Amarelo- Lírio e Fogo Azul

Capítulo 8- Eros


Eros

O Instituto Newton era um grande conjunto de prédios, tão grande que não havia quase nada ao redor. Eu sabia que não tinha nenhuma estação ferroviária ali perto.

No entanto, aquela seria a única explicação para os barulhos que eu estava ouvindo.

Começava de repente, enquanto eu prestava atenção na aula, quando estava pintando algo ou tentando praticar algumas canções no teclado da sala de música.

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Em um momento, eu estava tranquilo.

E então passava um trem.

Ou melhor, eu ouvia o barulho de um trem. Como se estivesse do meu lado. E eu sabia que eu precisava correr, fugir. Um barulho era só o que bastava para que meu coração acelerasse e eu sentisse como se houvessem mãos ao redor da minha garganta.

Desde que o quadro foi quebrado, eu me vi completamente consciente de que a última lembrança que eu tinha com Wendy havia sido destruída. Eu não sei se deveria me orgulhar, mas eu era consideravelmente bom em fingir que as coisas ruins que aconteceram não aconteceram de forma alguma.

Tão bom que meu cérebro apagou quase todas as memórias do que aconteceu com Wendy e comigo. Tudo o que eu sabia era o que haviam me contado, mas todas as minhas memórias estavam borradas, embaralhadas. Eu me lembrava de sensações: do medo, do desespero. Da culpa. Do cheiro de borracha queimada.

E do barulho dos trens.

Pelo que me contaram, eu e Wendy ficamos presos num depósito embaixo de uma estação de trem.

Eu ouvi o barulho dos trens passando por meses depois que já havia acabado. Depois de um tempo, o barulho foi sumindo. Não foi uma surpresa agradável me pegar ouvindo os mesmos sons que me atormentaram por tanto tempo.

Eu queria acreditar, conscientemente, que estava vindo de algum lugar, e não apenas da minha cabeça. Porque, se não estava vindo de lugar nenhum, então eu estava ficando mal novamente.

Foi esse o barulho que me acordou no meio da noite.

Levantei da cama assustado, jogando o cobertor longe e acendendo a luz.

Quando consegui processar minha própria reação, eu já estava em pé do lado do interruptor, olhando ao redor.

—O que…? — Zero murmurou, apenas o rosto fora da coberta.

Meu coração estava acelerando, e eu me forcei a respirar fundo.

—Achei que tinha ouvido um barulho aqui— murmurei.

Ele se descobriu e olhou ao redor. Não parecia estar sonolento.

—Eu não ouvi nada.

—Ótimo — murmurei ironicamente enquanto aceitava o fato de que eu só poderia estar ficando maluco.

Resolvi apenas apagar a luz e voltar para a cama.

O quarto estava relativamente claro, apesar da luz apagada. Zero sempre esquecia a luz do banheiro acesa, permitindo certa claridade entrar. Fiquei feliz que não estava escuro, porque eu podia olhar e me certificar de que não tinha nada de errado ali.

Eu não sabia bem do quê estava com medo. Mas estava.

Com a pouca claridade, consegui ver que Zero acordado, encarando o teto.

—Você esqueceu a luz do banheiro acesa — comentei.

Não era bem a melhor forma do mundo de puxar assunto, eu reconhecia. Mas eu precisava desesperadamente me distrair.

—Incrível — respondeu, irônico. — Até de madrugada você reclama.

—Eu não tava reclamando — me defendi.

Zero soltou uma risada baixa.

—Ah, é? Era o que então?

—Eu só tava comentando um fato.

—Eros, é oficial, você não sabe abrir a boca se não for pra reclamar ou pra me insultar— disse, e, apesar do tom brincalhão, eu quase que me senti ofendido. — Sério, acho que você me xingou dormindo um dia desses — comentou, e eu não consegui segurar uma risada.

O quê? Como assim?

—Eu tava passando pra ir no banheiro, e tropecei. Você ouviu o barulho e começou a reclamar, mas pelo jeito que tava falando, eu tenho quase certeza que tava dormindo — comentou, rindo da situação.

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—Eu não lembro disso.

—Viu? Eu disse que tava dormindo.

