Amarelo- Lírio e Fogo Azul

Capítulo 3- Eros


Eros

Eu não era bom em me manter longe de problemas, disso eu sabia. Entretanto, nos meus dois anos de curso até agora, tinha conseguido me manter longe de brigas físicas. Pelo menos até aquele dia.

A adrenalina estava se acumulando em mim desde o momento em que foi feito o anúncio da troca dos dormitórios. O pensamento de dividir um quarto com Zero me deixava, ao mesmo tempo, com raiva e indefeso. Estar perto dele fazia eu me sentir estúpido e pequeno, e eu não conseguia imaginar como seria me sentir assim todos os dias, todo o tempo. Era como se eu estivesse fervendo de raiva, e, bem no momento que resolvi andar para esfriar a cabeça, dei de cara com Marcus.

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Ele estava em um corredor que costumava ficar vazio, então fui chegando perto devagar, tentando enxergar o que quer que estivesse acontecendo. Não tinha mais ninguém ao redor, além de Marcus e um outro aluno, que eu não sabia quem era, mas que me parecia bastante desconfortável, imprensado na parede.

Foi quando eu ouvi o som distante de Marcus agarrando a blusa do garoto e o acertando com um soco. Fui chegando mais perto aos poucos. Eles não ouviram o som dos meus passos.

—Viadinho – Marcus falou, baixo, como se não quisesse chamar atenão. – Você pode ser viadinho o quanto quiser, mas precisava daquela putaria?

O garoto parecia confuso.

—E-eu não fiz nada – murmurou.

Olhei para o garoto, que tremia. Parecia ser mais novo que nós dois, talvez uns 18 anos no máximo. Senti minha mão se fechando e percebi que meus ombros estavam tensos.

“Não é sua briga, Eros. Só sai andando” foi o que pensei.

Mas, no momento que Marcus acertou outro soco no garoto, e eu o vi ali, encolhido, apanhando pelo simples fato de existir, todo o meu sangue ferveu.

—Que porra você tá fazendo? – gritei, tentando esperançosamente atrair a atenção de alguém.

—Olha quem apareceu aqui – Marcus falou, com ironia. – O outro viadinho veio te defender! Por que vocês dois não se comem? Não é isso que vocês gays gostam de fazer? Dar a bunda?

Ele soltou uma risada.

Eu não tive tempo de analisar a situação, de pensar em quaisquer fossem as consequências, apenas corri em direção a Marcus e acertei um soco em seu nariz, com toda a força que consegui juntar.

Ele me empurrou para longe e socou meu olho. Marcus era um pouco mais baixo que eu e, julgando pelo soco, mais fraco. Minha mente apenas se desligou, e tudo que eu pensei foi:

“Eu vou matar esse filho da puta”

Dei uma cotovelada em estômago e, assim que ele se dobrou com a dor, puxei sua blusa para cima e o empurrei até a parede. Ele parecia zonzo, sem revidar.

—Escuta aqui – falei, a voz tremendo. –Se eu ver você encostando em mais alguém de novo, eu juro pra você, seu filho da puta, que eu vou ser expulso daqui, mas eu vou te quebrar todo antes. Tá me ouvindo?

Senti uma mão encostar no meu ombro, e virei para trás, assustado. Um professor me segurava para que eu não continuasse batendo em Marcus, e foi aí que a ficha caiu.

Eu queria sair correndo. Olhei ao redor, minha visão estava embaçada por causa do soco, mas eu consegui ver que o garoto que estava apanhando havia saído, e, no fundo do corredor, Zero observava a cena. Nossos olhares se encontraram, e foi quase um alívio ver alguém conhecido ali, mesmo que esse alguém fosse o Zero.

—Para a sala da coordenadora – o professor falou. – Os dois. – ele apontou para Zero. – Você, vem também. Pode ser de ajuda já que viu a ceninha que esses dois criaram.

