Amarelo- Lírio e Fogo Azul

Capítulo 24- Zero


Zero

Eu adormeci no meio da briga, e, quando acordei, Eros não estava mais lá.

As paredes estavam sem os post-its, quadros, avisos, e o chão finalmente livre de todo tipo de coisas jogadas que Eros deixava por onde passava. Eros era bagunceiro e barulhento e irritante. E o quarto parecia absurdamente vazio sem ele aqui.

Suspirei, sentando na cama devagar e ignorando a sensação de que as paredes estavam rodando.

Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no +Fiction e em seu antecessor, o Nyah, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!

Achei o bilhete de Eros me pedindo para o ligar quando acordasse, e senti um misto de decepção e tristeza por ele ter ido sem se despedir de mim.

Eu ainda não tinha certeza de como agir depois da discussão que tivemos - se é que aquilo pode ser chamado de discussão, metade das nossas brigas se resumem em "Eros, eu quero que você seja prudente e fique vivo, okay?" e ele achando meu pedido um absurdo.

Eu ainda estava levemente com raiva - ou seria preocupação? se tratando de Eros, era quase impossível distinguir- , não saberia lidar com uma ligação, então só mandei, por mensagem, um "oi".

"Pensei que eu tinha te pedido pra me ligar" Eros respondeu, quase que imediatamente.

"Pensei que eu tinha te pedido para esperar

mais um pouco antes de ir."

Ele me mandou uma foto e, antes que eu pudesse processar completamente o que estava vendo, meus dedos digitaram o número de Eros e apertaram o botão de chamar.

Na foto, ele estava sorrindo e apoiando a bochecha na mão, mas, apesar da expressão calma, o rosto de Eros estava... cheio de hematomas.

— Eros, o que aconteceu com você? — perguntei, deixando o desespero escapar pela minha voz.

Ele riu, uma risada forçada e desconfortável.

— É, eu imaginei que fosse o suficiente para chamar sua atenção.

Eros.

— "Minha família" aconteceu, Zero. Não pensei que você fosse ficar surpreso.

Encarei a foto novamente. Um dos olhos de Eros estava em um tom arroxeado, tão inchado que mal conseguia ver suas íris, e haviam alguns arranhões que ainda sangravam. Fiquei enjoado de pensar que alguém da própria família dele pudesse ter feito aquilo.

— Você voltou pra casa?

— Não. Nunca. — disse, como se a ideia por si só o desse nojo.

— Então como...?

Eros respirou fundo. Parecia cansado só pela voz.

—Eu saí do Instituto e vim pra um hotel aqui perto, mas, assim que eu saí do carro, Hugo veio atrás. Eu não percebi que ele estava me seguindo. Eu deveria ter reparado, mas estava tão perdido nos meus pensamentos que só percebi quando ele começou a gritar que ia me levar pra casa e que era pra eu entrar no carro dele.

Eros fez silêncio e, pela maneira que estava respirando, imaginei que estivesse sentindo dor.

— E aí?

— Eu estava... sei lá, fora do ar. Não consegui reagir direito. Em qualquer outra circunstância, eu teria tido o prazer de bater nele até ele se arrepender de tudo que havia me feito passar. Mas eu só... fiquei parado lá enquanto ele tentava me arrastar para o carro.

—Eu... — comecei, mas as palavras ficaram presas na minha garganta.

Eros soltou outra risada amarga.

— Filho da puta. Ele viu que eu não estava reagindo e... sei lá, aproveitou a oportunidade. Daí fez o monólogo usual dele de como eu sou inútil, só que dessa vez ele acrescentou o fato de eu ter sido expulso e disse que eu tinha o dever de encarar nossos pais e falar o que eu tinha feito. Eu deveria ter reagido... eu não sei porque eu não... — Eros gaguejou — argh!

—Não foi sua culpa — sussurrei, quase que inaudível.

Imaginar Eros paralisado, indefeso, enquanto Hugo o batia me fez sentir tanta raiva que eu não sabia bem o que responder.

— Umas pessoas da rua pararam a briga — Eros continuou — Queriam chamar a polícia, aí ele saiu. E eu vim para cá pra dentro.

— Então você está em um hotel?

Ele suspirou, frustrado.

Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no +Fiction e em seu antecessor, o Nyah, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!

