Amarelo- Lírio e Fogo Azul

Capítulo 9- Eros


Eros

O silêncio reinava no auditório, o choque da notícia se espalhando aos poucos enquanto percebíamos, um de cada vez, que uma pessoa havia morrido. Uma pessoa que conhecíamos- e que muitos apreciavam. Ninguém disse uma palavra pelo que me pareceu uma eternidade.

Aos poucos, começaram os sussurros, vindo especialmente dos alunos de física, amigos de Davi. Eles falavam avidamente entre si e não demorou muito para que todos começassem a murmurar coisas, dividindo suas opiniões e reações. O diretor apenas avisou que a psicóloga do Instituto estaria disponível na sala dela, apesar do horário, guardou seu microfone e saiu do auditório. Algumas pessoas foram saindo logo em seguida, mas a maioria ficou.

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Foi quando o choque começou a desaparecer, e meu cérebro se concentrou o suficiente para pensar em fazer alguma coisa. Precisava achar Alice.

Olhei ao redor, procurando as tranças coloridas da garota, mas não a vi. Alice era alta, então, se estivesse em pé, eu teria visto. Foi quando a vi, de longe, no último banco, sentada olhando para frente, respirando forte como se fosse começar a chorar, mas sem nenhuma lágrima. Do lado dela, três garotas do nosso curso que eu conhecia só de nome falavam coisas baixo como se tentassem a acalmar.

Eu pensei duas vezes antes de ir até lá, com medo de ser inadequado, mas fui de qualquer forma. Era o mínimo que poderia fazer.

Passei pelas duas garotas e, antes que eu pudesse sentar, Alice correu até mim e me abraçou, se afastando das meninas como se já estivesse querendo sair dali.

—Alice, eu sinto muito. Eu… — suspirei, confuso. — Eu nem sei o que falar.

Ela me abraçou mais forte, agora chorando. De certa forma, eu me sentia quase que satisfeito por ela ter deixado as outras pessoas de lado e ter vindo buscar conforto comigo. Eu e Alice tínhamos uma amizade que, na maioria das vezes, era restrita a ambientes de aula, então eu constantemente sentia que talvez ela realmente não gostasse de mim tanto assim.

—Vamos sair daqui antes que aquelas meninas me deixem doida — murmurou, se afastando e limpando o rosto.

Enquanto andávamos, Alice entrelaçou o braço no meu e foi andando devagar, o rosto encostado no meu ombro. Fomos até um dos pátios, onde tinham uns bancos, e sentamos. As pessoas ainda estavam circulando, indo para seus dormitórios e algumas saindo. Não ter aula significava que poderíamos ir para casa, o que eu definitivamente não faria.

Alice me disse que aquilo não parecia real. Que não entendia o porquê de estar acontecendo e que não sabia por que ele se mataria, e porque deixaria ela sozinha.

Eu conhecia a sensação de perder alguém. Talvez por isso estava me sentindo tão impotente naquela situação. Eu sabia que, não importava o que eu dissesse, não ajudaria, não tornaria a dor melhor. Apenas fiquei ali, a ouvindo por um tempo, até que ela disse que iria para casa.

—Eu acho que preciso passar um tempo longe daqui. Talvez volte só semana que vem, não sei.

—Tudo bem. Você sabe que pode me ligar sempre que quiser, né? Mesmo se for horário de aula, não importa. Se precisar conversar, é só me ligar.

Ela concordou, e agradeceu. Logo depois saiu, e eu fiquei ali no banquinho, observando as pessoas ao meu redor. Vi uns amigos de Davi passando no outro corredor, e sabia que eles eram colegas de Zero também, mas ele não estava com eles.

Vi Erick passando, e ele foi até mim assim que me viu. Sentou do meu lado, parecendo assustado.

—Você conhecia aquele garoto? — perguntou.

Concordei com a cabeça.

—Mais ou menos. Mas sim, conhecia.

Erick suspirou, sonolento.

—É esquisito, não é?

—É.

—Você vai pra casa? — perguntou.

—Não. Você quer ir?

Ele negou com a cabeça, mas parecia chateado com algo.

—Hugo falou que era pra gente ir pra casa.