Minhas mãos tremiam e eu ainda sentia como se todo meu corpo estivesse em chamas.

Fui andando até a sala, no andar de cima, tentando respirar fundo. Assim que cheguei, Luciana mandou Marcus entrar e pediu que eu esperasse na parte de fora, onde tinha uma mesa e algumas cadeiras. Sentei em uma das cadeiras e me encolhi, encostando o rosto nos joelhos e apoiando as mãos atrás da cabeça.

Eu queria sumir. Senti as lágrimas descendo e nem eu mesmo entendi porque estava chorando.

Me sentia um pré-adolescente novamente. Um pré-adolescente gay e magrelo, tentando se assumir no meio de uma família e de um colégio extremamente religioso e intolerante. Eu me vi no lugar daquele garoto, indefeso, apanhando, e me meti em uma briga que não era minha.

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E agora seria suspenso. Ou pior, expulso.

Eu não podia ser expulso.

Todo meu futuro seria jogado no lixo por causa de uma coisa pequena e estúpida e—

—Eros? – Ouvi, e então olhei para o lado para ver Zero, colocando a cadeira de rodas do lado de onde eu estava sentado. Ele deu de ombros. – Eu teria batido nele também.

Me ajeitei, sentando reto novamente. Eu queria gritar com Zero, queria que ele saísse dali. A última pessoa que eu queria que me visse chorando era ele. Mas o jeito que ele me olhou, como se de alguma forma entendesse, era reconfortante e revoltante ao mesmo tempo.

—Você viu o que aconteceu? – Perguntei, a voz falhando.

Ele concordou com a cabeça, e ficamos os dois em silêncio até que me chamaram para entrar e falar com Luciane, a coordenadora.

Eu mantinha a mão no olho esquerdo, onde Marcus socou, a dor começando a aparecer agora que o nervosismo estava passando.

Sentei na cadeira, do outro lado da mesa onde Luciane se encontrava, o cabelo escuro preso em um coque e o olhar impassível.

—Leonardo, você pode me contar o que aconteceu? – ela perguntou.

Eu fiz silêncio. Era como se estivesse engasgado.

—Marcus falou que você atacou e ameaçou ele – continuou.

O quê? Não! Quer dizer, eu... ele...

Respirei fundo e recomecei.

—Ele tava batendo num outro garoto e eu só... eu só defendi.

—Analisando o jeito que Marcus está, me parece que você fez mais do que apenas se defender. E... outro garoto? Tinham mais pessoas envolvidas?

—Tinha. Marcus estava batendo no garoto, e sendo homofóbico com ele, e aí eu me meti.

—Então você admite que atacou ele?

—Eu... não! Quer dizer, sim, mas...

—“Mas” nada, Leonardo. Esse tipo de comportamento é inaceitável aqui no Instituto. Você sabe muito bem que expulsamos qualquer um que se envolver em brigas.

Eu senti que ia vomitar.

—Expulsão? C-como assim?

Mas não seria nada bom que boatos se espalhassem sobre o que você disse, do Marcus ter sido homofóbico com você e o outro garoto. O pai dele é um cara importante e esse tipo de coisa não é muito boa. E esses dias, você sabe como o mundo tá. Então, seguinte, a gente pode só suspender você, e essa história da briga não sai dessa sala.

O quê? Ela estava descaradamente protegendo Marcus?

—Tudo bem – falei, baixo.

Apesar de ir contra todos meus ideais, eu simplesmente não poderia ser expulso. Não que suspensão fosse muito melhor. Ter que ir para casa, olhar na cara do meu pai e dos meus irmãos, ter que falar que fui suspenso.

E aquilo ficaria no meu histórico para sempre. Eu estava acabado. Queria ir para o quarto, me esconder e chorar.

—Eu vou chamar o outro garoto que presenciou – ela disse. – Ver o que ele tem a dizer, e se vocês dois prometerem ficarem quietos, então vamos deixar você permanecer aqui.

