Amarelo- Lírio e Fogo Azul

Capítulo 25- Zero


Zero

Reli a mensagem que me mandaram algumas vezes antes de realmente ligar para Ana e perguntar o que havia acontecido.

"Espero que tenha gostado do presente. Talvez queira avisar a seu amigo para manter a boca fechada da próxima vez que ele for aparecer em rede nacional"

Uma overdose, foi o que fizeram parecer. Era convincente, já havia acontecido muitas vezes antes. Talvez por isso ela seja um alvo fácil, ninguém questionaria. Mas também era por isso que a notícia não me chocava; não tinha nada de novo naquilo. A única diferença era que, dessa vez, a culpa não havia sido dela. Mas eu não sabia se me importava tanto quanto deveria, era só... mais um overdose. Talvez ela sobreviva. Talvez não. E eu simplesmente não sabia como me sentir sobre.

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Poderia ter sido qualquer um. Eles passariam por cima de qualquer um apenas para mostrar que as ações de Eros de os expor em rede nacional não sairiam impunes.

Eros. Eu não poderia deixá-lo saber disso. Pelo menos não a parte de que algo havia acontecido com alguém da minha família em uma tentativa de punir ele; Eros nunca se perdoaria. Eu sabia que não.

E o fato de que a mensagem chegou no meu celular, não no dele, deixando na minha mão a decisão de manter isso para mim ou não só confirmou minha teoria de que tudo isso não passava de um joguinho psicológico para nos destruir por dentro.

Fui até o quarto para ver Eros dormindo na minha cama. Ele parecia calmo, apesar de ter passado umas boas horas na noite anterior tendo ataques de pânico. Não estava se remexendo por pesadelos ou com a expressão tensa, talvez finalmente estivesse se acalmando e começando a se recuperar do fato de ter sido expulso e, logo em seguida, ter apanhado do próprio irmão que, aparentemente, o sequestrou e tentou o matar anos atrás. Eros estava lidando com muitas coisas ao mesmo tempo e eu não poderia adicionar mais coisas a essa lista.

Ao invés de acordar Eros, fui até a sala e liguei para Alice.

Antes que eu pudesse falar qualquer coisa, ela me atendeu com:

— Zero, você viu o instagram do Eros?

Ok. Péssima forma de começar.

— Não...? — respondi, confuso. — Por que?

— Os comentários. Desde que ele deu aquela entrevista... está em todo lugar. As pessoas não param de falar sobre isso. Nos comentários das redes sociais do Instituto, nas do Eros, foi parar nos trendings dos twitter, eu... As pessoas estão xingando Eros. Falando que o que aconteceu com ele e a irmã deve ter afetado o estado mental dele e que ele deveria ser internado. Os comentários são... terríveis.

Respirei fundo, uma dor de cabeça familiar fazendo com que eu não conseguisse processar completamente aquilo.

— Não... — sussurrei. — Não é culpa dele. — suspirei, frustrado. — Cada vez mais difícil tentar proteger Eros, acho que a única solução é mudar de nome, excluir as redes sociais e fugir com ele — tentei fazer piada, ignorando que tudo que eu queria era, de fato, sumir.

— Ele não viu ainda?

Suspirei, reparando que ainda conseguia ouvir o ronco de Eros, que deveria estar cansado demais para ter seu sono leve de sempre.

— Não. Dormindo ainda. Eu trouxe ele pra minha casa ontem. Ele... não tá nada bem.

— Tem uma parte boa nisso — Alice falou, e eu não consegui imaginar o que seria. — De uma forma ou de outra, as pessoas estão falando sobre. Algumas pessoas estão concordando. Falando que o Instituto sempre pareceu uma seita com as regras restritas e que tinha que ter algo errado, que talvez Eros não estivesse tão maluco no final das contas. A dúvida está lá. E agora todo mundo sabe, seja para falar que é absurdo ou não, esse não é mais um assunto invisível. É o que Eros queria, certo?

Balancei minha cabeça, pensando sobre.

— E não é que o filho da puta estava certo? — murmurei. — Mas isso é ruim. Precisamos fazer algo rápido antes que a atenção morra. Ou antes que... o assunto morra com a gente.

