gothel, e Rosemary rapidamente franziu as sobrancelhas. Já estava acostumada com o gênio de Sarazal — difícil perto dela, adorável longe dela —, mas vê-la rir do nada realmente lhe dava certo susto.

— O que houve? — Rosemary, ou Litlle Rose (apelido carinho que recebeu dos colegas de sala), indagou com as sobrancelhas unidas, e colocando o guarda chuva para longe de si. Gostava da chuva, mas odiava o fato de que uma gota poderia fazer com suas pernas transformassem em cauda.

— Nada — Sarazal respondeu, parando de rir, e passando a mão pelos olhos. — É que eu imaginei uma coisa aqui, e foi realmente engraçado — prosseguiu, e alguns segundos depois parou de rir totalmente. — Você é mais engraçada do que pensa, Ruiva.

Rosemary deu um pequeno sorriso para a colega de quarto, controlando-se internamente.

— Você nunca vai parar de me chamar de Ruiva, vai? — perguntou mesmo sabendo a resposta. Rosemary não era ruiva. Seu cabelo tinha uma coloração castanha claro, o que deixava todo mundo indignado: como assim você é filha da Ariel e não possui o cabelo ruivo? É algum problema genético? O que deixava Rosemary muito irritada mesmo. E Sarazal sabia disso. Depois de algum tempo dividindo o quarto com Rosemary que ela foi descobrir quem era a Ariel, e que ela tinha um cabelo ruivo estonteante. E foi somente ela perguntar a menina porque ela também não tinha os fios ruivos maravilhosos e Rosemary ficar irritada que o apelido surgiu: Ruiva.

— Você sabe que não — Sarazal deu um sorriso sarcástico, e depois bebeu mais um gole de água. — A não ser que apareça um apelido melhor — completou dando de ombros e fingindo inocência.

— No seu caso seria pior — Rose retrucou, retirando a capa de chuva com cuidado e a colocando ao lado do guarda chuva. Sarazal assentiu com a cabeça, um sorriso divertindo domando seus lábios. Depois esfregou os pés no tapete de entrada que havia sido trocado após a chuva começar. — Eles ainda estão servindo o lanche da tarde? — a garota indagou virando-se para a colega de quarto.

Sarazal soltou uma risada nasal recheada de ironia — que Rosemary fez o favor de ignorar —: como aquela menina conseguia ser tão simpática com a filha de Gothel sendo que ela era completamente irônica e sarcástica com ela?

— Estão — respondeu sem olhar para a filha de Ariel. — Mas os melhores lanches estão com a Josephina, Ruiva — completou num sussurro. Pumba, um momento simpático. Talvez fosse por contas desses momentos simpáticos que Sarazal oferecia que fazia Rosemary não deixar de ser simpática com a garota. Talvez no fundo, a filha da Gothel realmente gostasse da filha da Ariel e ainda precisasse totalmente se desprender das raízes que havia feito na Ilha dos Perdidos. E Litlle Rose adoraria ajudá-la.

— Obrigada, Sarah — respondeu com um sorriso divertido, antes de abrir a porta do refeitório e o encontrar basicamente vazio. O que fez Rosemary se assustar.

Era sagrado Rosemary ir nas quartas feiras a tarde com seus amigos do 2º Ano para poderem comer algumas coisinhas antes das duas aulas de Luta que eles faziam e ela não. E no geral, o refeitório sempre estava cheio. Tudo bem que eram poucos os alunos do 1º Ano, assim como também eram poucos os do 3º Ano. Mas basicamente todos do 2º e do 4º Ano iam ali lanchar naquele horário.

Norwood Jones morreu, Rosemary, é por isso que tem poucas pessoas aqui. Talvez fosse realmente por isso. Não que Rosemary não estivesse chateada pela morte de Norwood. Muito pelo contrário, ela estava realmente muito chateada pela morte de Norwood, porque ninguém, realmente ninguém merecia morrer tão jovem e do jeito que o filho do Capitão Gancho havia morrido. Rosemary admitia: ela não era lá muito fã da versão Águia de Norwood. Mesmo sendo do 4º Ano, o Norwood Jones era grande amigo de Rosemary — ou grande colega, ela insistia em repetir para si —, e sempre que possível a turma dele e a turma dela estavam juntas.