Ótimo, agora meu futuro no colégio também dependia de Zero aceitar calar a merda da boca, o que ele provavelmente não faria apenas para ver eu me ferrando. Ele deve estar adorando a situação.

Zero entrou na sala, devagar, como se estivesse com medo.

Luciana o explicou, em detalhes passivo-agressivos e implícitos, que precisavam manter a imagem da escola, e a imagem do maldito do Marcus para o papai rico dele continuar apoiando a escola. Que Zero precisava concordar em não falar nada sobre o que aconteceu, e sobre Marcus ser um homofóbico de merda.

—E o que vai acontecer com Marcus? – Zero perguntou. Sua voz parecia agressiva.

—Vamos ver sobre isso.

—Então nada? É isso? A gente finge que não viu nada, Marcus sai impune e Eros leva a suspensão mesmo o babaca do Marcus tendo sido um filho da puta?

Luciane parecia irritada.

—Cuidado com esse linguajar – falou. – Acho que você não entendeu bem. Se você não concordar, a nossa única solução aqui infelizmente vai ser expulsar seu amigo aqui para que o boato não se espalhe pela escola.

—É, mas eu vi também. Você vai me expulsar também? Mesmo sem motivo? Sem eu ter me envolvido em uma confusão sequer e ter sido um aluno modelo durante todo esse tempo? Acho que seria... um tanto esquisito, não?

Zero estava... me defendendo?

O olhei, eu me sentia tão pequeno e impotente e, no entanto, ele parecia tão corajoso. Por mais que eu estivesse grato, eu não conseguia evitar do sentimento de raiva que eu sentia em relação a ele. Ele parecia ser melhor que eu em tudo, e eu odiava essa sensação.

Luciane cruzou os braços.

—Yan, você precisa entender que eu estou fazendo o que é melhor para todos.

Ele olhou para mim, e para ela novamente.

—Você não acha que, mesmo se nós dois concordarmos em não falar nada, as pessoas vão se perguntar porque esse aqui foi suspenso? Eu tenho uma ideia melhor.

Eu me sentia exposto e definitivamente não gostava de onde aquela conversa estava levando.

—E se... – ele continuou – ao invés de suspensão, ele fosse ajudar no projeto novo que vocês pediram para eu organizar? Sem contar como horas de projeto de extensão, sem contar nada. Uma espécie de trabalho voluntário – então olhou para mim e deu de ombros. – Isso é, se ele quiser.

—Eu quero – falei, sem pensar duas vezes. Faria qualquer coisa para evitar uma suspensão no meu histórico, mesmo que isso significasse ter que ajudar Zero.

Luciane nos olhou, analisando a situação.

—Parece bom – concluiu. —Mas espero que vocês dois saibam que no próximo deslize que cometerem, eu não vou ser tão pacífica. E você, Yan, precisa aprender a respeitar autoridades. Da próxima vez que eu te pegar falando assim comigo ou com qualquer professor ou funcionário, você vai ser punido. Entendeu? Entenderam?

Nós dois balançamos a cabeça, concordando.

—Podem sair.

Assim que saímos, olhei para Zero.

—Por que você fez aquilo?

Meu tom soou agressivo, mas não foi proposital. Ele revirou os olhos, e eu me senti esquisito de repente.

Tinha um “obrigado” entalado na minha garganta que eu simplesmente não conseguia me forçar a dizer.

Não fiz por você, sabe que eu te acho um babaca– foi o que ele disse, o tom frio contrastando com a maneira que parecia agressivo lá dentro. – Eu só fiz o que achei certo. E, além do mais, preciso de voluntários para o projeto.

Eu queria fazer mil perguntas sobre isso, como o que era, porque ele precisava da minha ajuda, quando começaríamos, o que eu tinha que fazer. Mas apenas me calei.

Apesar de acreditar que ele não tinha feito aquilo por mim, porque provavelmente me odiava tanto quanto eu o odiava, mesmo assim, ele havia me ajudado.

