Amarelo- Lírio e Fogo Azul

Capítulo 20- Eros


Eros

—Qual é o plano? — Alice perguntou, assim que dirigimos longe o suficiente para que o Instituto sumisse de vista.

Estava escurecendo, e eu havia deixado todas as janelas do carro abertas, apesar do frio, para lutar contra a sensação de que estava sendo sufocado. Pensei na pergunta de Alice por uns segundos, e falei o endereço que haviam me dado.

—Isso não responde a minha pergunta. E nem é uma explicação.

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Ela parecia nervosa, e eu sabia que me conhecia o suficiente para entender que eu estava prestes a fazer algo que iria me arrepender depois.

—Você precisa ficar algumas ruas antes — avisei.

Alice virou o rosto para mim rapidamente, irritada.

—O que? Por que?

—Eu prometi que iria sozinho.

—Prometeu para quem? Eu sei que você tá claramente alterado por causa de toda essa coisa do Zero. Eu entendo a sensação — apesar das palavras, seu tom era ríspido —Você sabe que eu entendo, mas precisa parar de agir por impulso!

A estrada estava pouco movimentada, e Alice parou o carro no acostamento apenas para me olhar. Eu a pediria para continuar andando, afinal, não tínhamos tanto tempo, mas não tive coragem de falar sequer uma palavra.

—Eros, eu sinto muito pelo que eu vou te dizer agora. Mas Zero pode estar morto. Você sabe disso. Mas o que você vai fazer? Morrer com ele? Morrer tentando salvar ele? Eros, eu... — seus olhos estavam cheios de lágrimas — Você é meu melhor amigo. E eu te amo. E o Zero... tem sido uma das amizades mais sinceras que eu fiz. Eu sinto como se você... vocês dois, fossem pessoas que eu preciso, de alguma forma, proteger. Parece ontem que eu perdi o Davi. A sensação de ter um buraco se abrindo dentro de mim nunca parou. E agora o Zero sumiu, e a sensação é ainda maior. — Alice encolheu os ombros — Eu não sei o que o aconteceu com Zero, mas, Eros... eu não posso perder você também.

Alice me olhou como se esperasse que eu dissesse "tá bom, vamos voltar então." Como se eu desistisse. Meu coração doía, mas eu não conseguiria voltar atrás. Era a pior hora possível para contar onde estávamos indo. Ou melhor, onde eu estava indo. Mas expliquei da mesma forma. Contei para Alice tudo que havia acontecido, desde eu ter encontrado meu irmão até o que falei e a ligação. Falei que descobriria um jeito de voltar vivo, que eu só precisava que Zero estivesse seguro primeiro. Ela dirigiu em silêncio até duas ruas antes de onde eu havia marcado de encontrar Zero. Claramente não concordava, mas eu não sabia bem se estava apenas processando as informações ou pensando em uma forma de me convencer.

—Deixa o carro aqui — falei. — Eu vou andando. Você precisa voltar, de qualquer forma.

—Não — ela disse. — Eu vou esperar. Zero volta comigo.

—Como?

Ela balançou a cabeça.

—Não sei. Mas é a única forma segura de garantir que nada aconteça com vocês dois ao mesmo tempo. Só... vai até lá e tenta negociar para alguém conhecido trazer ele de volta. Eu espero uns minutos e finjo que vim direto do Instituto. Você consegue fazer isso?

Assenti.

—Sim. Obrigado — falei, e senti minha garganta ficar apertada. — Por tudo.

Alice estacionou o carro e me abraçou com força.

—Arruma uma forma de voltar vivo — sussurrou. — Você é inteligente demais para só desistir.

—Tudo bem.

—Não. Eros, é sério. Você promete? Promete que vai tentar? Se você não conseguir... bom, você não tem nada a perder.

Prendi o cabelo, conferi se a arma estava carregada e dei um sorriso triste para Alice.

—Eu prometo.

O local marcado era um posto de gasolina abandonado, eu descobri, conforme chegava mais perto.

Na verdade, tudo ao redor parecia abandonado, iluminado apenas por um poste de luz e uma única lâmpada do posto, piscando esporadicamente, prestes a queimar a qualquer momento. Todo aquele silêncio era intimidador por si só.

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O único sinal de que eu estava no local certo era um carro parado do outro lado do posto, sem placa e com os vidros escuros, mas ligado. Assim que a porta se abriu, me percebi ajeitando a postura. Respirando fundo. Manter meu orgulho, naquele momento, não serviria para nada, mas eu não conseguiria me livrar dele mesmo se tentasse.

Dois caras vieram andando até mim, cautelosamente, e, enquanto um parecia observar o ambiente, o outro, mesmo de longe, apontava um revólver na minha direção. Eles realmente não haviam me subestimado, para minha tristeza. Não movi um músculo, com medo de que qualquer movimento revelasse o pânico que começava a subir pela minha garganta.

Assim que se aproximaram e o primeiro homem abriu a boca para falar, o interrompi:

—Onde está Zero?