Entretanto, quando Rosemary tinha de ir para o Clube Turvo encontrava uma versão totalmente diferente da de Norwood Jones. Aquele era o Águia. Um dos líderes do Clube Turvo, uma pessoa totalmente... Repugnante. Ele era tudo o que Rosemary mais odiava e mais um pouco. Era aquele tipo de pessoa que Rosemary preferia manter distância ao invés de ficar perto. Talvez por causa disso, ela se afastou de Norwood Jones, e talvez por causa disso, ela não estivesse chorando, ou tendo um colapso como Phoenix LeGume estava tendo.

Rosemary suspirou ao ver o filho de Gastón sentado no canto do refeitório, afronte de um prato com um pedaço de torta e um copo com suco de laranja, provavelmente. Seu rosto não era um dos melhores. Possuía grandes olheiras, seu cabelo estava bagunçado, e ele parecia bem mais recluso do que o seu normal.

A filha de Ariel gostava de Phoenix. Gostava mesmo. Mesmo sendo Phoenix, aquele que todos zoavam, quando ele se transformava em Coruja, era simplesmente um dos rapazes mais legais e gentis com Rosemary. No geral, nas reuniões, Rosemary era a única a não se misturar com todos os outros, e era sempre Phoenix que sentava-se ao seu lado e conversava com ela. Rosemary admitia que só ia as reuniões com esperança de Phoenix sentar-se ao seu lado e conversar com ela.

Foi por isso, que ela — segurando seu prato com os cookies e um copo de leite quente — decidiu sentar-se junto de Phoenix. Caminhando com passos rápidos e seguros, a menina colocou seu prato afronte ao garoto, que mesmo assustado, ergueu os olhos para fitá-la.

— Posso sentar aqui? — indagou com a voz calma e serena e um pequeno sorriso nos lábios. Não deveria sorrir muito, tanto pelo fato de sentir-se chateada por Norwood, quanto pelo fato de estar afronte do melhor amigo de Norwood.

— Ahn, pode — o rapaz respondeu, e Rosemary percebeu enquanto ele dava uma olhada em volta, como se estivesse realmente conferindo o fato de que havia outras muitas mesas vazias para ela se sentar.

— Eu só quis fazer companhia, mas se você não quiser, eu posso sair — falou já depois de sentada. Phoenix rapidamente fitou a menina, e então negou com a cabeça.

— Não, não, você pode ficar. É só que... — engoliu em seco, tentando achar as palavras certas e voltando o olhar para o prato a sua frente. — Bem, sou eu — deu um sorriso triste que logo sumiu. — Ninguém senta comigo.

— Que bom então que eu sou uma exceção — Rosemary falou sorrindo, mas logo diminui o sorriso ao receber o olhar de Phoenix. — A torta está boa? — a garota perguntou. Estava sim tentando distraí-lo por alguns minutos. Assim, quanto menos Phoenix pensasse em Norwood, melhor seria para ele mesmo, não só para ela.

— Eu na verdade não cheguei a experimentar — o rapaz respondeu parecendo meio envergonhado e logo pegou o garfo que outrora segurava, mexendo na torta de forma lenta. — Mas está com uma cara boa — sussurrou.

Rosemary soltou o cookie que segurava, e então num gesto — talvez inconsciente — rápido ela pegou a mão livre do garoto, que a fitou um tanto quanto surpreso. E Rosemary não saberia dizer o porquê. Eles eram colegas, no final, não eram? Não Rosemary, a Coruja é seu colega, não Phoenix. E ela quase suspirou de raiva por conta disso, mas segurou.

— Você pode contar comigo para o que precisar, okay? — falou com a voz firme e segura de si. Porque Rosemary queria muito ajudar Phoenix, fosse de qualquer forma. — Mesmo que seja só um ombro para chorar, ou então um abraço, ou apenas alguém em quem confiar. Eu vou estar sempre disponível — confirmou e soltou um pequeno sorriso. Phoenix assentiu, com também um pequeno sorriso, baixando a cabeça para a torta. — Exceto nas horas em que eu estiver na aula, ai não vou estar tão disponível — completou abrindo seu sorriso e ouvindo uma curta e gostosa risada de Phoenix.

— Obrigado — o rapaz agradeceu, erguendo apenas os olhos para a menina, que devolveu o sorriso, afagando sua mão e logo a soltando. — De verdade, Rose, obrigado — acrescentou, e Rosemary adorou ouvir um pequeno e não tão novo apelido sair dos lábios do rapaz.