Alice fez silêncio por alguns segundos, e aproveitei a pausa para contar o que havia acontecido com minha mãe. O que haviam feito.

— Alice, acho que a gente tinha que tentar rastrear aquele lugar onde me prenderam. Eu sei que não achei nada na internet, mas eu tenho algumas opções de caminhos que eu acho que fizemos, deveríamos tentar pessoalmente. Para ter certeza.

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Consegui ouvir Alice suspirando, um leve tom de medo.

— E o que a gente faz se achar o lugar?

Pisquei, um senso de determinação estranho me preenchendo.

— A gente morre, provavelmente. Mas morre desmascarando esses filhas da puta.

Ela soltou uma risada triste.

— Me parece uma ideia terrível. Quando?

Olhei para o relógio, lembrando que tinha o dia inteiro livre.

— Eu tenho o dia livre e os papéis aqui comigo. Você sabe dirigir e tem meu endereço. Não tem?

Ela engasgou.

— Tipo, agora? O que eu perdi que te deixou impulsivo?

No meio da conversa, não percebi que Eros tinha acordado e estava me encarando da porta do quarto, o cabelo bagunçado e a mão apertando o ombro machucado. Estiquei o braço em sua direção e ele entendeu o gesto, vindo até mim e sentando no meu colo. Eros encostou a cabeça no meu pescoço e fechou os olhos, sonolento.

— Eu só quero acabar com isso logo — falei para Alice no telefone, enquanto usava minha outra mão para segurar Eros gentilmente pela cintura.

Eu só quero uma chance de te proteger dessa vez, completei na minha mente.

Quando desliguei o telefone com Alice, Eros já havia dormido de novo. Fiz uma nota mental de que aquilo era extremamente confortável e que, pro azar das pobres rodas da minha cadeira, eu definitivamente deveria ficar naquela posição com Eros mais vezes. Era estranho estar tão perto dele e não ter medo de estragar tudo. Pelo menos, no meio de todas as outras coisas que estavam dando errado, eu ainda tinha isso. Ele. Nós dois.

Foi, no mínimo, constrangedor quando Ana chegou em casa e Eros estava adormecido no meu colo.

Ele abriu a boca como se fosse falar algo, desistiu e então tentou de novo.

— Vocês...? Você...?

— Não. — respondi imediatamente, sentindo meu rosto ficar vermelho. Balancei Eros devagar para que ele acordasse, e ele acordou assustado, se agarrando na minha blusa. Por impulso, o segurei mais perto e sussurrei: — Sou eu. Tá tudo bem. — o que definitivamente não ajudou muito na minha credibilidade de responder não à pergunta de Ana.

Eros levantou ainda sonolento, e com um sorriso no rosto, sem um pingo de vergonha. Como ele conseguia ser tão descarado, eu não sabia.

A expressão séria de Ana logo em seguida me lembrou do que havia acontecido com a minha mãe, fato que eu estava tentando ignorar por quanto tempo eu pudesse.

— Yan — ela falou, desviando a atenção de Eros — Como você está?

Dei de ombros.

— Bem. — o que definitivamente não era uma resposta apropriada considerando que ela havia me ligado alguns minutos antes para falar "sua mãe teve uma overdose e está em estado grave".

Mas eu estava bem. Só precisava não pensar naquilo, e estava bem.

Parecia errado sofrer por alguém que havia me causado tanto mal, então eu não me deixava sofrer. Era mais fácil, e eu queria que continuasse assim, mesmo que a confusão dos sentimentos se misturando fizessem minha cabeça doer.

— Luiza ainda está inconsciente — ela falou, triste. — Os médicos não sabem se ela vai conseguir acordar. Eu vim aqui pra te levar lá porque... — os olhos dela se encheram de lágrimas. — talvez seja sua última chance de ver sua mãe, Yan.

Antes que eu respondesse, Eros me olhou, surpreso.

— Luiza... Sua mãe? O quê- O que aconteceu? — ele me olhou, apoiado no balcão da cozinha, e eu sabia que estava chateado por eu não ter mencionado nada.