—Obrigado – murmurei, bem baixo.

—O quê?

Respirei fundo, frustrado.

—Nada.

Zero riu.

—Você disse “obrigado”? Tipo, você sabe como pronunciar essas palavras? Uau, agora eu tô surpreso.

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Reparei que, mesmo que fosse para me provocar, sua risada parecia mais uma risada inofensiva, ao invés de irônica. A maneira como os cantos de seus olhos se fecharam levemente me fez perceber que eu nunca havia o visto sorrir de verdade.

—Você ouviu errado – falei, baixo, soando como uma criança implicante.

Ele riu novamente. A forma como ele sempre parecia despreocupado frente à nossas desavenças geralmente era o que fazia minha raiva contra ele disparar. Mas, depois de levar um soco na cara e quase ser expulso, era de se esperar que eu estivesse um pouco mais vulnerável que o normal, então apenas ri também, e fomos andando juntos pelo corredor em silêncio por alguns segundos, até que nossos caminhos se separassem.

Na aula, tudo que eu queria era contar para Alice o que havia acontecido. Mas me segurei, lembrando que havia prometido ficar quieto em troca da minha permanência no IN. Quando perguntou o porquê do olho roxo, eu entrei em pânico e inventei uma briga completamente falsa com a primeira pessoa aleatória que consegui pensar, e a história parecia ter morrido ali. Não encontrei mais com Marcus nos corredores durante os próximos dias e, apesar de meu olho doer, as coisas pareciam estar voltando ao normal. Eu e Zero também estávamos ficando longe do caminho um do outro, mais do que o normal, e eu não sabia dizer se aquilo era bom ou ruim.

Mas não conseguimos nos evitar por bastante tempo, porque logo chegou o dia de mudarmos para os dormitórios novos.

—Argh, você vai dividir o quarto com quem? – perguntei para Alice.

—Eu não conheço a garota – ela respondeu. – Não lembro o nome.

Alice parecia distraída.

—Tá tudo bem? – perguntei.

—Ah, é só que... briguei com o Davi. Mas foi uma briga boba. A gente começou a discutir sobre uma coisa pequena e acabamos tirando de proporção. Quando tivermos um tempo, na hora da janta, vou procurar ele para pedir desculpas.

Alice e Davi eram o tipo de casal que brigavam o tempo todo, mas não eram brigas severas. Eram coisas pequenas, que logo se resolviam. Eles estavam juntos há bastante tempo também, e eu admirava a forma como pareciam se amar, embora eu não fosse muito uma pessoa de namorar.

—Ei – Alice disse, interrompendo meus pensamentos. – Os alunos novos do segundo semestre chegam semana que vem, né? Seu irmão passou?

Meu irmão mais novo, Erick, havia feito a prova assim que terminou o ensino médio, embora tenha apenas 16 anos.

Suspirei.

—Passou.

—Que bom, eu adoro o Erick! Por que você não parece feliz?

Erick era um dos únicos irmãos que eu não odiava, talvez por ser mais novo. Não éramos exatamente próximos, mantendo a tradição dos Irmãos Mendes, mas eu gostava de Erick.

Ele era um bom garoto, habilidoso com computadores e máquinas em geral, um tanto inocente e ingênuo, mas eu ousaria dizer que o mais inteligente dos irmãos. Era essa ingenuidade que eu acreditava que não teria lugar aqui.

—Vão comer ele vivo – murmurei. – Ele só tem 16 anos. Deveria estar, sei lá, comendo terra, não na faculdade.

—Que bom que ele tem o irmão mais velho dele pra proteger ele aqui então. Certo?

Balancei a cabeça, negativamente.

—Errado. Eu não vou proteger ninguém.

Alice revirou os olhos.

O sinal tocou e, pelos alto-falantes, pediram que, por favor, fossemos até nossos quartos atuais e mudássemos nossas coisas para os novos quartos.