O que segurava a arma parecia ter, mais ou menos, a minha idade, e seu olhar de impaciência me dava a impressão de que ele não hesitaria para atirar em mim ali mesmo. O outro, entretanto, era mais velho e mais alto, e tinha a expressão mais calma. Nenhum dos dois estava minimamente interessado na minha presença, ou preocupados com suas próprias identidades.

—Que patético — murmurei. — Toda aquela conversa para o chefe de vocês não ter nem a coragem de vir até aqui me intimidar pessoalmente.

—Você vai conhecê-lo quando chegar o momento — o mais alto falou. — Vamos.

Neguei com a cabeça.

Yan. Onde ele está?

Ele olhou para o carro e fez um sinal com a cabeça.

Reparei que o mais novo me olhava intensamente. Com ódio. Se eu estava certa sobre esses dois serem apenas peças em um grande jogo de xadrez, então ele provavelmente não sabia dos detalhes do que estava acontecendo. Não tinha motivo nenhum para sentir ódio de mim. Talvez...

Não quero soar prepotente, mas sei que sou, objetivamente, bonito. Já havia usado aquilo a meu favor muitas vezes antes.

—Qual seu nome? — perguntei, baixo.

—Não interessa.

Forcei um pequeno sorriso.

—Eu tenho direito de saber o nome da pessoa que veio me matar, não? Considere meu último desejo — falei, dando um passo minúsculo na direção dele.

Ele cedeu, e vi que seus ombros ficaram tensos.

—Victor.

O olhei de cima a baixo.

—Esse é um nome bonito.

Eu estava tentando seduzir a pessoa apontando uma arma para mim? Talvez. Mas eu precisava de toda a vantagem que conseguiria arrumar.

O barulho da porta do carro abrindo chamou minha atenção. Me senti entrando em um transe, aos poucos, quando vi a terceira pessoa sair do carro, arrastando pelo braço um Zero semiconsciente.

Meus ouvidos zumbiam. Eu conseguia ver Zero abrindo e fechando os olhos, confuso, como se tentasse entender o que estava acontecendo. Parte de seu braço era arrastado pelo cimento, deixando arranhões tão fundos que manchavam o caminho de sangue, mas ele não tinha reação. Mal conseguia se manter acordado.

Eu estava com tanta raiva que era quase uma forma de calma, uma dormência que me impedia de falar qualquer coisa.

O homem foi até alguns metros de nós, se posicionado atrás dos outros dois, e empurrou Zero, que bateu com força no chão e desmaiou.

Meu coração estava acelerado. Meu corpo todo se tensionou, lutando contra o instinto automático de correr até Zero. A sensação de impotência, de observar de longe e não poder fazer nada, trouxe a minha cabeça uma memória de Wendy. Pisquei os olhos, rapidamente me forçando a voltar para a realidade.

—Pensei que o combinado fosse que ninguém machucaria Zero — murmurei, irritado.

Victor riu, baixo.

—Ele está vivo. Não é o suficiente?

—É mais do que você vai ter — o outro completou.

Lembrei de Alice.

Você é inteligente demais para só desistir.

Sempre que eu entrava em algum lugar, minha mente automaticamente procurava por todas as saídas. Sem que percebesse, eu já havia examinado todas as instalações e rotas de fuga que eu poderia ter.

Estava tudo muito escuro. Se eu conseguisse apagar uma das luzes... se conseguisse pegar Zero e levá-lo até a floresta, então talvez poderíamos nos esconder até que eles desistissem de procurar.

Mas, apesar daquilo ser tão familiar para mim - a ideia de fugir-, eu ainda precisaria despistar dois caras armados. Olhei para o homem parado atrás, perto de Zero. Três. Claro, eu sabia lutar, mas não treinava desde que entrei no Instituto, e, mesmo contando com o fator surpresa de eles não saberem que eu estava armado, ainda não era nem de longe tão bom em atirar quanto precisaria ser. Era muito arriscado.

A forma mais fácil de garantir que Zero sairia dali em segurança, que conseguiria atendimento médico e iria para um lugar seguro, era apenas obedecendo. Se dependesse apenas de mim, provavelmente não pensaria duas vezes. Eu conseguia arriscar minha vida, mas não a dele.

—Eu não confio em vocês — falei, e apontei para Zero. — Ele vai embora com alguém da minha confiança.

O homem mais velho revirou os olhos e Victor apoiou o dedo no gatilho.

—Não acho que você esteja em condição de fazer exigências.

Ele parecia menos firme do que quando chegou, como se lutasse contra a ideia de ceder, evitando olhar em meus olhos diretamente. Meu joguinho estúpido estava funcionando.

Enquanto eu tentava, ao mesmo tempo, negociar e explorar o ponto fraco que havia acabado de descobrir, reparei que Zero havia acordado. Tentei não chamar a atenção deles para o fato, mas conseguia sentir ele me olhando.

Quando meu olhar cruzou com o de Zero, ele desviou. Não parecia triste, ou com raiva. Apenas... urgente. Olhou firmemente para os dois caras, e então para mim de novo. Repetiu o gesto. Estava tentando me dizer algo.