— É, mas não sei quanto tempo vou conseguir ficar aqui até meu dinheiro acabar. Eu... não faço a mínima ideia do que vou fazer agora, Zero.

Fiquei em silêncio, pensando no quão absolutamente sem sentido era o que eu ia dizer.

— Você poderia ficar lá em casa por enquanto. Não é um hotel de luxo, mas... sei lá, pelo menos você não vai ficar sozinho.

— É, eu posso ter a incrível companhia da sua mãe que, devo relembrar, me odeia.

— Minha madrasta gosta de você. E eu posso ficar aí com você por enquanto. Tipo, esse final de semana. E depois você volta para um hotel, se quiser. Eu só... honestamente, estou com medo de você sozinho. Não confio nas suas habilidades de auto preservação, principalmente quando sua cara está toda arrebentada.

— Zero, não precisa se preocupar comigo, sério.

Fechei a cara, sentindo a ironia de perceber que Eros estava me afastando.

— Eros, eu já sou oficialmente a pessoa que se isola quando está mal, não tem espaço para outra nesse relacionamento. Você tem cuidado de mim por todos esses meses. Só deixa eu retribuir.

Eros ficou em silêncio por alguns segundos, e eu pensei que ele estava considerando a proposta, mas então ele disse, baixo, quase sussurrando:

— Relacionamento.

— O quê?

— Você disse relacionamento. "Nesse relacionamento".

Engasguei, pego de surpresa pelas minhas próprias palavras.

— Eu - não foi o que eu- uma amizade é um relacionamento! — mudei de assunto rapidamente: — Você vai ir ou não, Eros?

Ele não respondeu, então insisti:

— Só por esse final de semana. Eu posso pedir pra Ana passar aqui e depois aí, se você não estiver conseguindo dirigir.

— Eu consigo dirigir.

— Isso é um sim?

—Zero, eu quero deixar avisado que é por sua conta se eu arrumar briga com sua mãe. Você sabe que ela me odeia! — reclamou.

— E daí? Ela me odeia também e viveu comigo por anos.

Eu conseguia imaginar o olhar de Eros, as sobrancelhas arqueadas naquela expressão de pena escondida num sorriso, que ele fazia todas as vezes que eu fazia piadas sobre minha mãe.

Quando Eros finalmente cedeu, liguei para Ana e avisei que estávamos indo. Ela ficou feliz por saber que eu passaria o final de semana em casa, mas eu definitivamente deixei de fora a parte sobre Eros ter sido expulso.

Quando Eros passou no Instituto para me levar até em casa, eu tentei esconder a surpresa em ver que ele estava ainda pior do que eu imaginava.

Eros não me deu nem sequer um "oi". Ele manteve as mãos no volante e os olhos na estrada e não falou nada além de um:

— Coloca o caminho no GPS.

Pensei que ele estivesse chateado comigo, mas depois lembrei que ele estava falando normalmente pelo telefone. Enquanto eu olhava para ele confuso, tentando decifrar sua expressão dura, Eros respondeu minhas perguntas silenciosas:

— Tem algo errado — murmurou. — Acho que desloquei o ombro de novo. Ou os pontos estouraram. Não sei. Eu não tinha percebido antes, mas... — ele desistiu da sua linha de raciocínio - Só tá... — e se remexeu, desconfortável — doendo. Bastante.

Arregalei os olhos, reparando na forma como uma camada de suor se formava no rosto de Eros, e como ele se encolhia todas as vezes que precisava virar o volante. Ele claramente não deveria estar ali dirigindo como se nada tivesse acontecido.

— Eros, para o carro antes que a situação piore— falei.

— É rápido daqui até sua casa. Eu aguento.

Ele parecia meio fora do ar. Eros não era de falar pouco, e o tom curto e firme não combinava com ele. Mesmo quando ele estava com dor ou chateado, ou até mesmo no meio de alguma crise de pânico, eu nunca havia o visto tão evasivo.

Contra a minha vontade, Eros dirigiu durante 15 minutos até minha casa. Quando paramos no portão, sua blusa estava molhada de suor. Ele soltou o volante e encostou no banco, fechando os olhos e respirando fundo.

— Você é teimoso demais para o seu próprio bem — sussurrei.