Reparei que meu coração estava desacelerando aos poucos, tentar me distrair estava ajudando.

Zero virou para o lado, olhando na minha direção. Seus cabelos cacheados estavam bagunçados e caindo por sua testa e bochecha. Era esquisito vê-lo sem óculos.

—Você enxerga sem o óculos?— perguntei.

Ele balançou a cabeça negativamente.

—8 graus de miopia. Eu mal tô te vendo daí do outro lado do quarto. Eu só vejo manchas, basicamente. — Ele esticou a mão, a palma aberta, como se apontasse para mim. — Esse borrão aqui é você. Certo?

—Isso.

Abaixou a mão, e continuou me olhando.

—Você tá abraçado no travesseiro? — perguntou, com um tom de surpresa.

Eu não havia reparado, mas havia pegado o travesseiro e colocado entre meus braços, numa tentativa de me sentir mais seguro, ou, pelo menos, não tão assustado.

Fiquei envergonhado assim que ele perguntou, e coloquei o travesseiro no lugar.

Zero soltou uma risada.

—Eu consigo ver você colocando o travesseiro de volta, Eros. Foi só uma pergunta. Na verdade, eu acho fofo que você dorme abraçado no travesseiro — comentou.

Eu quase engasguei.

O sono estava deixando Zero ousado demais, era a única possibilidade.

—E-eu… Hum… — gaguejei. Eu não era de ficar com vergonha, e muito menos de gaguejar. Fiquei quase com raiva por ele ter me deixado sem graça. —Enfim, eu não falo dormindo — disse, desesperadamente tentando mudar de assunto.

—Eros, você fala mais dormindo do que acordado. E olha que acordado você já fala demais.

Dei de ombros.

—É sua culpa por ouvir — respondi. — Você nunca dorme — comentei.

Zero se cobriu, como se tivesse lembrado de repente que precisava dormir.

—É. Dormir é difícil. É fácil ignorar a dor de dia e seguir fazendo as coisas, mas de noite… — suspirou. — De noite, parece que tudo é desconfortável. Você também não foi dormir ainda — reparou. — E olha que você dorme pra caramba.

Eu me encolhi, lembrando do motivo de estar acordado.

—Só tô um pouco agitado, acho.

Assustado era a palavra certa, mas eu não queria usá-la.

—Uma bela dupla — Zero comentou. — Super Insônia e Hiper Ativo.

Soltei uma risada incrédula.

—É sério que você é do tipo de piada de tiozão?

Ele riu de volta.

—Não é uma piada de tiozão — se defendeu. — E você tá rindo, não tá? Logo, opinião invalidada.

—Boa noite, Zero — murmurei, virando para o outro, ainda com um pequeno sorriso no rosto.

Eventualmente, o sono chegou e eu consegui dormir. De manhã, acordei exausto, como se estivesse de ressaca. Eu definitivamente não estava acostumado a dormir mal.

Coloquei a blusa do uniforme amarrotada mesmo e nem penteei o cabelo. Zero deu uma olhada de lado e me disse que sabia onde ficava o melhor café do campus.

Tínhamos uma variedade de restaurantes disponíveis lá, além da comida oferecida pelo próprio Instituto. Eu nunca tive paciência de comer em outros lugares, mas fui com ele até o refeitório do outro prédio. Era esquisito estar sozinho com ele fora do dormitório, e todo mundo que me conhecia e nos via andando juntos, olhava duas vezes, provavelmente para conferir se não estávamos brigando. Não estávamos.

Estávamos implicando um com o outro, como o normal, mas era diferente. Agora era mais como uma brincadeira entre amigos.

Tomamos café juntos, e então fomos para nossas respectivas aulas.

—Eu nunca vou me acostumar com isso — foi a primeira coisa que Alice disse ao me ver.

A encarei, confuso.

—O quê?

—Você e Zero. Passei lá e vocês tavam sentados juntos rindo.

Dei de ombros.

—Acontece.

—Vocês dariam um ótimo casal.

Derrubei meu livro no chão sem querer, assustado com a declaração absurda.

—O quê? Não, não. O Zero é insuportável. E a gente não nada a ver.