Comecei a enrolar. Precisava de mais tempo para descobrir o que. Eu tinha todas aquelas ideias bagunçadas e planos de fuga, mas não conseguia racionalizar como. Se havia alguém capaz de fazer aquilo, era Zero.

Eu não sabia bem o que ele estava tentando me dizer, mas confiava nele. Eu tinha metade de um plano- Zero tinha a outra metade.

Enquanto falava com os caras na minha frente, percebi Zero tentando tirar algo do bolso, se encolhendo como se sentisse dor, mas usando o próprio corpo para bloquear a visão do homem ao seu lado. Eu precisava distraí-los. Precisava chamar a atenção de todos eles para mim.

Eu sabia que, realisticamente, não tinha chance em uma briga. Eles não poderiam me matar, mas certamente atirariam em defesa própria.

Então honrei meu legado de criança mimada e fiz a mesma coisa que o eu de 10 anos faria: comecei a chorar.

Ou melhor, fingir que estava chorando. Tão alto e escandaloso quanto eu consegui, me certificando de fazer todos os movimentos bruscos que eu consegui imaginar, enquanto reclamava o quanto isso era injusto. Funcionou. Todos eles imediatamente apontaram as armas para mim, com medo de que qualquer movimento meu fosse uma desculpa, uma armadilha para atacá-los. Olhei para Zero rapidamente e ele assentiu com a cabeça.

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Eu precisava mantê-los entretidos o suficiente para que não prestassem atenção em Zero, mas não tanto que realmente atirassem ou fizessem algo contra mim.

Então eu vi, discretamente, na mão de Zero, parecia uma vareta de incenso que ele tentava, sem se mexer muito, acender com um isqueiro. Por meio segundo, me perguntei se o plano brilhante de Zero era explodir tudo com nós dois aqui.

Num gesto exagerado, Zero prendeu a respiração. Assumi que era para fazer a mesma coisa.

A fumaça não era densa. Saiu bem devagar, quase transparente. Eu não sabia exatamente o que ela fazia, mas não demoraria para eles perceberem, e não acredito que conseguiria manter nós dois a salvo caso resolvessem atacar Zero ao invés de mim.

Eu estava ficando sem ideias para enrolar, e eles estavam ficando impacientes. Não achei que tivéssemos mais tempo.

Victor deu um passo para frente, e eu conseguia ver que estava com a guarda baixa - se foi pelo choro falso ou minhas tentativas de fazer ele simpatizar por mim, não sei bem.

—Cansei do seu joguinho! — reclamou, perdendo a paciência.

E então, numa oportunidade boa demais para recusar, Victor colocou a mão no meu peito, me empurrando para trás com a arma.

Agarrei seu pulso.

Girei seu pulso para o outro lado, ouvindo um barulho que não soava nada bom. O soquei na barriga o mais forte que consegui e, no meio segundo que ele usou para se recuperar, puxei a arma e apertei o gatilho contra ele duas vezes.

Não havia tempo para pensar no que eu havia feito, ou analisar a situação. Meu coração batia forte, plenamente consciente do que eu tinha começado. Senti algo me atingir pelas costas e, por um segundo, perdi completamente o ar.

Minhas costas queimavam. Minha boca tinha gosto de sangue Me esqueci de que Zero havia pedido para prender a respiração e senti cheiro de fumaça e algo podre. Agarrei Victor, quase inconsciente, e o empurrei para minha frente, o colocando entre eu e seu parceiro de equipe que estava prestes a atirar em mim novamente.

A dor se espalhava por todo meu corpo, mas eu não tinha tempo para ela. Eu e Zero sairíamos dali. Os dois. Eu não estava prestes a desistir agora.

Tentei o empurrar para longe usando apenas o corpo de um agora desmaiado Victor. Eu sabia que ele havia desmaiado muito rápido. Olhei para a fumaça atrás de nós. Pensei que estava imaginando, mas o outro cara também parecia sonolento. Seus reflexos estavam atrasados, de forma que não conseguia antecipar nenhum dos meus movimentos.

Então era isso que a fumaça estava fazendo. Colocando eles para dormir.

Tempo. Eu só precisava resistir por tempo o suficiente.

Mas eu estava sem balas. Era um péssimo atirador, e imprudente o suficiente para ter desperdiçado a maioria delas. Minha impulsividade era ótima para me dar vantagem: eu conseguia atacar sem nem precisar de tempo para pensar. Mas também era, provavelmente, minha pior fraqueza.

Eu estava sufocando. Respirei fundo, ciente que desmaiaria se não o fizesse, e prendi a respiração novamente. Tudo girou.

O homem empurrou Victor para longe, e eu tropecei, pontos pretos aparecendo na minha visão. Eu não sabia se conseguia continuar segurando a respiração e ele não parecia estar ficando mais sonolento do que já estava alguns segundos atrás.

Me lembrei do porque estava fazendo aquilo. Eu precisava sair vivo dali. Se eu falhasse, nem eu nem Zero voltaríamos.