O olhei, uma raiva repentina passando por mim.

—Ele falou com você também? Ele te tratou direito?

Erick deu de ombros.

—Não. Mas é o Hugo, né? Eu não esperaria outra coisa.

—Lelo, quando ele for falar com você, não deixa ele entrar. Tranca a porta, sei lá. Você sabe que a melhor forma de lidar com Hugo é ignorar. E se ele fizer alguma coisa com você, me fala que eu arrebento a cara dele.

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Erick desaprovava da forma que eu lidava com as desavenças que ocorriam entre os irmãos, mas eu também não gostava da forma com que ele quietamente obedecia e fazia tudo que os mais velhos mandavam.

—Você tem que parar de se meter em briga — ele disse.

—Eu me meto é em briga de menos, já deveria ter batido no Hugo há muito tempo.

Erick deu um pequeno sorriso solidário. Entre os oito irmãos, éramos como se fossem divididos em grupos. Eu, Erick, Wendy e Fernanda, a mais velha, nos dávamos muito bem, enquanto que Hugo, Gabriel e Victor, que também eram muito próximos entre si, não se davam nem um pouco bem com o resto de nós. Especialmente por Hugo, Gabriel e Victor pensarem que são melhores que todos. Eu me conhecia o suficiente para saber que sou um tanto egoísta, mas eles definitivamente me superavam nesse quesito. Uns completos babacas.

E aí tinha Henrique, gêmeo de Hugo, que é algo como um meio termo. Ou era, antes de tudo acontecer, mas pensar nele me deixava nervoso, então afastei o pensamento.

Decidi voltar para o quarto, antes que Hugo me achasse e resolvesse ir reclamar sobre não estarmos indo para casa.

Era de madrugada já, e eu esperava encontrar Zero deitado na cama, ou pelo menos ali, mas nosso dormitório estava vazio. Talvez ele tivesse ido para casa também, embora ele sempre fique por aqui nos finais de semana.

Aos poucos, quem iria embora já tinha ido, e os dormitórios estavam ficando silenciosos novamente. Deixei a luz acesa, e me revirei na cama, tentando dormir, mas não conseguia parar de pensar que eu e Zero poderíamos ter impedido aquilo. Que falhamos. Eu me sentia, de alguma forma, diretamente culpado. Desejei que Zero estivesse ali. Ele era a única pessoa que eu sabia que poderia confiar em relação aquilo. Talvez ele estivesse se sentindo tão culpado quanto eu.

Fiquei alguns minutos tentando ignorar todos aqueles pensamentos e simplesmente dormir. Mas, quanto mais silêncio fazia, mais minha mente se acelerava. Senti como se fosse ter outra crise, e rapidamente me lembrei de Zero falando sobre a psicóloga do colégio. O diretor falou que ela estaria na sala dela, talvez eu devesse ir até lá. Mas falar o que?

Era besteira. Eu já havia ido a psicólogas antes, especialmente depois do que aconteceu com a Wendy, mas eventualmente senti que estava sempre voltando aos mesmos lugares, ouvindo as mesmas coisas sem realmente fazer progresso algum, e aí desisti. Mas, naquele momento em específico, eu precisava conversar com alguém ou explodiria.

Resolvi dar uma chance a ideia.

Prendi o cabelo e fui andando até a sala da psicóloga, observando as luzes dos corredores acenderem enquanto eu passava.

A sala dela continha uma espécie de sala de espera com cadeiras, e um consultório atrás de uma porta de vidro. Eva estava sentada na sua mesa anotando algo. Ela tinha cabelos pretos longos e parecia ser bem nova, tão nova que eu já havia a visto pelos corredores e apenas assumi que era mais uma aluna. Assim que me viu, ela anotou mais algumas coisas e sinalizou para que eu entrasse.

Sentei, desconfortável, em silêncio. Ela abriu um sorriso simpático.

—Então eu finalmente vou conhecer o famoso Leonardo?

Ergui uma sobrancelha.

—Famoso?

—Bom, você é um dos únicos alunos daqui que eu não conversei ainda. Eu imaginava que, com uma notícia repentina dessas, alguém com certeza apareceria, mas estou surpresa de ver que é você.

