Amarras

Capítulo 14 – Êxodo 21.24


O cheiro já passava do corredor, mas os que estavam dentro do quarto não podiam ligar menos. O piso, antes branco, estava coberto pelo sangue vermelho vivo do médico que tinha trago o menino ao mundo, o que parecia uma ironia: trazer uma vida quase ao mesmo instante em que conhece morte.

Care não percebeu em qual momento as outras enfermeiras haviam saído, mas agora podia ver que no quarto havia apenas uma, desmaiada no canto. Ou morta. Ela não se importava, para dizer a verdade.

Não quando tinha seu próprio filho morto em seus braços. Não quando pensava que a vida dele não valia mais que um punhado de energia concentrada em um pingente. Sentia raiva, ódio, rancor, mas nenhum desses conseguia sobrepujar ao sentimento de tristeza que a dominava. Era de enlouquecer.

Ouviu Klaus mexer-se novamente , depois do que pareceu ser horas de estado catatônico. Estava com a percepção de tempo desajustada: haviam passado apenas aproximadamente vinte minutos.

Sentiu um dos braços dele passarem por trás de suas costas e o outro á altura do joelho, e entendeu que iria carregá-la. Não reagiu. Na verdade, não estava reagindo a mais nada.

Quando passaram pelo saguão do hospital reconheceu o olhar de pena de Freya. Não a culpou: uma mulher carregada com uma criança morta firmemente presa a seus braços é com certeza uma cena bem melancólica.

Fechou os olhos e decidiu não ver mais nada.

Depois de ser colocada em um carro e tirada, minutos depois sentiu que estava sendo colocada em uma cama novamente. O cheiro de alecrim e madeira, sua noção de espaço... Tudo declarava que estava em casa. Sentiu uma mão passar suavemente sobre seu braço sussurrando um “sinto muito” e quando forçou seus olhos a abrir, viu Hayley, que com os olhos presos ao bebê em seus braços, permitia que suas lágrimas caíssem.

Mais a frente observou Klaus sentado na beirada da cama. Ele não tinha dito uma palavra, e do contrário de antes, quando evitava, agora ele encarava a criança morta como se fosse a última vez que faria aquilo ou como que buscando um sentido para aquela situação.

Quando seus olhos encontraram os de Caroline ela soube que não, ele não havia encontrado respostas.

Hayley começou a falar-lhe palavras de consolo, então observou o pai de seu filho levantar-se para se afastar, ficando sozinho perto da janela, encarando algo comum no exterior á casa.

Daquele ângulo Caroline nunca veria, mas as lágrimas que ele derramou naquela janela era um misto de sentimentos profundos, nenhum deles, porém, bom.

Ela perdeu-se em seus pensamentos e já não via ou ouvia Hayley, mas seu cérebro acordou quando a voz de Vicent, que ela nem tinha visto entrar, se sobressaiu.

— É melhor que seja cremado. Não queremos que o corpo dele seja usado como receptáculo, Elijah.

A fala do bruxo a fez virar-se e perceber a presença do original no quarto. Ele também parecia confuso com toda aquela situação, mas ainda assim tentava resolver pequenas coisas que Klaus, visivelmente, não estava em condições de fazer.

Como se não tivesse ouvido nada, prosseguiu em segurar seu bebê nos braços temendo a hora em que o tirariam dali para o colocarem no fogo.

Um bebê no fogo.

Sua garganta se fechava e sentia calafrios quando sua mente, já perturbada, imaginava a pele de seu menino descolando enquanto era consumido pelo fogo. Morto ou não era um bebê e ela não conseguia parar de pensar naquilo.

De modo que nem a presença de suas filhas e de Hope, chorando pelo irmãozinho a fizeram se mexer ou falar. Não queria ouvir, não queria ver, não queria ser essa pessoa que segura o filho morto nos braços enquanto espera a hora de jogá-lo no fogo.

— Vão meninas. Já o viram como queriam. Agora precisam ir.

A loira sentiu as meninas descerem da cama ao ouvir a ordem que vinha de Hayley. Ela sentiu quando a hibrida sentou-se na cama.

— Nós vamos levá-lo agora.

Hayley esperou alguns segundos esperando que a loira dissesse algo, coisa que não aconteceu. Aliás, ela não tinha dito uma palavra desde quando o menino havia parado de respirar.

— Você não quer se despedir dele?

Care virou-se a fim de olhar o menino deitado ao seu lado. Seus braços e pernas inertes, seus olhos firmemente cerrados. Gostaria de dizer que ele parecia estar dormindo mas não, na verdade parecia bem morto. Analisou bem sua aparência antes de concluir que ele iria se parecer com o pai quando adulto.

Iria. Não irá mais.

Virou-se. Aquilo era o máximo que podia fazer: não o tomaria no colo nem o beijaria em despedida. Ela também se sentia morta e mortos não se despedem assim.

Hayley pegou a criança em seus braços parecendo um pouco angustiada em ser ela a ter aquele papel. Gostaria que Rebekah estivesse lá e que Freya não estivesse tão abalada com tudo.

Ao passar pelo corredor encontrou-se com Niklaus. Ele, assim como Caroline, fitou o bebê pelo tempo que conseguiu, desviando seu olhar logo em seguida. A híbrida sabia que toda aquela situação estava trazendo de volta o pior dele.

— Vá para o quarto e fique com ela. — ordenou a ele com voz firme — Com certeza voltará a ser vampira em pouco tempo e a impressão que tenho é que é o que ela está esperando para se desligar.