Desesperado, agarrei ambos seus braços e forcei para baixo, apontando a arma para o chão. Ele conseguiu acertar o cotovelo no meu nariz, e o gosto de sangue me fez querer vomitar, mas consegui agarrar diretamente a arma em sua mão. A virei para o lado bruscamente, a ponto de evitar que o tiro me acertasse em cheio, mas senti a queimação vindo do meu abdômen ao mesmo tempo que vi seu dedo quebrar no gatilho. Eu mal conseguia processar o que estava acontecendo, mas a arma agora estava comigo, e a segurei firme apesar da dor.

Zero jogou algo na nossa direção, e então vi que a fumaça começou a sair mais de perto. Os olhos do homem piscavam devagar, seu corpo cedendo, e então, numa mistura de força bruta e desespero, o joguei em direção ao chão violentamente. Aparentemente, o golpe, misturado com o efeito da fumaça, havia sido o suficiente, porque ele continuou lá.

Eu sabia que, assim que não houvesse nada bloqueando o caminho, o homem do lado de Zero tentaria me acertar, então corri para o outro lado imediatamente e tive que atirar duas vezes no teto para conseguir acertar a luz.

Estávamos no escuro.

Me movi, em silêncio, apenas alguns passos para o lado, tentando localizar Zero.

Então Zero gritou. Ouvi o barulho da arma sendo engatilhada.

—Coloca a arma no chão. Vem andando na direção da minha voz devagar. Um passo em vão e seu amigo morre.

Congelei.

A voz do homem estava arrastada, como se estivesse bêbado, ou quase desmaiando. Não duvidei que ele atiraria em Zero se perdesse o controle.

Joguei o revólver no chão.

O tiro que levei dilacerava meu ombro, como se eu estivesse sendo queimado de dentro para fora. Meu nariz sangrava e a mistura da dor de onde fui socado com a fumaça queimando meu pulmão fez meus joelhos cederem e bater contra o chão com força.

Senti lágrimas escorrendo.

Ouvi o barulho do tiro, de longe, meus ouvidos já danificados pelo barulho e pensei, amargo:

Tudo isso pra nada. Nada.

Mas, assim que minha visão se estabilizou, reparei que o homem atirava para algo, uma luz que vinha de longe. Um carro.

—Alice! — gritei.

Ela dirigia empurrando o carro de um lado para o outro, fugindo dos tiros. Juntei toda a força que tinha para levantar e, ao mesmo tempo que Alice chegava até nós, segurei Zero nos braços e corri.

O homem foi jogado para longe com a força do carro em alta velocidade o acertando em cheio.

—Entra! — ouvi Alice gritar, virando com força e parando o carro apenas há alguns metros de mim.

Segurar Zero no colo piorava a dor de tal forma que cada segundo pareceu uma eternidade. Eu sentia que cada passo seria o último, que eu não aguentaria mais.

Zero estava completamente desmaiado nos meus braços. Foquei em sua respiração enquanto corria. Pensei nele. Pensei: só mais um passo. E mais um.

Me joguei no banco de trás do carro, gritando de dor assim que meu ombro atingiu o chão irregular.

—Ouvi o barulho e assumi que vocês precisavam de ajuda — Alice falou, assustada.

Zero estava em cima de mim e, embora soubesse que a escolha inteligente era colocá-lo no banco de cima, apenas o abracei com força, tremendo, soluçando, todo o terror, todo o medo, dor e crueldade do que havia acabado de acontecer me atingindo de uma vez.

Alice me chamou, mas eu não consegui responder de imediato.

—Eros, o quão machucados vocês estão? Eu preciso de um update da situação aqui.

Respirei fundo, tentando conter a dor.

—Acho que... acho que levei um tiro. No braço. Ou no ombro. O outro... — me encolhi, apertando a região do abdômen. — Argh! Não sei, eu... — estava com tanto sono.

Ela murmurou alguns palavrões, e respirou fundo.

—E Zero?

—Não sei, Alice— repeti, baixo, chorando. — Desmaiado. Ele está... tremendo. Gelado.

—Eu preciso levar vocês para um hospital.

—Como vamos... — falei, e parei. Estava ficando sem ar e sem forças. — Como vamos explicar isso?

—Eu... a gente pensa em algo. O mais importante é chegar até lá primeiro. Você consegue aguentar?

—Sim.

—Você manteve a promessa — ela observou.

Passei minha mão pelos cabelos de Zero, e ele se mexeu um pouco. Eu conseguia sentir o coração dele batendo, forte e irregular.

— Eu precisei. Não podia... desapontar vocês.

Percebi que Zero havia acordado porque ele tossiu e sussurrou:

—Acho que ter namorado aquele treinador finalmente serviu para algo na sua vida.

Soltei uma risada inesperada, que me fez sentir uma pontada intensa de dor.

—Você realmente... está fazendo piada agora?

Zero, com alguma dificuldade, se moveu até o banco de cima, e então apoiou a mão no meu rosto, afastando meu cabelo.

Ele olhou ao redor, e eu vi que estava olhando para a mancha de sangue que se formava no carro.