Dei um sorriso sem graça.

—É. Também tô surpreso.

—Algum motivo especial?

Parecia uma pergunta estúpida.

—Uma pessoa morreu. Isso não é motivo o suficiente? — respondi, sendo um pouco mais grosso do que pretendia. A expressão dela não se alterou.

—Eu acho que você entendeu o que eu quis dizer, Leonardo. Posso te chamar de Leo?

Concordei com a cabeça, e ela continuou:

—Vocês eram amigos?

—Não — falei, sem pensar duas vezes, mas logo depois notando o quão frio aquilo parecia. — Não exatamente. Ele é namorado de uma amiga minha. Era.

—Alice? — perguntou.

—É. Alice já veio aqui?

—Algumas vezes. E você, como está se sentindo? Imagino que não muito bem, visto que é a primeira vez que te vejo em quase dois anos desde que entrou aqui.

Eu olhei para a sala, analisando as decorações e o sofá, em silêncio. Eu não poderia contar para ela sobre o bilhete e sabia que seria estupidez contar sobre as teorias de Zero. Mas algo não parecia certo sobre ele ter se suicidado.

—Eu não entendo — falei, por fim. — Não entendo porque ele se matou.

—Muitas vezes, é difícil notar quando alguém está sofrendo ou tendo pensamentos suicidas.

—É — concordei, lembrando de como eu pessoalmente havia dominado a arte de fingir que estava bem. — Mesmo assim… algo parece estranho. Sei lá. Eu queria saber como ser útil para Alice, porque ela certamente deve tá precisando de um amigo agora, mas eu simplesmente travo quando o assunto é a morte de alguém. Eu não sei lidar com essas coisas.

Percebi que havia falado mais do que queria, e que minhas mãos tremiam levemente. Por algum motivo, todo aquele clima me lembrava de quando Wendy morreu, e não eram lembranças boas.

—É difícil lidar com a morte, Leonardo. Ninguém realmente sabe como. Você já perdeu alguém? — perguntou, e eu notei um certo toque cínico na pergunta, que me irritou.

—Como se todo mundo nesse Instituto já não soubesse do que aconteceu com a minha irmã.

—Isso não responde minha pergunta.

Bufei.

—Você tá fingindo que não sabe só pra me fazer falar?

—Eu só fiz uma pergunta, Leo, você não precisa se sentir pressionado. Você disse que todo mundo sabe o que aconteceu. Já que todo mundo sabe, não tem problema me contar, não é?

Cruzei os braços.

—Eu não quero falar sobre isso.

Ela olhou ao redor.

—Esse é exatamente o lugar pra falar sobre isso. Você deve saber que tudo que você me contar é confidencial e que eu tô aqui especialmente pra te ajudar.

Me remexi no sofá, desconfortável. Eu duvidava que ela conseguiria me ajudar. Duvidava que qualquer pessoa conseguiria me ajudar. Era inútil falar sobre.

—Ela morreu, só isso — falei, mas reparei pelo silêncio que Eva estava esperando que eu continuasse a contar. Esperei alguns segundos para ver se ela falava algo, mas desisti. — Wendy tinha 12 anos. Uma criança. Acho que a vida realmente não é justa, hein? — disse, e soltei uma risada nervosa, desconfortável.

—Quantos anos você tinha?

—16.

—E o que aconteceu?

Me irritei novamente.

—Você pode, por favor, parar de fingir que não sabe? Eu sei que todos os professores sabem e assumo que, sendo a única psicóloga do Instituto, você saiba também.

Ela concordou, finalmente cedendo.

—Sim. Quando você entrou aqui, o diretor nos chamou para conversar sobre o que tinha acontecido. Confesso que eu esperava que você fosse rapidamente vir até mim, mas aqui estamos, quase dois anos depois.

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Dei de ombros.

—Por que eu viria? Eu não acho que você possa me ajudar.

—Eu também acho que não posso te ajudar a não ser que você colabore.

Respirei fundo, lembrando da pergunta inicial. “O que aconteceu? ”

Tentar pensar sobre fazia meu corpo todo reagir, como se eu estivesse correndo perigo.