— Longa história — murmurei. — Overdose.

— E você não me contou? — reclamou.

Olhei para baixo, me sentindo sufocado por Eros e pressionado por Ana. Eu não queria ter que lidar com nada daquilo.

Então olhei para minha madrasta e tive a completa noção de que estava sendo a pessoa mais insensível do mundo quando disse:

— Pode voltar sozinha. Eu não vou.

Minha garganta ardeu e fechou um pouco; parecia a decisão errada.

Ana arregalou os olhos, chegando perto de mim.

— O que? Por que?

A pergunta me deixou subitamente com raiva.

— Não fala como se você não soubesse porque. Por que eu iria querer ir lá?

— É sua mãe!

— E daí? Ela nunca gostou de mim. Eu passei 19 anos tentando ignorar ela, o que te faz achar que vai ser diferente agora?

Ana andou de um lado para o outro na cozinha. Eu me sentia terrível, como se cada palavra me fizesse uma pessoa pior, mas não conseguia evitar.

— Porque ela pode morrer, Yan! — Ana gritou.

Eu estava tremendo. Eros foi até mim e apoiou a mão no meu ombro, como se para dizer que estava ali.

— Como se fosse fazer alguma diferença! — explodi. — Ela sempre esteve morta pra mim.

Eu percebi que tinha passado do limite quando Ana veio na minha direção, gritando algo que mal consegui distinguir antes de ela levantar a mão, prestes a me dar um tapa.

Eros se enfiou no meio e segurou a mão dela.

Ele esperou uns segundos enquanto Ana se acalmava e então disse, baixo:

— Deixa eu conversar com ele. Espera lá fora.

Ele se abaixou na minha frente e segurou meu rosto em suas mãos de forma gentil, acariciando minha bochecha. Deixei ele o fazer mesmo eu estando fervendo de raiva e, instintivamente, tremendo de medo depois de Ana quase ter me dado um tapa. Eu sabia que ela não me machucaria, mas minha mãe já havia me machucado muitas vezes antes e era difícil distinguir uma coisa da outra.

— Desculpa por ter me intrometido — Eros falou, parecendo meio culpado. — Foi automático.

Eu não respondi, não queria bem falar qualquer coisa. Só queria... me acalmar.

— Tá tudo bem se você não quiser ir lá... — ele continuou falando. — Mas eu realmente não quero que você se arrependa depois. — ele fez uma pausa, me deixando pensar. — Isso é realmente o que você quer?

Eu não poderia contar para Eros o centro do dilema: não havia sido ela que causou aquilo. Daquela vez, ao contrário das outras, não havia sido culpa dela. Ela era só uma vítima da situação.

Eu nem conseguia pensar no fato de que ela talvez não fosse sobreviver.

A pior parte era não saber se aquilo havia sido feito apenas para nos assustar ou se ela não deveria ter sobrevivido.

— Eu... não sei — respondi, sinceramente.

— Se você quiser ir, não precisa ir com a Ana. Eu te levo lá, você vê sua mãe rapidinho, e aí a gente vai embora. Você tinha combinado de fazer algo com a Alice, não é? Eu estava meio dormindo, mas lembro de ter ouvido algo.

Assenti com a cabeça. Odiava mostrar aquele nível de vulnerabilidade, mas eu tinha que perguntar:

— Você fica lá comigo? No hospital.

Ele se levantou e deu um beijo na minha testa antes de passar por mim para pegar as chaves.

— Claro. Vamos?

Quando estávamos no silêncio do carro, eu não pude deixar de me sentir culpado por não ter contado sobre a mensagem que recebi, mas não poderia arriscar Eros surtando e se culpando. Não agora.

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Eros havia prometido que entraria comigo, mas, no quarto de UTI, só deixaram uma pessoa por vez. Pensei seriamente em desistir; dar meia volta e ir embora. Nem sabia o que estava fazendo lá.

— Ei? — Eros chamou. Virei para ele, que me segurou em um abraço repentino. — Se quiser sair correndo de lá, é só vir que eu vou estar aqui fora te esperando.