Ele abriu os olhos e deu um sorriso abalado.

— Eu sei.

Entramos em silêncio e, ao ver que estávamos sozinhos, Eros cambaleou até o sofá e deitou imediatamente, como se já conhecesse o local há anos.

Eu demorei alguns minutos para conseguir pegar um kit de primeiros socorros: Minha mãe odiava que eu usasse a cadeira de rodas, então ela propositalmente colocava as coisas da casa em locais altos demais para que eu alcançasse sem levantar. Ela achava que, de alguma forma, isso iria me incentivar- como se eu pudesse melhorar magicamente se simplesmente "tentasse um pouco mais" mas tudo que fazia era me obrigar a escolher entre pedir implorar ajuda a ela ou desmaiar por ultrapassar meus próprios limites. E eu não era muito bom em pedir ajuda.

Afastei os pensamentos antes que eles tomassem conta. Estava começando a me lembrar do porque odiava aquele lugar.

Fui até Eros novamente, que ainda estava deitado no sofá de olhos fechados.

— Tira a camisa — pedi.

Ele abriu um sorriso malicioso.

— Já? Sem nem um encontro antes?

— Será que você pode tentar não matar do coração a única pessoa que está aqui pra te ajudar agora? — reclamei.

Ele grunhiu baixo ao tentar se mexer. Ajudei Eros a sentar no sofá e tirei sua blusa com cuidado, tentando não prestar atenção no fato de que eu estava... bem, tirando a blusa de Eros.

Eros em silêncio era algo novo para mim, mas ele não falou uma palavra enquanto eu tirava os curativos antigos e limpava alguns dos cortes que haviam voltado a sangrar por causa do esforço físico que foi, ambos, dirigir, e a briga. Depois limpei os ferimentos novos no seu rosto e xinguei Hugo mentalmente com todas as minhas forças.

Eu estava fazendo um péssimo trabalho, colocando os curativos novos de forma desajeitada enquanto tentava ignorar que Eros se encolhia de dor toda vez que eu encostava. Apesar disso, ele me deixou cuidar dele sem dizer uma palavra, apenas confiando no que eu estava fazendo.

Eu observei cada cicatriz de perto, as novas e as antigas. Ele confiava em mim. Eu já sabia disso, mas aquele nível de intimidade, de certa forma, dimensionava o quanto. A ideia me assustava e reconfortava ao mesmo tempo.

— Eros? — chamei. Eu havia acabado os curativos, mas mantive minha mão nas costas de Eros por alguns segundos a mais do que deveria.

Ele olhou para mim por trás do ombro.

— A sua cicatriz do pescoço — falei. — Posso encostar nela?

Parte de mim só queria saber se eu podia, se Eros confiava em mim o suficiente para me deixar ultrapassar alguns limites que ninguém mais havia tido permissão de o fazer.

Enquanto fazia os curativos, eu me esforçava para não encostar nas cicatrizes, sem saber quais poderiam ter sido causadas por algo tão bobo quanto uma queda de skate e quais eram memórias da morte de sua irmã gravadas em sua pele.

Eros virou para o meu lado, ponderando a ideia.

Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no +Fiction e em seu antecessor, o Nyah, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!

Eu havia prendido seu cabelo, e o rabo de cavalo que fiz parecia mais um grande nó do que um penteado. Fios de cabelo caíam soltos pelo seu rosto e pescoço. Mesmo com o rosto cheio de hematomas, ele ainda era lindo. Se eu tivesse que definir meu ponto fraco, definitivamente seria Eros sem camisa e de cabelo preso.

— Por que? — perguntou, curioso.

Dei de ombros.

— Não sei.

— A resposta é "depende".

— Do que?

— Posso ver as suas cicatrizes?

Eros vivia sem camisa no dormitório, mas eu fazia o máximo para manter minha privacidade, com a exceção de levantar um pouco a blusa vez ou outra para aplicar insulina. Mas eu nunca havia contado sobre nenhuma cicatriz.

— Como você sabe?

— Eu só assumi. Você fez algumas cirurgias, não fez? E nunca fica sem blusa perto de ninguém. Era a conclusão óbvia.

Eros sabia metade da história, mas essas não eram as únicas cicatrizes que eu escondia.