—Isso provavelmente vai doer — falou. — Mas eu preciso que você se levante daí. — balancei a cabeça negativamente. — Tá tudo bem. Eu vou te ajudar. — ele colocou a mão atrás da minha cabeça —Eu só não tenho força física pra te levantar. Confia em mim, tá bom?

—Tá — murmurei. Eu não me lembro de ter me sentido tão indefeso em um longo tempo.

Zero contou até três e me ajudou a sentar na parte de baixo do banco. Gritei com a dor, e tive certeza que sangraria até a morte ali mesmo. Então Zero tirou o casaco e o apertou diretamente contra onde eu havia levado o tiro- o que doeu muito mais.

—Vai ajudar a parar o sangramento — explicou. Eu soltei outro grito involuntário, travando os dentes. — Shhh, shh. Tá tudo bem. — sussurrou, e então me deu um sorriso triste. — Considere isso minha vingança por ter fraturado minha costela naquele dia.

—Eu quase... quase não me sinto culpado mais.

Zero sorriu.

—Senti saudades — falou. — Você salvou a gente.

Neguei com a cabeça.

—Não... você que... aquela coisa... o que era?

Perdi a consciência por alguns segundos.

—Ei, fica aqui. Conversa comigo, ok? — pediu. — É uma longa história. Eu estava montando para tentar fugir. Não sabia exatamente como, mas era o que eu podia fazer.

—Você ia... — me perdi no meio da frase. Tentei de novo — Você ia ficar bem sem mim de qualquer forma então — falei, e abri um sorriso.

—Não —Zero acariciou minha bochecha, e me olhou com tanto, tanto carinho no olhar. Ninguém nunca havia me olhado assim. — Eu não sei se algum dia ficaria bem sem você, Eros — sussurrou.

Tossi algo que me pareceu sangue. Eu me sentia terrível. Mas também nunca me senti tão amado quanto naquele momento.

—Estamos chegando — Alice avisou. — Só mais um pouco, Eros.

Me esforcei para me manter acordado. A forma como Zero respirava forte, tremendo, me falava que ele estava tentando fazer o mesmo. Estava escuro, então eu não conseguia o ver detalhes, mas o olhei cuidadosamente, analisando seus hematomas que se misturavam com as sardas, os braços arranhados, as olheiras mais fundas do que nunca, e a expressão rígida, como se estivesse se esforçando ao máximo a se manter firme.

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Raiva foi a última coisa que senti antes de apagar de vez. Quase dois dias. Eles haviam mantido Zero lá por quase dois dias. Eu lutava contra o pensamento, mas todas as sensações que me atingiram quando me sequestraram junto com Wendy voltaram. O medo de morrer, o pensamento de que ninguém nunca me acharia, o sabor amargo que foi fugir e entender que eu seria obrigado a conviver com aquela sensação. Me perguntei o que Zero estava sentindo.

"O que fizeram com você, meu amor?" perguntei, na minha mente.

Mas, apesar de tudo, estávamos os dois aqui. Eu estava terrivelmente machucado, mas havia sobrevivido. Eu havia sobrevivido de novo. Me deixei sentir todo o ódio que havia reprimido junto com todo o ódio que já estava ali e, naquele momento, prometi para mim mesmo que o responsável por tudo aquilo - pela morte de Davi, por todas as pessoas que sumiram do Instituto e nunca mais aparecerem, pelas pessoas que morreram no incêndio do prédio e por toda essa tortura emocional, essa agonia mental e também física causada a eu, Zero e Alice -, a pessoa responsável por isso merecia uma morte lenta e agonizante. E eu me certificaria de que isso acontecesse.

E então desmaiei.

O tempo que passei no hospital foi... confuso. Não sei exatamente se foi a adrenalina ou o fato de estar em um hospital novamente, mas eu me dissociei completamente da realidade. Não conseguia bem distinguir o que estava acontecendo no momento e o que eram memórias da vez que fui parar no hospital quando fugi daquela estação de trem abandonada. E, quanto mais eu tentava espantar as memórias, mas eu lembrava.

Eu estava lembrando.

De tanta coisa.

Em um momento, eu estava deitado na cama do hospital, observando Zero, que brincava com as rodas de uma cadeira de hospital, nervoso. Ele parecia cansado, e tinha uma sonda conectada a seu nariz, junto com um acesso em seu braço. Não estávamos conversando. Zero nunca esteve tão calado.

Em outro momento, eu estava no chão frio de um galpão. Wendy estava deitada a apenas alguns metros de mim, chorando. Seu cabelo amarelo estava acinzentado por causa da poeira, sangue manchando sua roupa e a minha.

Wendy olhou para mim e esticou o braço.

—Leo! — chamou.

Eu tentei levantar, mas não conseguia. Ainda estava sedado, e, naquele ponto, tinha certeza que havia sido drogado. Eu havia levado diversas pancadas, mas minha cabeça era o que mais doía. Olhei para Wendy, e eu a amava tanto. Wendy era como uma outra parte de mim, a criança que eu criei e amei e que me fez companhia por todos esses anos. Eu sentia esse instinto tão natural de que eu sabia que trocaria minha vida pela dela sem nem pensar duas vezes se tivesse a oportunidade.