—Eu não consigo lembrar — murmurei. — Do que aconteceu exatamente. Eu só sei o que me contaram.

—Às vezes, em situações traumáticas, o cérebro bloqueia as informações. Mas, se você quiser, tem algumas maneiras que eu posso tentar te ajudar a se lembrar. Tá de madrugada, e a gente não tem muito tempo, mas você pode voltar aqui e…

—Não — a interrompi, antes que ela continuasse. — Eu não quero lembrar.

—Leonardo, eu entendo. Mas já fazem 4 anos. Lembrar é o que vai te fazer processar esse trauma para você poder seguir em frente. É importante que…

—Eu disse que não! Isso não tá funcionando. Eu vou embora — falei, levantando e saindo pela porta antes que ela pudesse falar qualquer outra coisa.

Só refleti o suficiente na minha própria reação impulsiva depois que já estava voltando para o dormitório, um formigamento esquisito passando pelo meu corpo.

Apenas a ideia de lembrar dos dias que eu e Wendy passamos presos no depósito me deixava enjoado. Eu não entendia porque deveria lembrar. A simples sugestão de que alguém pudesse me ajudar a realmente lembrar já me deixou ofendido.

Fui respirando fundo algumas vezes, contando até dez como fazia de vez quando ao ver que precisava me acalmar. A única luz acesa além da dos corredores era a da biblioteca, que costumava ficar aberta de madrugada graças a alunos desesperados que iam estudar para provas na noite anterior A bibliotecária estava quase dormindo encostada no balcão e o lugar aparentava estar vazio. No fundo da biblioteca, em uma das últimas mesas, consegui ver uma cadeira de rodas e uma parte do cabelo bagunçado de Zero, sentado de costas para a porta.

Não pensei duas vezes antes de ir até lá. Entrei devagar e fui direto até a mesa onde Zero estava. Sentei na cadeira do lado, mas ele mal me olhou, os olhos azuis focados no caderno e nos livros que estavam abertos ao seu redor.

—Oi — falei, na esperança de que ele notasse minha presença. Nada. Ele estava propositalmente me ignorando?

Respirei fundo, tentando me lembrar que ele provavelmente deveria estar choque ou algo do tipo.

— Como você tá? — perguntei, tentando deixar minha voz o mais gentil que consegui.

Ele me olhou, nervoso, virando a página do caderno com raiva.

—O que você quer? — disse, agressivo.

A resposta me pegou de surpresa.

—Nada, eu... — me perdi nas minhas próprias palavras. — Quis ver como você tava, só isso.

Ele bufou e voltou a olhar para a mesa. Reparei que os livros estavam abertos cada um em uma matéria diferente, e seu caderno estava cheia de contas, que ele fazia rapidamente. Também reparei o copo de café vazio do lado.

—Zero, tá de madrugada… — falei, baixo. — Por que você não termina isso amanhã?

Era, de certa forma, doloroso vê-lo dirigir sua atenção para os cálculos ao seu redor de maneira tão urgente, as mãos tremendo um pouco. Eu sabia exatamente como era querer tão desesperadamente esquecer algo que você foca em qualquer coisa menos aquilo.

—Você veio só pra me atrapalhar, então? — ele disse.

Seu tom era agressivo, ao contrário do tom brincalhão e irônico que ele tinha quando brigávamos normalmente.

Por algum motivo, eu estava levemente decepcionado.

—Só… eu realmente acho que se enfiar em estudo não é a maneira mais saudável de lidar com uma perda — falei, baixo, me arrependendo das palavras assim que elas saíam da minha boca. Eu não sabia porquê estava insistindo depois de ele ter sido grosso comigo uma vez.

Ele me olhou novamente, com raiva. Eu me sentia esquisito, como se tivesse feito algo de errado, mas não conseguia identificar o quê.

—Eros, você não entendeu ainda que eu não quero falar com você?

Estalei a língua, desistindo.

—Tá. Tanto faz, nem sei por que eu me importei, de qualquer forma — resmunguei, levantando e saindo.

Fui até o quarto, irritado. Apaguei a luz e fui dormir, ignorando completamente o fato de Zero ainda estar na biblioteca.