Alice segurou uma risada. A aula não havia começado, mas o professor estava em sala e quase todos os alunos haviam chegado.

—Bom, eu comecei a conversar com ele recentemente — ela disse, — por causa de você, inclusive. E tudo o que eu tenho a dizer é que vocês são iguaiszinhos. Os dois são muito inteligentes, perigosamente orgulhosos e definitivamente irritantes.

Dei de ombros.

—Isso só prova meu ponto que não daríamos nada certo juntos.

—Bom, vocês parecem estar se dando bem, foi o que eu quis dizer. Mas é aquele ditado, né? Uma loucura completa a outra — concluiu.

A observei, incrédulo, mas apenas balancei a cabeça e fomos prestar atenção na aula. Quando fomos fazer uma atividade prática, reparei que o rascunho do garoto que Alice havia desenhado parecia com Davi, o cabelo corte militar e postura firme.

Fiquei receoso de perguntar, mas perguntei mesmo assim.

—É, é ele — confirmou. — É só… confuso. Eu não sei se fico brava porque ele me abandonou, se fico triste por imaginar que pode ter acontecido algo ou… não sei. Ele é uma grande interrogação agora. Eu só… eu queria respostas, sabe?

Eu entendia. Sabia exatamente a sensação de perder alguém, de se perguntar sobre a verdade.

Eu havia decidido que não contaria a ela sobre o que fizeram com meus quadros, ou sobre o que escreveram. Não queria a envolver, não seria justo. Mas, ao mesmo tempo, sentia que ela merecia saber e a culpa estava me consumindo.

Pensei sobre aquilo todo o resto do dia. Tentei fingir que não havia nada de errado, mas eu só era bom em mentir para pessoas as quais eu não me importava. E eu definitivamente me importava com Alice.

Por isso, antes que ela tivesse tempo de perguntar qualquer coisa, assim que acabou o último tempo de aula, fui direto para o quarto.

Peguei meu caderno de rascunhos e comecei a rabiscar coisas aleatórias. Se, durante as aulas, eu precisava ser pragmático e certeiro, me preocupar com harmonia, proporção, e todas essas coisas, meu caderno de rascunhos era onde eu deixava minha criatividade fluir. Minha paixão por desenhar ou pintar havia diminuído exponencialmente com os anos, porque eu não sabia como me preocupar com todas aquelas regras e ao mesmo tempo fazer arte que parecesse comigo. Que tivesse minha cara, meu estilo.

Rabisquei por um tempo até que Zero chegou, parecendo cansado, se empurrando na cadeira com dificuldade.

—Eros? — me chamou, e levantei o olhar até ele. — Por que meu professor de física experimental veio me perguntar se eu era seu colega de quarto?

Fiquei confuso com a pergunta por alguns segundos, mas logo entendi de quem se tratava.

—Qual o nome? Do professor.

Zero deitou na cama e fechou os olhos.

—Hugo alguma coisa...— murmurou, e logo depois bocejou.

Suspirei, frustrado.

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—Da próxima vez que ele te perguntar, fala que eu morri.

Zero abriu os olhos e me olhou, confuso. Reparei que ele não havia nem tirado os óculos.

—Então… — falou, baixo. — Acho que tarde demais, eu meio que dei o número do dormitório pra ele. Ele disse que ia vir aqui daqui a pouco.

Joguei o caderno para o lado.

Merda!

Zero murmurou algo e depois disse:

—Você pode, por favor, falar baixo?

Olhei para Zero encolhido, e segurei meus instintos de reclamar sobre ele ter contado para Hugo onde eu estava. Eu tentava não ser tão babaca quando via que ele estava num dia ruim, mas ultimamente tinha perdido um pouco o sentido. Geralmente eu sempre soltava algum comentário maldoso no impulso, por raiva. Mas eu não estava sentindo mais raiva. Não por ele, pelo menos.

Voltei a rabiscar no caderno, mas logo fui interrompido por Hugo, meu irmão mais velho, entrando pela porta sem nem bater antes. Ele usava uma blusa social branca e seu cabelo loiro era raspado, ao contrário do meu. Eu não o via tinha, pelo menos, alguns meses.

