Amarelo- Lírio e Fogo Azul

Capítulo 23 [Parte 1] - Zero


Zero

O medo nos olhos de Eros sumiu tão rápido quanto apareceu. Mesmo que suas mãos tremessem levemente, seu rosto assumiu uma expressão calma e confiante, olhando para as câmeras ao seu redor, que transmitiam tudo ao vivo para a televisão, como se estivesse acostumado com toda aquela atenção. Provavelmente estava mesmo.

A repórter foi em direção a ele, sorrindo.

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—Chegamos aqui então na última exposição artística do Festival Cultural do Instituto Newton, a primeira desse ano — falou. — Dessa vez, temos uma presença nova aqui com a gente, mas acredito que muita gente já o conheça. Leonardo é filho de Maria Mendes, uma das maiores escritoras aqui do Brasil, e também foi uma das vítimas do caso de sequestro e assassinato envolvendo professores do Instituto que abalou todos. Leonardo, eu acho que falo por todos nós quando digo que é uma surpresa que, depois de tudo que aconteceu, você tenha vindo estudar aqui mesmo assim.

—É uma tradição de família — respondeu, confiante, mas eu o conhecia o suficiente para saber que estava incomodado.

—E que família, hein? Eu, pessoalmente, sou uma grande fã dos livros da sua mãe. Principalmente o que ela conta como foi lidar com perder uma filha de maneira tão horrível, foi realmente tudo muito trágico. Para contextualizar um pouco nossos espectadores que não conhecem, você gostaria de nos contar um pouco sobre?

Puta merda.

Todos ficaram em silêncio absoluto. Era esperado que eles desviassem o assunto para tentar tirar alguma informação sobre o caso dele e de Wendy, mas assim? De primeira?

Eros respirou fundo, tentando manter a calma.

—Eu adoraria, mas acho que o Instituto não ficaria muito feliz comigo se eu tirasse o foco do festival deles para falar da minha vida pessoal, não é?

Ele olhou para trás, apontando os quadros, com um sorriso passivo agressivo que dizia "ei, não é pra isso que vocês estão aqui" embora já imaginássemos que era exatamente para aquilo.

—Acho que você concorda comigo que é impossível de entender uma arte sem contextualizar a vida do artista — insistiu.

Eros passou os olhos pelas pessoas atrás da câmera e achei que estivesse procurando por mim.

Eu não sabia qual era a pior parte: Eros indo revelar sobre os desaparecimentos das pessoas nos quadros ou o fato de que ele parecia prestes a ter um ataque de pânico em rede nacional.

Quis puxá-lo pelo braço e o tirar dali ele querendo ou não.

—Se alguém quiser saber, pode comprar o livro da minha mãe — falou, em tom de brincadeira. — Felizmente, os quadros de hoje não tem nada a ver com esse assunto. Na verdade, — falou, se deslocando para o lado do primeiro quadro, forçadamente mudando o foco — eu decidi fazer uma homenagem para alguns alunos do Instituto.

Se ele estava prestes a realmente revelar o que descobrimos, ou apenas parte disso, então aquela repórter teria uma matéria exclusiva muito mais chocante.

A mulher cedeu, pedindo o para falar mais sobre.

O olhar de Eros finalmente encontrou o meu, como se precisasse de coragem. Balancei a cabeça negativamente.

Não faz isso, falei sem fazer barulho. Ele olhou para baixo rapidamente, e então sorriu de novo, a confiança falsa reaparecendo.

— O tema é saudade — ele disse, o sorriso morrendo aos poucos. —Todas essas pessoas, em algum momento, estudaram aqui. Algumas delas no mesmo curso que eu, algumas delas só passaram por mim nos corredores. Mas todas elas fizeram parte do ecossistema que é esse Instituto. — ele olhou nos olhos da repórter como se estivesse falando apenas com ela, talvez para se acalmar. — Acho que você sabe, mas somos conhecidos aqui pelas altas taxas de evasão. É muito competitivo. Muita pressão. Certo? Mas eu poderia passar mil dias se fosse pintar todas as pessoas que saíram. Não, tem algo de especial nessas pessoas aqui. Eu escolhi elas por um motivo.

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—E qual seria? — a mulher perguntou, quase que tendo que interromper Eros. Ele claramente estava tomando conta da entrevista, dominando a situação como se só ele existisse ali. Algo no olhar de Eros era quase cruel, vingativo. Deuses, como ele era bonito.

E também estupidamente inconsequente.

—Acontece que... — falou— depois que supostamente saíram daqui, nenhuma delas foi vista em lugar nenhum. — ele olhou ao redor, e começou a apontar quadro por quadro, falando os nomes de cada um. Senti um arrepio percorrer meu corpo, sabendo o que provavelmente havia acontecido com aquelas pessoas. — Muitas delas não tinham amigos aqui para se despedir. Elas só... desapareceram à luz do dia. E ninguém percebeu. As contas nas redes sociais pararam de ser atualizadas, todas nas datas exatas em que foi registrada a desistência do Instituto. Ninguém chegou em casa - e aposto que muitos pais e parentes pensavam, até então, que os filhos estivessem aqui.

—E o que você está insinuando?