Olhei para ele por alguns segundos, então assenti. Guiei a mão de Eros até a parte de baixo do meu moletom, mas Eros não se contentou com apenas sentir as marcas por baixo, e eu o deixei abrir o zíper do casaco para me ver sem camisa pela primeira vez.

Senti minha postura mudar, em uma leve posição de autodefesa, no momento

que Eros colocou a mão em mim. Ele se afastou imediatamente, e eu balancei a cabeça.

— Pode continuar — sussurrei.

Eros traçou com os dedos do início até o fim a cicatriz que dividia meu peito em dois, e eu tentei não pensar no medo que senti antes de fazer aquela cirurgia.

Desviei o olhar envergonhado com, ambos, o toque de Eros e a noção de que eu estava vulnerável como não me lembrava de estar antes na frente de outra pessoa.

— Eu gostei dessa — ele falou, me surpreendendo.

— O quê?

— Parece... rara, de alguma forma. Não é todo mundo que sobrevive a uma cirurgia cardíaca. Carregar uma cicatriz é a prova de que você sobreviveu. Certo?

Processei o que ele havia falado por uns segundos, enquanto sentia a mão de Eros deslizar até meu ombro.

— É, mas ajudaria se não tivesse ficado tão feia — falei, lembrando que, durante o processo de cicatrização, linhas desregulares e proeminentes haviam se formado.

Eros apenas passou a mão por outras cicatrizes cirúrgicas e parou a mão na minha barriga. Era um péssimo momento para se sentir auto consciente do próprio corpo fora de fora, mas eu não conseguia deixar de notar que, enquanto Eros carregava um corpo que ainda levava marcas de músculos definidos, eu era magro o suficiente para que ele conseguisse sentir minhas costelas. Pior do que isso, na parte superior, quase chegando na cintura, haviam algumas cicatrizes de auto mutilação que não haviam completado sumido.

— Eu era adolescente. Adolescentes fazem coisas estúpidas — me justifiquei, assim que Eros percebeu, mesmo antes de certificar se ele estava julgando ou não.

Mas ele não estava.

— Eu sinto muito — Eros sussurrou, um tom de tristeza.

— Foi estupidez.

Não. Não ouse diminuir sua própria dor assim — ele falou, sério, as sobrancelhas arqueadas. — Você ainda...?

— Não. Quando eu me mudei daqui, as coisas melhoraram eventualmente. É só que... minha mãe me odiava tanto que eu sentia que merecia todo esse ódio. Que eu merecia sofrer.

Eros ficou em silêncio, e desviou o olhar das cicatrizes para me olhar nos olhos. — Eu te amo — ele falou, e eu não me afastei. — Não precisa dizer de volta agora. Eu não estou com pressa. Mas eu te amo. Você merece ser amado.

Meu coração doeu quando minha resposta automática a pergunta foi ficar tenso e pensar: "não." Mas Eros levou a mão até meu ombro, e eu relaxei enquanto ele acariciava mais uma cicatriz que eu nem lembrava que estava ali.

— E pra responder sua pergunta inicial... — Eros falou, pegando minha mão e levando até seu pescoço. — Sim, você pode. Você pode tocar onde quiser. Pode fazer o que bem entender comigo, Yan, e eu nunca, nem por um segundo, hesitaria.

Eu o amava. Sabia que amava, mas não estava pronto para dizer em voz alta. Então o disse com um beijo.

Quando nos beijamos pela primeira vez, no corredor do Instituto, estávamos ambos tensos e desesperados, e nos beijamos como se aquela pudesse ser, simultaneamente, a primeira e a última vez. Mesmo ali, na calmaria da minha casa, Eros me beijou com a mesma intensidade.

Segurei seu cabelo tão forte com medo de soltar e perceber que aquilo tudo não passou de um sonho febril.

Como alguém poderia me amar com tanto amor e ódio e intensidade, eu não sabia, mas me agarrei a Eros, figurativamente e literalmente, e beijei em seus lábios todas as palavras que não conseguia dizer.

Eros se afastou quando percebeu que eu estava ficando sem ar.

— Desculpa — falou, baixo, mas estava sorrindo.

Eu não pude evitar de sorrir de volta.

— Você está estranhamente afetivo hoje.

Eros passou a mão pelos meus cabelos.