—Leonardo, você sabe que não vai conseguir me evitar para sempre, né? — falou, sem nem um “oi” antes. Fechou a porta atrás de si e manteve a mão na maçaneta.

—Infelizmente.

Meus músculos se tensionavam de raiva reprimida apenas de vê-lo. Ele ainda não havia nem falado algo de errado ou ofensivo, mas estar perto dele era estar sempre à espera de uma bomba.

—Então é assim? Você não volta pra casa nos finais de semana, ignora as ligações do nossos pais, foge de mim? E pra quê? Por quê?

Revirei os olhos.

—Se fazer de idiota é exatamente a sua cara, Hugo. O que você quer? — perguntei, então apontei com o cotovelo para Zero, que estava enrolado na coberta e parecia estar dormindo. — E fala baixo.

—O que eu quero?! Explicações, Leo. Só isso. Luciane me falou que você se meteu numa briga, e praticamente fugiu em outra ocasião. Você tá ficando maluco, garoto? Quer acabar como seu querido irmão Henrique que você ama tanto? Expulso do colégio, de casa, e o que mais?

A imagem de Henrique, gêmeo de Hugo, passou pela minha cabeça, e eu senti que todo meu corpo começou tremer.

—Por que você tem que trazer o nome dele pra toda maldita conversa?— reclamei.

Percebi que estava aumentando o tom de voz, mesmo sem querer.

—Eu só to te mostrando o que vai acontecer se você continuar fazendo merda, Leo. Só isso. Você é inconsequente demais, e sabe onde isso vai te levar. Exatamente onde levou a-

—Cala a boca! — gritei.

“Você vai acabar que nem seu irmão” era a ameaça mais recorrente na nossa família. Geralmente mencionavam Henrique, como exemplo de completamente destruído, ou Wendy, como exemplo de morta. Eles não passavam disso para eles: exemplos ruins. Não pessoas, seres humanos, membros da mesma família. Apenas exemplos do que não fazer.

—Você sabe o quanto a mãe o pai estão pagando nos seus remédios pra você não dar ataque de bichinha de novo. Pelo menos finge que tá grato. Eles fazem tudo por você, Eros. E como você retribui? Arrumando encrenca, sendo ruim em absolutamente tudo que você precisa fazer, entrando nesse curso horrível que não vai te dar futuro nenhum, e ainda por cisma nessa coisa de querer beijar homem.

Na minha mente, eu ia até ele e o batia até que meus punhos doessem. Mas tudo que eu consegui fazer foi ficar ali parado, tremendo, com raiva. Todas as vezes que nos víamos, ou que trocávamos mais de duas palavras, sempre acabava com ele me humilhando da mesma forma. E, de alguma maneira, sempre tentando fazer parecer que estava falando aquelas coisas para o meu bem.

O olhar de Hugo se desviou de mim para Zero, que nos observava brigando em silêncio, mas com os olhos assustados como se quisesse sair dali.

—E quem é esse? — Hugo perguntou.

Zero olhou para mim, e para Hugo novamente, como se não soubesse o que dizer.

—Meu colega de quarto. Seu aluno. Tem como você se retirar, por favor? — pedi, cansado das besteiras de Hugo.

—Colega de quarto, hein? Eu me lembro do último. Esse aqui é seu namorado também? Você transa com esse também, hein?

Hugo deu um passo em direção a Zero. Eu levantei rapidamente e me posicionei na frente, o empurrando.

—Se você pensa que vai vir aqui, me xingar e falar mal de pessoas as quais eu me importo e que eu não vou quebrar a sua cara porque você é meu irmão ou porque você é professor, você tá muito errado! — gritei, finalmente explodindo.

Ele soltou uma risada irônica, mas deu um passo para trás.

—Eu já tava de saída, de qualquer forma. Eu só vim te dizer que é pra você ir pra casa esse final de semana. Deixar de ser esse egoísta ingrato e ir ver seus pais que tão te sustentando.

—Eu não vou — murmurei.

—Você vai. Não é um pedido — foi a última coisa que disse antes de sair pela porta.

Eu demorei alguns segundos ali parado, fora do ar, tentando processar o que exatamente tinha sido aquela briga.