—Nada. Não estou insinuando nada. Pode ser só uma coincidência. Na verdade, eu espero que seja — ele olhou diretamente para câmera. — Mas , se algum desses rostos é uma pessoa próxima de alguém que está assistindo... se você acha que eles estão aqui no Instituto, sãos e salvos... bom, não estão. Dessas pessoas, a única que tivemos notícia foi essa — ele apontou para o quadro no centro, com pesar nos olhos — Davi Barros Andrade. Era meu amigo. Assim como essas pessoas, ele também declarou desistência do curso. E sumiu. Não o vi por dias até que ele apareceu morto. — Eros fez silêncio por uns segundos, e nem a repórter soube dizer algo posto o que Eros estava falando. — Se alguém tiver alguma informação sobre qualquer uma dessas pessoas, por favor, por favor, entre em contato comigo nesse número. — ele olhou para os quadros novamente.

E então o filho da puta começou a falar o próprio número. A repórter estava atordoada, e um silêncio congelante pesava em todos que estavam assistindo, sem saber bem o que estavam presenciando.

Eu sabia que Eros estava apenas começando a falar, mas, assim que continuou, prestes a contar sobre as outras coisas que haviam acontecido comigo e com ele, todas as luzes se apagaram.

O microfone fez um barulho estridente.

Todos os alunos começaram a falar ao mesmo tempo.

— Parece que estamos tendo algum tipo de problema técnico. Voltamos já em alguns minutos.

Alguém sussurrou, atrás de mim:

— Mas como faltou luz se o Instituto tem um gerador?

Parecia que houve, em uma comoção rápida, o reconhecimento geral de que Eros poderia estar certo. E de que poderíamos estar em perigo.

Antes de qualquer inspetor aparecer, ou qualquer funcionário do Instituto ir até lá, Eros foi para perto de mim e falou, baixo:

—Vamos sair daqui.

Eu estava com tanta raiva.

—Eros, que porra foi aquela?

Ele respirava rápido, nervoso.

— Você briga comigo quando a gente estiver trancado dentro do quarto. Vamos sair antes que a luz volte ou alguém chegue. Por favor?

Eu não conseguia enxergar nada ao meu redor. Algumas pessoas haviam ligado as lanternas do celular, o que só piorou a situação já que tudo que eu via eram focos de luz aleatórios borrando todo o resto.

—E como a gente sai daqui agora? Eu não to vendo nada. E já é terrível tentar me locomover com a cadeira nesses corredores daqui que parecem pistas de obstáculos, imagina no escuro ! — reclamei. — Mas você definitivamente tem que sair daqui imediatamente. Acha algum lugar para se esconder até a luz voltar. Esse é o cenário perfeito para darem um sumiço em você — falei. A única coisa maior que minha raiva por ele ter feito aquilo era minha preocupação. — Só... se esconde.

Murmurei, baixo "inconsequente do caralho", com raiva, mas meu corpo inteiro tremia enquanto eu processava que, se haviam deixado Eros escapar antes, ele agora havia dado um motivo ainda maior para não deixarem novamente. Eu o odiava por isso. Por não poder ficar.

Senti Eros ficar mais perto, então percebi que ele havia se abaixado na minha frente, repousando a mão na minha perna.

—Sem você? — perguntou, a voz chorosa.

—Só vai. Se esconde. Eu te vejo quando as luzes voltarem. Tudo bem?

Ele deitou a cabeça no meu colo. Estava tremendo. Esteve tremendo desde que perguntaram sobre a irmã dele, e achei que Eros fosse começar a chorar. Mas não havia tempo para isso, e ele sabia.

Se levantou e ouvi passos em direção a porta, mas, antes que ele pudesse sair, ouvi a voz de Luciane, a coordenadora, dizendo:

—Leonardo, na minha sala agora.

—É que eu tenho essa coisa urgente para resolver e... — tentou arrumar uma desculpa.

Agora.

E então ela gritou para o resto dos alunos que eles estavam identificando qual era o problema com a eletricidade, mas que ninguém precisava se preocupar.

Vi, pela lanterna do celular de Eros, que eles estavam se afastando. Eu não poderia deixar ele ir sozinho.

Fiz meu melhor para o seguir pelo corredor me guiando pela luz do celular e pelo pouco de luz que vinha de alguma das janelas. O céu já estava quase escuro, então não era muito. Bati a roda nas paredes algumas vezes e tenho certeza que passei por cima de algo.

Alguns alunos também transitavam pelo corredor, mas eu não sabia como ir até a sala com eles sem parecer suspeito. Percebi que eu não conseguiria nem se quisesse- sem luz, não haviam elevadores. Eu estava preso no andar de cima.

—Pelo menos não é um incêndio — murmurei, frustrado, enquanto ouvi os passos de Eros e Luciane descendo as escadas.

Peguei o celular e liguei para Eros, e ele pareceu entender o recado. Eu precisava ter certeza de que ele estava seguro.

—Desculpa, minha mãe me ligou — o ouvi falando com Luciane. — Já desliguei.

Eros escondeu o celular com a mão e me deixou na linha, escutando. Por precaução, comecei a gravar a ligação, observando impotente enquanto ele se afastava.

Meu coração estava acelerado, com medo do que aconteceria com Eros. A pior parte era que, se Luciane, ou outros funcionários do Instituto, realmente estivessem encobrindo os desaparecimentos, então Eros sozinho com eles - com todas as luzes apagadas e câmeras desligadas - colocava em risco muito mais do que apenas a carreira acadêmica de Eros.