— Obrigado, mas eu não posso correr. No máximo vou rolar até aqui — falei, sorrindo e apontando para uma das rodas.

Eros revirou os olhos, escondendo um sorriso.

— Não consegue falar sério em momentos ruins, né? Você faz uma piada e eu imediatamente fico preocupado.

Ele ia soltar o abraço, mas eu o segurei mais forte.

— Obrigado por sempre estar aqui — murmurei, tão baixo que só ele ouviu.

Quando cheguei no quarto, coloquei minha cadeira do lado da cama de hospital onde minha mãe estava deitada, desacordada. Haviam muitos aparelhos apitando de forma desordenada. Muitos tubos. Ela parecia mal e eu simplesmente não sabia como aquilo fazia eu me sentir.

— Você vai sobreviver, não vai? — foi o que falei, estranhando meu próprio tom de voz. — Você precisa sobreviver pra eu não ter que carregar essa culpa comigo — fui sincero. — Já tenho culpa demais para carregar. Não acho que aguento mais essa.

E, como ela estava desacordada, me ouvindo pela primeira vez desde sempre - obviamente porque não podia responder- não pude evitar de continuar sendo sincero. Era mais fácil falar com ela não ouvindo.

— Acho que eu não deveria ter vindo — confessei. — Você nunca ia me ver quando eu estava no hospital. Eu acordava assustado, e você não estava lá. Eu sabia que não estaria, mas ainda assim, todas as vezes... depois de cada desmaio, cada cirurgia, cada procedimento... eu abria os olhos e torcia para que, talvez, você estivesse lá só daquela vez. Você nunca estava. E, quando estava, era para gritar comigo. Eu tentei, sabe? Essa é a pior parte. Eu tentei fazer você me amar. Achava que se fosse um filho bom o suficiente, se eu me esforçasse, se tirasse boas notas e recebesse prêmios.... que talvez assim eu seria bom o suficiente para você finalmente me amar. E você me amava em alguns dias, quando estava bem. Quando não estava... Eu aprendi tantos mecanismos de defesa para sobreviver a você, mãe. Não expor meus sentimentos, me afastar sempre que possível, falar só o necessário. E eu sobrevivi a você, mas agora... — soltei uma risada amarga. — não consigo sobreviver no mundo real.

Nem eu sabia para onde estava indo com aquela conversa. Talvez eu só precisasse desabafar, agora que ela não poderia me falar que era minha culpa. Que eu havia arruinado a vida dela.

— O fato de que agora você talvez morra por algo que foi minha culpa é... no mínimo, irônico. Mesmo assim, eu me sinto culpado por estar triste. Porque você me machucou e me magoou tantas vezes. E agora... — suspirei, a garganta apertada. — É estúpido, mas eu espero que você sobreviva para eu não ter que processar todo esse trauma de uma vez. Sei que é um motivo egoísta, mas é o único motivo que eu posso te oferecer agora para te desejar melhoras. Só... fica bem.

Quando sai do quarto, eu me sentia diferente. Tinha finalmente colocado em palavras os pensamentos que eu tinha medo de deixar chegarem à superfície. Me sentia exausto, mas também sentia que ia ficar bem.

Percebi que havia cometido um erro quando cheguei na sala de espera e olhei ao redor. Nenhum sinal de Eros.

Senti meu corpo ficar gelado. Ele não iria embora e me deixaria aqui sozinho, mesmo que eu tivesse ficado lá mais tempo do que o planejado.

Desesperado, peguei o celular para ligar para ele, e vi que Eros havia me enviado um áudio há pouco menos de 2 minutos.

Me surpreendi ao ouvir a voz de choro, soluçando desesperadamente, quase rouco.

— Zero... — soluçou. — Yan, acabou agora. Acabou. Você vai ficar bem sem mim. Você vai ficar bem — ele continuava repetindo, como se precisasse se convencer. — Me promete que vai esquecer de tudo isso. Só esquece. Esquece e segue em frente, ok? Eu te amo.

O áudio terminou, mas eu fiquei ali parado, em choque, e dei play novamente, só para ouvir sua voz mais uma vez.