~~ ~~ ~~

Estava deitada na mesma posição que a tinha deixado. Klaus procurou por qualquer sinal de reação, mas não havia nenhum, ela com certeza continuava igual.

Sentou-se na beirada na cama, exatamente do jeito que tinha feito quando a tinha trago para casa.

Sentiu que estava sendo observado e a olhou, flagrando o olhar dela, com os olhos ainda marejados, encarando-o. Não demorou muito e entendeu: ela estava procurando o sofrimento e o ódio que sentia dentro de si. Buscava reconhecimento, igualdade de sentimentos. Quando enfim encontrou, ergueu-se e se aproximou dele.

Klaus não esperava, mas quando sentiu os braços dela o rodeando soube que ambos precisavam daquilo. Um abraço silencioso, com um choro mais silencioso ainda.

O sofrimento às vezes é algo silencioso.

Sentiu depois uma pequena dor. Algo estava perfurando sua pele, e ele estava tão inerte que demorou ainda uns bons segundos para entender que ela tinha furado seu pescoço.

Elijah entrou na mesma hora e ao perceber o que acontecia, aproximou-se para tirá-la de cima dele, porém o híbrido estendeu a mão, pedindo que parasse.

— Deixe.

Sem mais querer intrometer-se, Elijah retirou-se. Em momento algum Caroline parou de se alimentar, e quando o fez, subiu um pouco seus lábios, encostando-os em sua orelha.

— Acho que vou desligar. Vem comigo?

Ela o encarou pelo que pareceu minutos a fio enquanto ele analisava a proposta. Diferente do que ela pensou, a demora da resposta não se deu pela indecisão dele de aceitar ou não, mas sim pela surpresa de constatar o quão mal ela estava, a ponto de fazer-lhe aquela proposta. A Caroline dele nunca pensaria naquilo.

Quando ele recuperou-se do choque inicial, balançou a cabeça negativamente, sussurrando apenas três nomes que ela compreendeu ser os motivos pelo qual não deveriam fazer aquilo:

— Hope, Lizzie, Josie. — A loira calou-se, mas continuou encarando-o, por isso completou — Se você estivesse em seu estado normal estaria pensando nelas em primeiro lugar também. Só estou pensando como você. Como a verdadeira você.

Novamente não houve resposta. A loira apenas afastou-se e voltou a deitar-se na mesma posição que se encontrava antes.

Mais tarde, naquele mesmo dia, Klaus foi avisado de que todos os vampiros da cidade se encontravam no salão e esperavam por informações a respeito do que tinha acontecido e de como deveriam agir. O rumor que o bebê Mikaelson estava morto tinha se espalhado, mas ninguém parecia acreditar, já que não era a primeira vez que um filho de Klaus Mikaelson era dado como morto e depois reaparecia.

O silêncio era o mais interessante. Os passo dos dois Mikaelson na sacada do primeiro andar era tudo o que se ouvia e aquilo parecia mais que respeito. Todos, mesmo sem confirmações, pareciam sentir o peso do luto e da tragédia, de maneira que fazer silêncio absoluto parecia ser o mais correto e respeitoso. Quando Niklaus iniciou seu discurso quebrando o silêncio ensurdecedor, não havia ninguém naquela sala que não estivesse atento às suas palavras.

— Eu agradeço por estarem aqui. — começou, em tom baixo. — Nossa casa foi atacada. Bruxas dessa cidade se reuniram contra nós por nossas costas e embaixo de nossos narizes selaram um destino de morte para meu filho. Sim, ele está morto. — O hibrido deu uma pequena pausa, tentando ignorar aquela sensação de estar engasgado, de ter algo preso em sua garganta. Falar aquilo em voz alta era ainda pior. — E como tinha falado à vocês, tudo estaria em paz se essa família estivesse em paz e eles não estão. Esta casa está tudo menos em paz e a única alternativa que tenho é acabar com a frágil tranquilidade que tínhamos e derramar o sangue de nossos inimigos pelas calçadas dessa cidade até que o último dos que planejaram isso seja totalmente aniquilado. Eu...

Klaus parou quando sentiu sua mão ser segurada. Ele não tinha percebido a presença de Caroline, ainda com sua aparência doente e seu robe cor verde musgo. Intimamente, por alguns segundos, imaginou que, mesmo como estava, ela ainda parecia ser a musa perfeita para inspirar a qualquer artista, principalmente os que tinham tendências a obras tristes e intimistas.

Saiu de seu torpor quando percebeu que o silêncio absoluto tinha novamente se instaurado, mas o que viu foi ainda mais tocante que o silencio respeitoso: com as mãos firmemente presas ao peito e a cabeça levemente inclinada, os vampiros e lobisomens do recinto prestavam uma reverência silenciosa á loira ao seu lado. Klaus percebeu quando seus olhos se umedeceram e ela engoliu em seco, claramente segurando a vontade de chorar.

O momento só terminou quando a própria Caroline levou também sua mão ao peito e se inclinou, devolvendo-lhes a reverência, querendo com isso aceitar as condolências e agradecer pelo apoio.

Sentiu ali, no meio de tantos desconhecidos e pela primeira vez, algum consolo para seu luto. Olhou para todos, para cada um presente, inclusive para os irmãos Mikaelson e lembrou-se do único versículo bíblico que a interessava no momento, a saber êxodo 21.24, antes de concluir para si mesma que sim, tinham meios para executar...

E elas iriam pagar. Fosse quem fosse.