Tínhamos duas horas para se organizar, até que o sinal tocasse e todos tivessem que estar preparados para ir até o refeitório jantar e ir dormir, agora nos dormitórios novos.

Todos os quartos ficavam em um prédio separado, ligada a área do colégio por uma ponte que ficava acima de um lago, o que eu considerava o local mais bonito dali. Naquela ponte, conseguíamos ver o céu, e era o único lugar que havia um pouco de natureza no meio daqueles prédios acinzentados. No prédio dos dormitórios, cada andar era, basicamente, apenas corredores com portas. Nos colocaram no primeiro andar do primeiro bloco, que, assumi, era o local de mais fácil acesso para Zero. Os corredores estavam agitados e lotados, alunos se movendo de um bloco para outro e entre os prédios, carregando caixas de livros e roupas.

Quando cheguei no quarto novo, Zero já estava lá, em pé, fechando sua cadeira de rodas e a colocando em um cantinho. De vez em quando, ele aparecia por aí sem ela, o que, claro, gerava várias piadas sobre ele estar fingindo ou algo assim. Eu ficava possivelmente confuso, e bastante curioso, mas também não me importava o suficiente para perguntar.

O quarto era enorme, duas vezes maior do que o antigo. Vi uma porta aberta do que parecia ser um banheiro.

—Isso é um banheiro? – falei, animado. Apenas alguns quartos tinham, e eu mal conseguia acreditar que tínhamos sido sortudos o suficiente para não precisarmos mais usar os banheiros coletivos.

—É – Zero disse. – Acho que pegamos um dos melhores quartos. E bastante espaço, pra ficarmos o mais longe o possível um do outro – brincou, sorrindo.

—Isso me parece ótimo – respondi. – Na verdade, a gente deveria fazer uma linha e ficar cada um de um lado.

Zero revirou os olhos, mas parecia estar de bom humor.

—Quantos anos a gente tem? 5?

—É, a linha não ia funcionar de qualquer jeito, porque aparentemente você trouxe, tipo, sua casa inteira, né? – falei, apontando para as coisas dele. Zero olhou para baixo, desconfortável. Dessa vez, eu não tive a intenção de o fazer sentir mal, e quase me senti culpado.

—Só vamos ficar fora do caminho um do outro, okay? – ele falou, ríspido, e saiu andando.

Eu trouxe o resto das minhas coisas em silêncio, tentando entender o que tinha feito de errado que havia mudado seu humor daquela forma, mas também me lembrando de que eu não me importava. Não me importava com ele, e, de fato, a melhor coisa que fazíamos era ficar longe do caminho um do outro mesmo.

De noite, um silêncio constrangedor enchia o ambiente. Um de cada lado, ambos estávamos quietos, fazendo suas próprias coisas, mas muito cientes da presença um do outro, os movimentos marcados como se estivéssemos sendo observados. Zero estava sentado na cama, rabiscando cálculos em um caderno, e eu estava lendo um livro. Me sentia inapropriado enquanto ele fazia tantos cálculos, como se eu fosse estúpido, burro. Eu sabia que não deveria me comparar a outras pessoas, mas era inevitável. Eu estava sempre me comparando com todos ao meu redor, e especialmente com Zero. Não sei dizer porque ele, mas algo no garoto me intimidava. Algo na forma como ele parecia sempre despreocupado, sempre... perfeito.

Voltei minha atenção para meu livro, mas era difícil focar quando estava tão consciente da presença de Zero ali. Quando finalmente consegui me concentrar, ouvi a voz de Zero me chamar.

Ele estava mexendo na mochila, segurando uma pulseira.

—Alice é aquela sua amiga, não é? Que namora com Davi, meu antigo colega de quarto – perguntou.

Eu ergui uma sobrancelha, confuso.

—É. Por que?

—Tem uma pulseira na minha mochila com o nome dela.

Ele esticou a mão, me mostrando uma pulseira de pano verde, arrebentada.