Também não o vi no dia seguinte. O colégio estava todo parado, não haviam aulas ou nenhuma outra atividade. Alguns alunos estavam aproveitando para estudar e a maioria dos alunos de artes estavam reunidos nas salas onde podíamos praticar pintura ou nos computadores desenhando digitalmente. Eu não estava no clima de fazer nada. Apenas fiquei no quarto, rabiscando meu caderno e escrevendo coisas sem sentido. Recebi uma mensagem de Alice dizendo que o velório de Davi seria de noite, com um endereço e hora. Pediu para eu avisar Zero, e também disse que a igreja tinha um piano, perguntando se eu poderia tocar alguma coisa. Disse que sim, não saberia dizer não a ela naquele momento, embora eu não praticasse fazia algum tempo.

Fui até a biblioteca, e olhei pela porta, vendo Zero ainda lá. Pelo copo novo de café, assumi que tinha saído e já havia voltado. Eu ainda estava meio chateado, então, ao invés de ir até lá falar com ele, apenas peguei o celular e reencaminhei a mensagem de Alice, que ele viu e não respondeu nada.

Eu nem sabia porque estava chateado com Zero. Mas no último mês, desde que começamos a dividir o dormitório, estávamos questionavelmente sendo amigáveis um com o outro, e ele voltar a me tratar de maneira agressiva, como costumava fazer, era esquisito.

De noite, quando estávamos nos arrumando para o velório, um clima estranho pairava sobre o quarto, um silêncio não muito comum quando se tratava de nós dois. Zero parecia estar quase que com vergonha de mim, evitando meu olhar e se encolhendo toda vez que eu passava perto. Quando o vi pronto, não pude evitar de me questionar:

—Você vai com uma blusa de Star Wars? — falei, pensando alto.

Ele me olhou, e deu de ombros.

—É preta.

—Não me parece muito adequado.

Zero fez uma careta, e eu pensei que fosse me responder de forma fria novamente, mas ele apenas abaixou os ombros e disse, baixo:

—Todas as minhas blusas são mais ou menos assim.

Olhei para Zero por alguns segundos, e lembrei que meu casaco serviu perfeitamente nele, apesar de ficar largo em seus ombros magros. Pensei por uns segundos, mas logo cedi. Fui até a minha parte do guarda-roupa, peguei uma camisa social preta do cabide e estendi a mão, oferecendo para ele, com a cara fechada.

—Acho que isso serve em você — falei, um tom de desprezo não intencional.

Maldito Zero me fazendo agir como uma pessoa boa mesmo eu estando cheio de raiva.

Seus olhos azuis demonstravam uma leve surpresa enquanto ele pegava a blusa da minha mão.

—Ah. Obrigado.

Era um tanto diferente ver Zero arrumado, usando minha blusa social preta e os cachos levemente arrumados, apesar de ainda cheios. Ele ficava continuamente mexendo nos botões ou ajeitando a gola da camisa. Parecia desconfortável, mas estava até que bonito.

Resolvemos ir de Uber juntos, e novamente o silêncio tomou conta no caminho. Zero havia tomado um copo de 500ml de café antes de irmos e, mesmo assim, parecia sonolento. Eu sabia que ele não havia dormido nada desde a noite passada, porque estive no quarto o dia inteiro, mas não ousei mencionar, com medo de mais uma resposta agressiva.

O local era uma igreja com aspecto antigo, e estava cheio de pessoas que eu reconhecia como sendo do Instituto, e outras que, pela semelhança física, assumi ser da família de Davi. Era uma situação incomum, e duas vezes mais trágica, o enterro de alguém tão novo.

Havia uma fila de pessoas que estavam indo para fazer suas despedidas. Reparei Zero olhando de canto.

—Você não vai? — perguntei.

Ele negou com a cabeça, olhando para baixo envergonhado.

—Não sei se consigo — murmurou.

Ficamos ali, um do lado do outro, em absoluto silêncio. Zero ainda me parecia meio choque, perdido. Depois de algum tempo, antes que a missa começasse, Alice me levou até o piano. Era um piano de cauda com as teclas amareladas por causa do tempo e eu conseguia sentir o cheiro da madeira.