—O que acabou de acontecer? — Zero murmurou. — Seu irmão… eu…

Até ele, que havia apenas presenciado, parecia tão confuso quanto eu.

—Você tá bem? — foi a pergunta que Zero fez.

A resposta ecoou bem clara na minha cabeça. Não.

Não, eu não estava bem. Ouvi o barulho novamente, como se um trem estivesse passando do meu lado, mas dessa vez ele continuava, ficando mais alto.

Sentei no chão, encostado na cama, e comecei a chorar. Não sabia se estava chorando de raiva, de medo, ou se apenas queria que aquilo parasse.

Senti Zero se aproximando e sentando do meu lado, falando algo, mas mal consegui entender o que ele havia falado.

Quanto mais eu chorava, mais minha garganta doía. Era como se eu estivesse literalmente sendo enforcado.

Me lembro vagamente de Zero colocando o braço no meu ombro e pedindo para eu olhar para ele. Me pedindo para respirar. Não sei quanto tempo fiquei ali, encolhido, hiperventilando. Zero continuava falando coisas que eu não conseguia entender, mas focar na voz dele, de certa forma, me ajudava.

Aos poucos, minha visão borrada foi voltando ao normal, e o choro foi parando. Me encolhi, exausto, o coração ainda acelerado.

Zero estava sentado do meu lado, me olhando preocupado.

Fiquei encolhido por um tempo, até que eu soubesse que não ficaria nervoso novamente se tentasse falar.

—Zero? — chamei. Ele apenas me olhou, esperando que eu continuasse a frase. — Eu realmente… eu… obrigado.

Ele ficou em silêncio por alguns segundos, apenas me olhando, como se pensasse em algo para falar.

—Você me ajudou aquele dia — comentou. — Acho que estamos iguais então, certo?

Passei as mãos trêmulas pelo meu rosto, secando as lágrimas.

—Eu acabei de ter uma crise de pânico na sua frente — murmurei. — Você pode me falar algo constrangedor sobre você pra eu não me sentir envergonhado sozinho?

Zero levantou uma sobrancelha, a sombra de um sorriso confuso aparecendo.

—Essa é uma estratégia esquisita. Mas tá, deixa eu pensar em algo. Você não vai usar isso contra mim, né?

Levantei o rosto e olhei para ele, as lágrimas ainda escorrendo, e eu tinha certeza que meus olhos deveriam estar inchados e vermelhos.

—Zero, olha meu estado. Parece que eu to em condições de jogar algo contra alguém? — falei, e logo depois soltei uma risada nervosa.

Zero pensou por uns segundos e depois disse:

—Eu trocava minhas próprias fraldas.

Eu não consegui segurar o riso ao ouvir uma frase tão inusitada.

—Espera. O quê? Eu tô mais confuso do que tudo. Isso é você se gabando de ter sido uma criança incrível que trocava as próprias fraldas ou…?

Zero deu de ombros.

—É meio engraçado, eu sei. Mas o que eu quis dizer foi que, desde os meus, sei lá, dois anos, eu tive que aprender a trocar as minhas próprias fraldas porque, se eu dependesse da minha mãe, nada ia acontecer. Ela tinha 17 anos quando eu nasci. Eu trocava minhas próprias fraldas e, assim que consegui, fazia minha própria comida, e aplicava insulina sozinho. Isso pode parecer que eu tô te falando “ei, olha como eu sou independente”. Mas não é isso — ele pausou por uns segundos, olhando ao redor do quarto, e depois para mim novamente. — O que eu tô dizendo é que… eu nunca tive ninguém na minha família que se importasse. Então, mesmo que de maneiras diferentes, eu entendo um pouco como é ter uma família meio merda.

Aquilo era estranhamente reconfortante de ouvir, não pelo fato de eu não ser a única pessoa ali a ter tido uma infância ruim, mas pela sensação de não estar sendo julgado, de que ele entendia.

E ver Zero ajudando a me acalmar, e logo depois contando algo possivelmente bastante pessoal para mim, mesmo depois de eu ter passado quase um ano infernizando a vida dele foi o que me fez perceber que ele era uma pessoa boa.