Assim que juntei forças para levantar, impulsivamente, tentando, pelo menos, tentar oferecer algum conforto a minha irmã, um homem mais velho veio até a minha direção e me chutou. Ele começou a me socar e chutar, e eu mal consegui reagir. Wendy começou a gritar por mim e a chorar desesperadamente. Ela parecia muito mais nova quando chorava daquele jeito, como um bebê que eu queria desesperadamente proteger.

—Essa garotinha faz muito barulho — o homem resmungou.

De longe, ouvi o barulho de um trem, se aproximando aos poucos.

—O trem de serviço — outra pessoa falou. Virei a cabeça e vi, com os olhos embaçados pela pancada, os cabelos loiros do meu irmão, olhando para Wendy.

Eu não conseguia fugir da memória do que veio depois, mas era dolorosa demais para que eu a conseguisse desbloquear completamente. Não sei descrever o que aconteceu, não sei bem o que aconteceu.

Mas sei que observei, como se eu mesmo estivesse indo junto, Wendy ser morta, bem na minha frente.

E então ouvi:

—Você é o próximo.

E soube que precisava fugir.

Tentei sentar, mas minhas costas bateram com força em algo e eu gritei.

—Eros, sou eu — uma voz conhecida falou. Me encolhi. — Eros, olha pra mim.

Alice me olhava preocupada, debruçada na cama. Atrás dela, Zero dormia encostado na parede do hospital.

Ele acordou assim que eu comecei a chorar. Os dois foram até perto de mim e me olharam como se esperassem que eu explicasse o que havia acontecido, mas eu estava tão confuso quanto eles.

—A Wendy — sussurrei. — Não foi minha culpa.

—Não foi — Alice concordou.

—Não, vocês não estão entendendo. Por todo esse tempo... — perdi a respiração no meio dos soluços. — Eu acreditei... me deixaram acreditar que eu havia a deixado lá para morrer — olhei para Zero, porque ele era a única pessoa que sabia a história com detalhes. Ele assentiu, como se pedisse para eu continuar a falar. — Eu só fugi porque ela já estava morta. Ela já estava morta — repeti para mim mesmo, finalmente entendendo.

Era por isso que eu me lembrava da sensação de fugir sem olhar para trás, de não a levar comigo. Não foi porque eu não me importei. Eu não a deixei lá por egoísmo ou por vontade própria. Me deixaram acreditar que eu havia escolhido sair e a deixar morrer, mas agora eu entendia o que realmente aconteceu.

Lembrei de todas as vezes que Hugo jogou na minha cara que eu havia escolhido deixar Wendy lá. Como aquilo começou...? Como começaram a jogar a culpa em mim?

—Zero? — chamei, tentando focar no que era real antes que me perdesse entre memórias novamente. Ele segurou minha mão, relutantemente. — Zero, eu não acho que foi o Henrique que matou Wendy— falei, esperando que ele e Alice me chamassem de louco.

Afinal, Henrique havia admitido. Mas algo... não me parecia certo.

—Eu também não — Zero concordou, baixo.

Uma enfermeira chegou, e ficamos em silêncio imediatamente, assustados. Todo o meu corpo tremia, e então eu adormeci.

Eu fiquei esperando o momento certo para tocar no assunto novamente. Se Zero concordava.... então eu precisava saber do porque. Zero era mais esperto que eu e eu confiava mais no seu julgamento do que no meu. Era fácil admitir isso agora que eu... bem, agora que eu estava completamente apaixonado.

Mas o momento parecia não vir nunca. Enquanto meu estado físico melhorava, o de Zero piorava e, apesar de eu ter chegado consideravelmente mais machucado que ele, eu tive alta antes de Zero e voltei para o Instituto sozinho.

Contamos para o Instituto a mesma história que inventamos para o hospital: havíamos fugido para ir a uma festa e, então, fomos assaltados. Mostrei as fichas do hospital. Aparentemente, havíamos escolhido a melhor época do ano para aprontar, porque o Festival Cultural estava chegando, e eles não queriam atrair atenção negativa para o Instituto com a expulsão de três alunos.

Todo ano acontecia cerca de três ou quatro grandes festivais, e mais ou menos a mesma quantidade de feiras de ciências no Instituto. Alguns deles eram televisionados. Durante os anos em que estive aqui, eu participei de todos, e me recusei constantemente a aparecer na TV mesmo que a escola e o canal tivessem implorado.

O motivo pelo qual eles queriam que eu aparecesse, e o mesmo motivo pelo qual eu não queria aparecer, tinha muito menos a ver com meu trabalho e tudo a ver com o fato de que eu era conhecido. Quando eu e Wendy fomos sequestrados por dois professores do próprio Instituto, um deles sendo meu irmão, aquilo foi um escândalo em nível nacional. O Instituto mal podia esperar para limpar a própria imagem me mostrando como um aluno orgulhoso de lá, e eu sabia que as pessoas gostavam de tragédia o suficiente para me assistir- minhas redes sociais, mesmo a que eu posto meus quadros e desenhos, sempre estavam cheias de comentários nada discretos sobre o sequestro. Eu não conseguiria aparecer na TV sabendo de toda essa manipulação. Me sentiria uma marionete, uma peça exposta em uma vitrine. Por isso, nunca deixei.