Foi só quando já estava sentado no piano que percebi que não havia nem sequer pensado em qual música eu deveria tocar. Entrei no modo pânico por alguns segundos, mas respirei fundo lembrando que provavelmente ninguém se importaria. Só queriam uma homenagem a uma pessoa que amavam e que se foi. E eu queria ser respeitoso o suficiente para que aquilo realmente significasse algo, mesmo eu não sendo próximo o suficiente de Davi.

Comecei a tocar as notas melancólicas da marcha fúnebre de Chopin. Tinha um certo repertório de músicas que eu conseguia tocar sem nem mesmo prestar atenção nos que estava fazendo, e essa era uma delas.

Eu não fui no funeral de Wendy. Não consegui. Mas, se tivesse ido, com certeza tocaria essa música. As notas lentas e arrastadas daquela música era uma das formas mais eficazes de se expressar sentimentos sobre a morte de alguém. Havia algo na forma como a música se propagava pela igreja e que as pessoas pareciam se unir em silêncio, algumas fazendo orações, outras se abraçando ou chorando, que me fazia querer chorar também. Evitei olhar ao redor, focando somente nas notas.

Tudo estava tão estático que era como se o mundo tivesse parado por uns instantes. Então notei, no canto do meu olhar, um movimento diferente. Olhei disfarçadamente para o corredor ao lado de onde o piano estava. No canto, em pé, ainda um pouco escondido pelas paredes, em uma posição que ninguém mais conseguisse ver a não ser daquele exato local onde eu estava, tinha um homem alto de cabelos pretos, touca e máscara. Parado me observando. Segurava em suas mãos um óculos de sol, que colocou assim que percebeu meu olhar.

Uma sensação esquisita passou pelo corpo, como um leve formigamento conhecido. Um dèjá-vu de algo que nem eu mesmo conseguia identificar.

Desviei o olhar.

Foco, pensei.

Mas eu continuava arrumando maneiras de olhar novamente para aquele homem, curioso. As notas no piano começaram a sair menos precisas do que deveriam, embora provavelmente ninguém conseguisse notar. Eu entrei no modo automático de forma tão repentina que era como se eu não conseguisse ouvir as notas que estava tocando, e fiquei agradecido por minhas mãos conhecerem essa música tão bem.

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Assim que acabou, assim que toquei a última nota, o homem saiu.

Voltei para onde estava sentado, do lado de Zero, e a missa começou. Olhei para Zero que não parava de tremer, e eu não sabia se era de frio ou de nervoso, mas eu sentia que ele ia desmaiar a qualquer momento.

Eu não conseguia me concentrar em mais nada além de continuar olhando fixamente para onde o homem havia aparecido, esperando que talvez ele aparecesse novamente. Minha atenção confusamente fixa naquilo, e eu não percebi que estava batendo a perna no chão de nervoso até que Zero sussurrou:

—O que foi?

Considerei se deveria dar uma resposta qualquer ou falar a verdade.

—Vi um cara esquisito — respondi. — No canto do corredor, quando eu tava tocando o piano.

Zero olhou para o lugar que eu mostrei, mas não dava para ver muita coisa. Ele pensou por alguns segundos e disse:

—Como era? O cara.

—Alto. Cabelo preto, longo, um pouco mais liso que o meu. De máscara, não dava pra ver quase nada do rosto.

Zero parecia mais tenso do que antes.

—Lembra do homem que eu vi quando viemos aqui no bairro ver a mãe de Davi?

—Você acha que pode ser a mesma pessoa?

Ele concordou com a cabeça.

Alguns minutos depois, quando olhei novamente, apesar de não conseguir ver o homem por causa da posição da parede em que ele estava atrás, vi uma sombra que não estava ali antes.

Cutuquei Zero rapidamente.

—Eu acho que ele tá ali. Eu vou lá fora ver — disse, sem considerar nenhuma outra opção.

Assim que me levantei, discretamente, senti Zero segurar meu pulso de leve.

— O quê? — perguntei.

—Me dá seu telefone — ele pediu. Eu estranhei, mas tirei o celular do bolso e coloquei na sua mão. — Espera aí.