E que no fundo eu sabia que ele era. Que eu tinha inveja do que ele representava, o primeiro lugar que eu nunca havia conseguido alcançar. Que, se tivesse uma classificação para pessoas boas, genuinamente boas, ele ocuparia o primeiro lugar também.

Lembrei de Alice, desenhando Davi.

—Zero? — chamei. Ele estava distraído, mas logo me olhou. — Você acha que a gente consegue achar o Davi?

Ele pareceu confuso.

—Por que isso do nada?

Suspirei, frustrado.

—Se a gente conseguir achar ele, ou fazer alguma coisa, qualquer coisa, que seja útil pra o achar… então talvez essa seja minha chance de se redimir com o mundo.

Zero pensou por uns segundos.

—Eu tenho algumas teorias do que a gente pode fazer. Mas minha cabeça tá explodindo, e eu acho que você também precisa dormir um pouco.

Concordei com a cabeça, consciente do quão cansado eu estava.

—Aliás… — Zero continuou. — Eu não to falando isso pra te ofender ou algo do tipo, mas eu quero deixar registrado que a psicóloga do Instituto é muito boa. Ela me disse que não te conheceu ainda, uma vez.

—Você tá discretamente mandando eu fazer terapia? — perguntei.

—Eu só tô dizendo que pode te ajudar.

Eu queria fazer alguma piada estúpida do tipo “tá bom, mãe”, mas eu só consegui pensar que ele estava certo.

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—Eu vou, algum dia desses — foi o que eu disse.

Ajudei Zero a voltar até a cama, e então apaguei a luz e fui dormir também.

No outro dia, combinamos de nos encontrar na sala de cinema assim que as salas fechassem, escondidos, para conversar sobre o que sabíamos até agora sobre Davi. Aquele lugar era o único lugar que tínhamos certeza que absolutamente ninguém podia nos ouvir.

Eu levei um balde de pipoca e Zero levou um quadro branco.

—Pipoca? Sério?

Dei de ombros.

—Eu tô com fome ué. Pra que esse quadro?

—Reunir informações.

—Tá, você que sabe.

Zero pendurou o quadro num prego que achamos em uma das paredes, e eu sentei de lado em uma das cadeiras vermelhas. Antes que eu pudesse falar qualquer coisa, Zero começou a me contar tudo que ele havia reunido, o que me fez reparar que ele estava pensando sobre aquilo bem mais do que eu imaginei.

—Eu não sei nada sobre desaparecimentos — disse, e eu o interrompi:

—Ótima forma de começar.

—Posso continuar? — e esperou uns segundos até que eu concordasse com a cabeça. — Mas eu sei que certamente Davi não saiu porque ele quis. Alguém nos ameaçou porque fomos até a delegacia, não tem confirmação maior do que essa de que nada disso é coincidência. Na última vez que eu o vi, parecia tudo normal. Eu penso naquele dia de novo e de novo e não vejo nada de anormal.

—Ele tinha brigado com a Alice — comentei.

—Ele não parecia chateado. E Davi amava esse lugar. Eu acho que a gente já passou da fase de acreditar que é tudo uma grande coincidência. Eu só… — Zero falou, gaguejando. — Eu só espero que ele esteja vivo.

—Eu também — murmurei.

—Mas o que a gente sabe até agora é quem quer que tenha sumido com ele, sabe que fomos até a delegacia.

—E conseguiu acesso ao nosso quarto.

—Ninguém entra e sai daqui sem ser os alunos. Provavelmente foi alguém daqui — Zero concluiu. — Tem que ser.

—É — concordei. — Mas isso não explica porque a polícia apenas descartou o caso daquela forma.

—Alguém influente. Talvez com dinheiro para subornar? — Zero sugeriu. Então pensou por mais uns segundos. — A gente pode fazer uma lista de pessoas que teriam algo contra Davi, e outra de pessoas que teriam fácil acesso ao nosso dormitório, e depois tentar cruzar as duas listas.

Concordei, mas, depois de 15 minutos tentando formar listas, concluímos que não sabíamos o suficiente. Eu conhecia quase todo mundo desse Instituto e, mesmo assim, não conseguia pensar em ninguém que pudesse ter alguma briga com Davi.

Decidimos discretamente perguntar a Alice e Diana.