Mas quando manter minha vaga no colégio dependia daquilo - junto com a vaga de Alice e a de Zero-, eu obviamente não tinha escolha.

Aquele era o acordo. Eu participava do festival, dava uma entrevista exclusiva para a TV, falava algumas coisas que queriam que eu falasse, e eles "esqueceriam" que eu, Zero e Alice havíamos fugido.

Continuar no Instituto me parecia, mais do que tudo, uma questão de sobrevivência. Aquele era o único lugar que parecia que não éramos diretamente atacados. Pelo menos não enquanto estávamos ao redor de outras pessoas. Eles não queriam escândalos.

Quando atirei nos homens no posto de gasolina, para fugir, pensei que me incriminariam. Mas, no outro dia, lá estava nos jornais, exatamente igual a quando o prédio pegou fogo: o mesmo acontecimento, mas histórias completamente diferentes da realidade sobre o que tinha acontecido. Todo o acordo envolvendo eu aparecer na TV só provava o que eu já sabia há muito tempo, que, além de estarem profundamente envolvidos com os desaparecimentos, o Instituto também faria qualquer coisa para manter as aparências.

Eu não sabia bem o que aquele lugar era, mas certamente tinha algo terrivelmente podre por trás da fachada de faculdade dos sonhos.

Nós três claramente precisávamos nos encontrar e tentar juntar todas as informações possíveis. Finalmente, eu sentia que estávamos chegando a algum lugar. Mas eu tinha duas semanas para montar uma exposição inteira, desde pensar no conceito até fazer os quadros e decorar a sala, e ainda sentia dor por causa dos ferimentos. Era muita coisa para fazer em muito pouco tempo. E Zero ainda ficaria mais dois dias no hospital. Eu queria ficar com ele esse tempo, mas eu simplesmente não podia. Fiz Alice prometer que não o deixaria sozinho.

—Como ele está? — eu perguntei para ela, de noite, enquanto rabiscava ideias em um caderno velho.

Alice deu de ombros.

—Mau humorado. Insistiu que queria ficar sozinho.

Revirei os olhos.

—É a cara dele mesmo. Ele consegue ser mais chato que o normal quando está doente — comentei, rindo com uma leve pontada de saudade. Mas logo depois fiquei triste. Eu não sabia exatamente como Zero estava de saúde, porque ele fez questão de não me contar nada. Não sabia o que tinha acontecido com ele no tempo que esteve fora. Eu me sentia completamente perdido em relação a tudo.

Quando nos beijamos, eu pensei que finalmente poderíamos ficar oficialmente juntos - que eu poderia segurar sua mão nos corredores, o beijar sem precisar me preocupar, poder falar em voz alta o quanto eu achava absolutamente adorável quando ele acordava, sair em um encontro oficial. Eu queria fazer todas essas coisas clichês de casal.

Mas não tivemos tempo de tocar no assunto. Ou em qualquer outro assunto. Quanto mais a saúde de Zero piorava, mais ele se afastava. E eu sabia que não era de propósito. Não era como quando ele me ignorou, Zero estava ali por perto. Só nunca estava realmente ali.

Assim que teve alta do hospital, a primeira coisa que ele fez foi sentar na cama, pegar um caderno e rabiscar um monte de linhas que pareciam mais um labirinto.

—O que é isso? — perguntei, confuso.

Zero respondeu monótono, como se apenas metade dele estivesse ocupado em falar comigo.

—Eu tentei calcular o caminho enquanto estava no carro indo até aquele ponto de encontro. Eu estava vendado, mas tentei sentir as curvas e marcar quanto tempo durou entre uma curva e outra. Pensei que talvez conseguíssemos rastrear onde é aquele lugar.

Sentei na cama do seu lado.

—Mas eu devo ter desmaiado em algum ponto crucial — murmurou consigo mesmo. — Ou desconsiderado alguma variável importante, como a velocidade em que estávamos indo.

—Zero... — tentei chamar sua atenção, mas ele não olhou para mim.

Eu não sabia a melhor forma de perguntar aquilo, então apenas perguntei diretamente:

—Zero, o que aconteceu quando você estava lá?

No hospital, sei que fizeram vários exames em Zero, tentando descobrir algo. Também percebi que ele estava absurdamente assustado, ansioso, e que mal conseguia falar. Na verdade, acho que ficou tanto tempo no hospital simplesmente pelo fato de que não conseguia comer ou fazer qualquer coisa. Ele havia perdido tanto peso que, às vezes, era difícil reconhecê-lo. Minha teoria era de que Zero estava em estado de choque. E me doía não entender porque. Eu queria desesperadamente poder consolá-lo, mas era difícil quando sua maior tendência era se isolar.

—Não importa — ele sussurrou, ainda tentando pela milésima vez refazer o caminho com o papel. — O que importa é que eu consegui um monte de informações novas. Então isso é bom, certo?