Depois de uns segundos, ele me devolveu o celular.

—Você tá em chamada comigo — avisou. — Eu tô de fone. Se qualquer coisa acontecer, me avisa.

Coloquei meu celular no fone também, e deixei no bolso da calça. Fui saindo devagar da igreja, torcendo para passar despercebido.

Assim que saí e fui em direção ao corredor lateral, vi o homem parado lá, concentrado. Ele não notou minha presença, e fui andando tranquilamente como se fosse apenas passar direto e ir até a saída.

Mas, de repente, ouvi um barulho de trem, que não sei dizer se veio da minha mente ou não. Quando me mexi, assustado, o homem virou até mim e me encarou por um breve segundo.

Se eu tivesse qualquer dúvida sobre esse cara ser alguém suspeito ou não, todas as minhas dúvidas sumiram no momento em que ele saiu correndo

Não pensei duas vezes antes de sair correndo atrás, atravessando a rua rápido e desviando dos carros que estavam estacionados.

—Eros, o que tá acontecendo? — Zero perguntou, provavelmente ouvindo minha respiração ofegante. Não consegui responder, só sabia que queria chegar até aquele cara.

Por que motivos ele correria de mim?

Ouvi uma buzina, e me distrai por um segundo para olhar um carro que vinha na minha direção. Quando virei o rosto novamente, o homem já estava entrando em um carro e, por mais que eu tivesse acelerado meus passos o máximo que pude, não consegui chegar antes que a porta se fechasse e o carro sumisse na rua, em alta velocidade.

Apoiei as mãos nos joelhos, recuperando o fôlego.

—Zero? — chamei, tentando testar se ele ainda estava na linha.

—Oi. Eu tô aqui — falou, baixo. Ouvi uns barulhos do outro lado, então o som de fundo da igreja sumiu. — Onde você tá? Eu tô aqui na porta.

Eu nem havia prestado atenção para onde estava indo, então torci para não estar perdido. Olhei ao redor e, na esquina, ao fundo, consegui ver parte da igreja onde estávamos.

—Eu já tô indo aí — respondi, ainda cansado. — Só… espera um pouco.

Respirei por alguns segundos e voltei, prendendo o cabelo, a blusa de manga de repente ficando muito quente.

A primeira coisa que notei quando cheguei e encontrei Zero me esperando na porta foi que ele estava suando e parecia mais branco que o normal.

—Você tá bem? — perguntei.

—Sim. Você?

—Aham.

Nós dois sabíamos que estávamos mentindo.

—E o que aconteceu? — Zero perguntou.

Suspirei, frustrado.

—Ele fugiu.

—Como assim fugiu? Tipo literalmente?

—É. Ele me viu e saiu correndo.

Zero parecia estar confuso.

—Eu… meu Deus, isso não faz o mínimo sentido. Eu nem… — Zero gaguejou, e então apoiou o rosto nas mãos. Fez silêncio por alguns segundos e então falou, a voz tremendo: — Eros, acho que eu vou desmaiar.

O olhei, assustado.

—O quê? O que eu faço? — perguntei.

Era uma pergunta genuína, eu não fazia a mínima ideia do que fazer se alguém desmaiasse.

—Nada — respondeu. — É normal. Eu… eu desmaio o tempo todo.

—Isso não é nada tranquilizante.

Zero continuava com os braços apoiados na perna e o rosto coberto, respirando fundo. Coloquei minhas mãos nos bolsos, querendo poder fazer alguma coisa, mas sem saber exatamente o quê.

—Eu quero sair daqui — murmurou, num tom quase choroso.

Bom, aquilo eu poderia fazer.

—Vamos embora então — falei.

—Eu... seria desrespeitoso...

—Você prefere voltar e desmaiar lá dentro? De qualquer forma, a gente meio que já saiu mesmo.

Zero não falou nada, então eu não sabia se era um sim ou um não.

—Eu vou chamar o Uber — falei. — Tudo bem?

Ele desenterrou o rosto das mãos, afastando os cabelos da testa suada, e assentiu com a cabeça.

No caminho de volta, eu não parava de olhar para Zero de lado, nervoso. A respiração dele estava ainda mais acelerada e ele fechou os olhos enquanto discretamente apertava a manga da blusa.