—Isso é do Davi. Ela deu pra ele. O que tá fazendo na sua mochila? – perguntei.

Ele parecia mais confuso que eu.

—Eu... não sei. Talvez ele tenha colocado por engano na hora da mudança, vou lá procurar ele.

Zero esticou o braço até sua cadeira de rodas, e apenas a puxou até o lado da cama, se movendo da cama até a cadeira, e saindo do quarto.

A primeira coisa que passou pela minha cabeça foi que Alice e Davi tinham terminado. Eles namoravam fazia dois anos e eu sabia que aquela pulseira era tipo um símbolo para eles. Alice tinha uma também, com o nome dele. Resolvi ir procurar ela, ver se tinha acontecido algo.

A achei no corredor do refeitório. Felizmente, Alice não estava no quarto ainda, porque éramos proibidos de ir até o prédio do dormitório feminino.

—Alice! – falei, ofegante por ter andado rápido para a procurar.

—Eros? O que foi?

—Eu que te pergunto! Você tá bem? O que aconteceu entre você e o Davi?

Ela parecia não ter entendido a pergunta.

—Como assim? Não aconteceu nada.

—Zero achou a pulseira dele arrebentada. A com seu nome.

Ela analisou por alguns segundos.

—Deve ter caído. Ele não tiraria de propósito. Você sabe onde ele tá?

Balancei a cabeça negativamente.

—Zero foi procurar ele para devolver a pulseira.

Assim que nos viramos para ir o procurar, Zero estava vindo até nossa direção. Era difícil de ler sua expressão facial, mas eu diria que estava chateado com algo.

—Oi – ele disse, baixo, chegando até nós. – Alice, certo? Você tem que ir até o quadro de avisos. Sério.

Seguimos Zero até o quadro de avisos, sem entender o que estava acontecendo.

Foi quando, no meio do monte de papéis colados no quadro, que ficava no meio do corredor para que pudéssemos ver, lá estava:

“Informamos que o aluno Davi Farias, segundo ano do curso de física, alega desistência de sua vaga no Instituto Newton e deixa as dependências do colégio.”

Embaixo, a data e a hora.

—Não faz sentido – Alice murmurou. – Por que ele sairia? Por que não me disse nada? E a pulseira... eu não... eu não entendo.

Nenhum de nós entendia. Eu sabia que Davi era amigo de Zero também, e, por isso, ele parecia tão decepcionado quanto Alice.

—Mas por que ele deixaria a pulseira na minha mochila? – Zero perguntou.

Todos nós estávamos cheios de perguntas. Depois de algum tempo, chegamos apenas a conclusão de que Davi talvez estivesse com raiva de algo, e deixado a pulseira para que Zero pudesse devolver a Alice. Alice disse que ele tinha muitos problemas em casa e que estava passando por uma fase difícil, e que algo deveria ter acontecido em sua família. Era triste, e estávamos todos um pouco confusos, mas fazia sentido, ou parecia fazer.

Quando voltamos para nossos quartos, o clima estava ainda mais pesado que antes, a sensação de novas dúvidas surgindo.

Zero voltou a seus cálculos e eu voltei ao meu livro. Olhei para o lado ao ver Zero rabiscando a folha e logo depois amassando. Ele suspirou, frustrado.

Então me olhou, as sobrancelhas juntas, mas algo em seu olhar havia mudado.

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—Eros? – chamou. – Eros. A hora.

—O quê?

—“Deixou as dependências do colégio ás 18:53” era o que estava escrito no papel. Ele estava comigo essa hora, Eros. Eu tenho certeza. Ele estava comigo hoje quase o dia todo. Aquele papel... e se for falsificado? E se algo aconteceu com ele?

O pensamento fez um gelado esquisito atravessar meu corpo. Eu não sabia se estávamos apenas sendo paranoicos, mas eu não tinha uma sensação boa sobre aquilo.