—Zero, eu tenho uma ideia — falei, baixo. — Mas você não vai gostar dela.

Ele fechou a expressão, desconfiado.

—Você nem falou e eu já não gosto.

Joguei o cabelo atrás da orelha, já antecipando a reação de Zero.

—Você lembra daquele homem que você viu quando fomos até a delegacia? O que estava na janela.

—Lembro. Onde você quer chegar?

—Você não achou estranho a forma como ele estava nos observando?

Zero concordou.

—É, mas… ele pode não ter nada a ver com isso tudo.

—A gente pode descobrir. Indo até lá de novo— falei, finalmente expondo minha ideia.

Zero arregalou os olhos.

—Você quer dizer propositalmente se colocar em perigo?

Desviei o olhar.

—Quando você fala assim…

Zero parecia nervoso, as sobrancelhas juntas e os lábios apertados.

—Você vai até lá. Chega no cara. E aí? Pergunta educadamente pra ele se ele conhece um tal de Davi que desapareceu? Na melhor das hipóteses, ele não sabe de nada, e perdemos tempo. Na pior, ele tá envolvido, e aí sabe se lá o que acontece com a gente.

Me encolhi, sentindo como se estivesse levando uma bronca.

—Você não precisa ir comigo. Pode ficar, tipo, no telefone, que nem aquelas duplas de filme de super herói, sabe? Onde um fica na parte segura orientando o outro.

Zero ainda assim parecia relutante.

—De jeito nenhum, não. Isso não é um filme de super-herói, Eros. Eu espero que você saiba que qualquer coisa que a gente fizer, já estamos arriscados nossas vidas. Você leu o bilhete. Viu o que fizeram com nosso quarto. Não precisamos nos colocar em mais perigo do que já estamos.

Ficamos em silêncio por alguns segundos, a tensão se espalhando pelo ar. Éramos essencialmente muito diferentes, o que poderia nos tornar uma ótima dupla ou uma muito ruim, e continuávamos oscilando entre os dois.

Zero pegou o quadro branco, apagou tudo que estava nele, e o tirou da parede. Deu um suspiro frustrado e apenas disse:

—Isso não tá levando a lugar nenhum. Vamos apenas voltar para o quarto. Depois a gente conversa de novo.

Zero manteve a cabeça baixa, e seus olhos estavam distantes. Me lembrei que eu estava fazendo isso pela Alice, porque eu queria fazer a coisa certa, porque queria ajudar. Mas que Zero estava tentando achar o amigo, e que aquilo era provavelmente muito pior para ele do que para mim. Se eu me sentia impotente diante daquela situação, mesmo não sendo pessoalmente apegado a Davi, mal conseguia imaginar com Zero deveria estar se sentindo.

—Zero? — chamei, e ele me olhou na defensiva, como se esperasse que eu fosse falar algo agressivo. — A gente vai achar ele. Vai dar tudo certo.

Ele me olhou por uns segundos, pego de surpresa. Então sua expressão se suavizou num meio sorriso quase que agradecido.

E eu me arrependi imediatamente das minhas palavras.

Assim que saímos da sala de cinema, todas as luzes dos outros corredores estavam acesas. Era quase meia noite, mas haviam pessoas andando por todos os cantos. Quando perguntei, disseram que haviam marcado uma reunião de emergência no auditório.

Estávamos todos tensos, nos perguntando qual seria o motivo de termos sido chamados até lá. Quem estava em pé no palco do auditório não era Luciane, quem normalmente dava os avisos, mas sim o diretor, Fábio. Quase nunca o víamos, e foi assim que soubemos que o assunto era sério. Não se ouvia um barulho no auditório, talvez pelo sono ou pela tensão que aumentava.

Fábio pegou o microfone, e começou.

—É com muita tristeza que viemos aqui informar a morte de um de nossos queridos ex-alunos, Davi Barros Andrade, do curso de física. Ele foi encontrado morto em sua própria casa, depois de ter previamente desistido de sua vaga aqui no Instituto Newton. A causa da morte foi declarada como suicídio. Desejamos nossas condolências a todos e, em respeito ao luto, todas as atividades dos próximos dois dias estão canceladas.