— Não, Zero. Eu sou sempre assim. Você é que não me dá oportunidade.

Dei de ombros.

— Eu faço escolhas ruins às vezes.

— Como me beijar?

Balancei a cabeça negativamente.

— Como não te beijar mais frequentemente.

— Mas a gente pode mudar isso... — Eros falou, se inclinando para o meu lado.

Nós dois nos afastamos assustados quando ouvimos o barulho de chaves no portão de fora. Fechei o casaco e Eros colocou a blusa tão rapidamente que não reparou que estava do lado avesso. Tentamos fazer a expressão mais neutra possível enquanto Ana entrava em casa.

Meus ouvidos zuniam de adrenalina. Por alguns segundos, me senti um adolescente novamente, inconsequente e despreocupado.

Ana colocou a bolsa na cozinha, e falou de lá:

— Sua mãe te ligou hoje?

Respirei fundo, e senti que ia chorar sem nenhum motivo aparente. Voltar para o mundo real era doloroso demais.

— Não — respondi. — Ela nunca liga. Por que?

— Ela saiu hoje mais cedo e não me avisou para onde. Estou começando a ficar preocupada.

Conhecendo minha mãe como eu conhecia, provavelmente ela estava se drogando em algum lugar. Ana disse que mamãe estava sóbria nos últimos meses, mas eu me recusava a acreditar.

Ana olhou para mim, e depois para Eros.

— Meu deus, o que aconteceu com sua cara? Leonardo, não é?

Eros colocou sua máscara de garoto sociável e perfeito de forma tão natural que eu mal teria acreditado que alguns minutos atrás ele estava quase desmaiando de dor e, logo em seguida, quase me fazendo desmaiar.

— Tem alguma forma de eu falar que me meti em uma briga sem você achar que eu sou uma péssima influência pro Zero? — perguntou, forçando um sorriso.

Eros manteve a expressão alegre enquanto jantávamos, conversando com Ana com a mesma naturalidade que ele conversava com todo mundo. Mas, conforme os minutos foram passando, nós dois fomos voltando à realidade, relembrando das coisas dolorosas. A expressão de felicidade de Eros estava lentamente se desfazendo e dando lugar ao olhar desolado que eu havia encontrado hoje mais cedo.

Assim que Ana me ajudou a colocar um colchão no meu quarto e fomos dormir, ele voltou a ter aquela expressão distante. Meu quarto era cheio de fotos, jogos, e prateleiras com muitas coisas que eu imaginei que Eros iria fuxicar como sempre faz com tudo, mas, ao invés disso, ele sentou no colchão em silêncio e pegou o celular.

— Meu pai está me ligando direto tem uns 30 minutos — sussurrou, ignorando a chamada. Ele olhou para mim, juntando as sobrancelhas. — E se a gente fugisse juntos e fingisse que nada disso está acontecendo?

Eu não sabia bem se era uma brincadeira ou não.

— É tentador — respondi, e olhei para a tela. — Você não vai atender?

Eros apontou para o olho roxo.

— Acho que minha família já me fez passar estresse suficiente por hoje.

Eu não sabia mais o que falar, então fiquei quieto e deitei na minha cama.

Eros ficou em silêncio por mais tempo do que eu já havia o visto fazer silêncio, e, julgando pela forma que ele havia voltado a se remexer de um lado para o outro, eventualmente segurando um gemido de dor, imaginei que o efeito dos analgésicos estavam passando.

— Tá tudo bem? — falei, o que era uma pergunta estúpida, mas eu não sabia bem o que falar.

Eros virou de lado e me encarou. Eu estava deitado na cama do lado do colchão, enrolado em um cobertor. Pensei que ele fosse se irritar e falar o óbvio — que não estava tudo bem, que ele havia acabado de ser expulso, que havia apanhado do seu próprio irmão e que estava morrendo de dor.

Ao invés disso, Eros olhou para mim e perguntou:

— Você tem um espelho por aqui?

— O quê?

— Um espelho. Onde tem um espelho?

Apontei para o guarda roupa. Eros levantou e abriu a porta, encarando seu reflexo.

— Hugo parece comigo — foi o que ele disse. — Será que é daquele jeito que eu pareço quando estou com raiva?