—Tá bom, agora eu tô ficando preocupado — comentei.

Ele abriu os olhos devagar e soltou uma risada nervosa.

—É. Quem diria que não era uma boa ideia passar mais de vinte e quatro horas acordado me alimentando só de café? — brincou.

Eu não sabia se ria de nervoso ou se comentava algo.

Quando chegamos, fui tomar banho e tentar parar de pensar no homem misterioso e em tudo que havia acontecido no dia. Eu sentia um vazio esquisito, uma certa culpa que eu estava tentando ignorar. Assim que saí do banho, reparei que Zero não estava mais lá no quarto. Não fiquei surpreso em vê-lo na biblioteca novamente.

Aquele comportamento autodestrutivo me deixava quase com raiva.

E eu nem entendia porque eu estava tão cismado com ele, o de eu não conseguir simplesmente ignorar como tive feito por todo esse tempo. Parado na porta da biblioteca, olhando Zero de longe, consegui admitir para mim mesmo que o motivo de vê-lo tão mal me incomodar era que eu me importava com ele.

E era esquisito me importar com alguém que eu, inicialmente, desgostava tanto. Mas era difícil de não perceber como as coisas estavam subitamente mudando.

Lembrei de quando Wendy faleceu e eu fiquei apático e irritado, e tão incrivelmente vazio, e imaginei que ele provavelmente sentia algo parecido. Se eu estivesse pelo menos um pouco certo, e se ele me considerasse pelo um pouco como um amigo, então eu sabia exatamente o que deveria fazer.

Fui andando devagar até onde Zero estava sentado, novamente enfiado em livros, e coloquei a cadeira de seu lado. Ele me olhou por meio segundo, mas não disse nada.

—Zero? — chamei, mas ele não deu atenção. — Ei?

Ele virou o olhar para mim, a expressão vazia.

—Você quer um abraço? — perguntei, antes que eu me permitisse repensar.

Ele ergueu as sobrancelhas, levemente confuso.

—O quê?

—Muita coisa aconteceu — foi o que eu consegui comentar. — Eu me sinto extremamente impotente no meio disso tudo. E acho que você também. De qualquer forma, não tem muita coisa que eu possa fazer pra melhorar a situação. Mas eu posso te dar um abraço. Se você quiser.

Zero parecia desconfiado, mas timidamente assentiu com a cabeça. Deixei escapar um sorriso triste e abri os braços ao que ele, devagar, se empurrou para frente e deixou que eu o gentilmente o puxasse para perto de mim.

Ele não me parecia ser o tipo de pessoa que gostava de contato físico. Talvez por isso eu tenha ficado tão surpreso na forma como Zero passou os braços pela minha cintura, acomodando o rosto no meu pescoço, e imediatamente começou a chorar.

Foi um abraço genuíno e reconfortante, e nem um pouco esquisito como eu imaginei que seria. Fechei os olhos, consciente de que eu estava precisando de um abraço tanto quanto ele.

Zero chorou pelo que me pareceu alguns minutos, e então foi ficando em silêncio aos poucos, os soluços sumindo e respiração voltando ao normal.

—Ei? — chamei, baixo. Ele não respondeu. — Você… tá dormindo? — perguntei, segurando uma risada.

Sacudi Zero devagar, ao que ele se afastou, piscando os olhos, confuso. Ele realmente tinha dormido.

Zero apoiou o braço na mesa, e me parecia que ia adormecer novamente. Antes que ele dormisse abruptamente e batesse a cabeça na mesa, gentilmente tirei o casaco da minha cintura e coloquei em cima do caderno, ao que ele apenas deitou e fechou os olhos.

—Eu vou acabar roubando todo seu guarda-roupa — murmurou, ainda meio dormindo.

Abri um pequeno sorriso, concordando.

Pensei em acordá-lo, porque dormir no meio de uma biblioteca não era muito ideal, mas Zero parecia tão cansado que apenas o deixei dormir.

Reparei que eu ainda sorria de leve, e, durante alguns breves segundos, me permiti esquecer de tudo o que estava acontecendo.

Foi quando o telefone tocou.