Sentei na cama devagar, o ângulo que eu estava me permitia que eu visse Eros apenas pelo reflexo. A semelhança entre ele e Hugo era algo que eu evitava de pensar, mas todos os irmãos eram absurdamente parecidos. Eu conseguia ver pela expressão de Eros que ele odiava isso mais do que poderia racionalizar.

Quando fiquei em silêncio, Eros me olhou pelo espelho e murmurou:

— O jeito que ele olhou para mim... ele sempre me odiou, mas dessa vez...

Ponderando a forma como Eros se analisava como se quisesse arrancar o próprio rosto fora, a maneira como eu nunca havia o visto tão calmamente sombrio, eu sabia que ele havia entendido, mas falei mesmo assim:

— Foi o Hugo, não foi? Que matou a Wendy.

Ele virou para mim, mas apesar de olhar diretamente em meus olhos, parecia estar em outro lugar. Eros assentiu com a cabeça apenas uma vez, e franziu as sobrancelhas.

— Reconhecer os gêmeos no meio de memórias borradas é... dificil. Eu não tenho certeza. Mas a forma como Hugo me olhou hoje... Eu conheço aquele olhar. Eu tive pesadelos demais com aquele olhar para não o reconhecer.

Eu conhecia a sensação de dissociar bem o suficiente para saber que Eros estava saindo da realidade, e eu não sabia como chamá-lo de volta.

Eros colocou a mão em cima do olho roxo novamente. Então olhou para mim.

— Como você sabia? — perguntou.

Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no +Fiction e em seu antecessor, o Nyah, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!

— Porque nunca fez sentido que fosse o Henrique e Hugo é a pessoa mais óbvia a se culpar. Eu não sei porque Henrique foi até você e confessou. Mas acho que, se ele fosse realmente o culpado, não teria feito isso. Toda vez que você e Hugo brigam, ele joga isso na sua cara. "Wendy" isso, "Wendy" aquilo. Nunca me pareceu só para te irritar, ele ativamente gosta de ver sua culpa. Se você se culpasse o suficiente e se odiasse o suficiente para não querer recuperar os detalhes da sua memória, então ele nunca teria que lidar com isso. Quando você falou no hospital que lembrou do que tinha acontecido... que você só conseguiu fugir depois que Wendy morreu... ficou claro que ele forçou essa narrativa até que você e todo mundo acreditasse nela — eu balancei a cabeça, enojado pelas minhas próprias palavras. — Eles são gêmeos. É o álibi perfeito. Talvez eu esteja errado, mas não acho que estou.

Eros sentou na cama do meu lado, os olhos levemente arregalados enquanto encarava o chão.

— Se você desconfiava, então porque... — ele parecia decepcionado, e eu senti que meu peito estava rasgando ao meio — Porque não comentou comigo antes?

Eu não respondi, então ele falou:

— Eu vou mataro Hugo.

Não era um tom de ameaça.Eros estava apenas afirmando.

— Por isso.

Eros me encarou como se pedisse ajuda. Como se não confiasse em si mesmo e acreditasse nas próprias palavras tanto quanto eu.

Eu coloquei minha mão em seu rosto devagar e o virei para mim.

— Eros, promete que não vai.

Ele pareceu confuso, e com raiva.

Por que eu prometeria isso?

— Por que se você matar ele, então o que acontece com você depois?

Eros tirou minhas mãos de seu rosto bruscamente, e virou para o lado.

— Eu não me importo. Eu não tenho mais nada o que perder.

— Eros, me escuta — pedi. — Olha para mim.

Ele ignorou.

— Eros, olha para mim — repeti, firme. — Eu acredito em você. Acredito que tenha sido o Hugo. Mas não temos como provar. Você vai pra cadeia por assassinato premeditado, Eros. Vamos provar legalmente que ele é o culpado. A gente não precisa resolver isso com as próprias mãos.

Eros soltou uma risada irônica.

— É, porque isso claramente deu certo quando a gente resolveu tentar juntar provas sobre o Davi e os desaparecimentos.

Aquilo doeu como um soco no estômago.

— Você precisa me ajudar a chegar ao fim dessa história — implorei, com a única arma argumentativa que tinha. — Você deve isso a Alice. E a mim. Não faça nada com Hugo até a gente chegar ao culpado dos desaparecimentos. Você sabe que estamos perto. E, graças a sua atitude impulsiva, a qualquer momento alguém pode te ligar e nos dar informações novas. Temos um plano, lembra? Você criou ele. É um bom plano. Promete que não vai fazer nada até que os culpados pela morte de Davi e de todos aqueles estudantes estejam na cadeia. E aí você faz o que bem entender com Hugo.

Eu não estava falando sério sobre a última parte, mas eu só precisava fazer Eros esperar mais um pouco, e aquela me pareceu a forma mais concreta de tentar controlar seus impulsos.

Eros assentiu.

— Tudo bem.

Parte de mim queria que Eros chorasse. Que gritasse, surtasse- qualquer coisa. Qualquer coisa que não fosse aquela apatia terrível que eu nunca havia presenciado. Eu sabia lidar com as crises de Eros, mas não sabia lidar com ele sentado e anunciando, calmamente, que pretendia matar o próprio irmão.

Ele parecia uma pessoa completamente diferente do Eros que sempre estava comigo, essa era a parte que me assustava mais.

Ele estava em estado de choque e eu sabia por experiência própria que dissociar dos próprios problemas era uma receita garantida para uma eventual explosão. Eu tinha medo do que aconteceria quando Eros finalmente explodisse.

— Eu vou dormir — murmurou, e deitou, se enrolando completamente na coberta.

Eu não sei quando Eros dormiu, mas sei que eu não dormi. Sempre que fechava os olhos por mais de alguns minutos, me sentia obrigado a abrir de novo e olhar para baixo, me certificando de que Eros estava ali e que estava bem.

Ele sempre repetia as mesmas frases enquanto tinha pesadelos. Eu já havia me dessensibilizado a elas, mas imaginar que o responsável por aqueles pesadelos estava, não só solto, mas convivendo diariamente com nós dois, me fazia sentir ondas de ódio e náusea.

Eros se remexeu na cama.

Por favor. Por favor, não — sussurrou. — Eu faço qualquer coisa, eu prometo. Não. Não! Ela não!

Tampei os ouvidos com força.

Eu não conseguiria lidar com aquilo. Não agora, não hoje.

A reação de Eros ao ser acordado de pesadelos geralmente era tão abrupta e assustada que eu sempre preferia deixar ele dormir. Eu estava considerando acordá-lo, quando ele mesmo levantou rapidamente, puxando o ar para seus pulmões como se estivesse se afogando. Pensei que fosse apenas o susto de acordar, mas Eros continuou arfando, sufocando, ainda confuso.

Impulsivamente, me movi até a cama de baixo ignorando a tontura que o movimento repentino causou, e tentei acalmar Eros por mais ou menos 30 minutos.

Pareceu uma eternidade. Pareceu que nunca ia acabar.

Quando eu conseguia arrancar o mínimo de uma respiração profunda de Eros, ele recomeçava a entrar em pânico rapidamente. Eu sabia que encostar nele só pioraria, então tudo que pude fazer foi o assegurar que estava ali e me esforçar o máximo para o ajudar a controlar aquela crise, mas parecia em vão.

Assim que começou a se acalmar, antes que sua respiração voltasse ao normal e seu corpo parasse de tremer, Eros correu até o banheiro e vomitou.

Foi preciso algumas horas, um banho e alguns copos de água para que Eros se acalmasse o suficiente para voltar a deitar. Estava quase amanhecendo quando ele dormiu novamente.

Eu acordei antes de Eros. Ele precisaria de bastante sono para se recuperar, então eu não estava surpreso que ainda estava dormindo. Minha cabeça doía e eu estava exausto; aquela havia sido uma noite terrível. Eu não conseguiria lidar mais com nada, por mais simples que fosse.

Nem tive forças para entrar em desespero quando peguei meu celular e li na tela a mensagem, de um número desconhecido que eu sabia muito bem quem era.

"Espero que tenha gostado do presente. Talvez queira avisar a seu amigo para manter a boca fechada da próxima vez que ele for aparecer em rede nacional".

A mensagem era de duas horas atrás. Eu não entendi bem o que havia acontecido até que sai do quarto e li o post it com a letra corrida da Ana:

"Estou no hospital com a sua mãe. Me liga imediatamente".