Suspirei, frustrado.

—Você não pode ser injusto consigo mesmo assim. Não, não é bom. Eu pensei que você fosse morrer, Zero. Nenhuma informação vale isso. E, além do mais, eu me sinto mais perdido agora do que nunca. Principalmente porque você não me conta nada.

—Eu, você e Alice — falou— Precisamos nos reunir e decidir o que vem depois de agora. E aí eu conto o que descobri.

Ignorou completamente todo o resto.

Meu alarme tocou, me avisando que eu tinha uma reunião com a menina que estava organizando as salas do festival.

—Eu tenho que ir — avisei.

Ele concordou com a cabeça e eu saí me sentindo prestes a chorar sem nem entender bem porque.

Assim que voltei, encontrei Zero dormindo na minha cama, e não pude evitar de sorrir.

Eu queria correr e o abraçar, o beijar, ouvir suas piadas, conversar até esquecer de tudo.

Ele abriu os olhos, confuso, ao me ouvir chegando. Então olhou ao redor, reparando que estava enrolado no meu cobertor.

—Desculpa — sussurrou — Acho que desmaiei e sua cama estava mais perto. Eu já saio daqui.

—Ah... — murmurei, desapontado. — Pode dormir aí se quiser.

Parte de mim tinha esperança de que ele estava lá porque queria dormir ali comigo.

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Sentei na cama de Zero, e me senti esquisito. Com vergonha. Havíamos nos beijado, e então logo depois eu literalmente disse que o amava, e não havíamos conversado direito desde então. Eu não estava acostumado a sentir vergonha, mas tinha tanto medo de estragar as coisas com Zero que mal sabia como reagir.

Ele havia caído no sono de novo.

Respirei fundo, sentando do seu lado, na minha cama.

—Zero? — chamei. Ele se mexeu um pouco e murmurou algo. — Desculpa te acordar.

—Tá tudo bem — respondeu, ainda de olhos fechados.

Eu me sentia a pessoa mais egoísta do mundo, mas não sabia esperar.

—É só que eu... fiquei com saudade. Queria conversar.

Zero se esticou na cama e olhou para mim, os olhos azuis agora com manchas vermelhas ao redor. Ele sorriu, mas desviou o olhar logo em seguida.

—Desculpa, Eros. Eu também tô com saudade, mas eu realmente preciso dormir. — Zero suspirou — Tanta coisa aconteceu e eu tô... tão cansado.

Eu tinha um nó na garganta. Definitivamente não sabia lidar com aquela sensação, de que Zero estava sofrendo e de que nunca me deixaria chegar perto o suficiente para saber o porquê.

—O que é "tanta coisa", Zero? O que aconteceu quando você estava lá?

Ele me olhou como se soubesse que eu perguntaria, e suspirou.

—Eros, eu...

Zero segurou delicadamente na manga da minha blusa, e me puxou para perto devagar. Deitei do seu lado em silêncio, sentindo meu coração acelerar.

—Mal consigo acreditar que estou aqui com você de novo — ele sussurrou. Estávamos tão próximos que eu conseguia sentir sua respiração. — Eros, eu sei que você quer saber o que aconteceu comigo. Mas acho que você entende o porque eu realmente não consigo... — ele se encolheu, e balançou a cabeça de leve, como se lutasse contra os próprios pensamentos — Não consigo falar sobre agora. Tudo ainda está... muito confuso.

Ele deve ter visto a decepção em meu olhar, porque logo em seguida tocou exatamente no assunto que passou pela minha cabeça:

— Eu não estou falando de nós dois— esclareceu. — Não me arrependo de nada do que falei pra você aquele dia. Eu só não consigo... não consigo pensar em nada daquilo agora. — seus olhos encheram de lágrimas, e eu pensei que raramente havia o visto chorar. — Eu sei que você queria que eu chegasse aqui e te contasse tudo palavra por palavra. Que eu fosse mais aberto. Que tivesse todas as respostas sobre nós dois agora, mas eu não tenho. Eu não estou fazendo isso de propósito... — sussurrou.

Passei a mão por seus cachos e beijei sua testa.

—Eu sei. Me desculpa, eu não queria parecer que estava te pressionando. É só que... toda vez que a gente começa a dar certo, algo acontece e aí eu sinto que... — desviei o olhar — que estou te perdendo.

Zero respirou fundo, chateado, e escondeu metade do rosto no travesseiro.

—Eros, eu sei que é assim que você resolve as coisas. Você é muito direto e muito sincero. E eu admiro isso, de verdade. Mas será que, por enquanto, a gente pode fazer aquela coisa em que você me abraça e a gente fica em silêncio?

Eu ri, baixo.

—Você está carinhosamente me mandando calar a boca? –falei, e ele sorriu também.

Logo em seguida, Zero fechou os olhos, apertando as pálpebras e se encolhendo.

— Acho que realmente preciso de um abraço seu agora — sussurrou.

O abracei delicadamente, sentindo como se o peso do mundo, aos poucos, saísse dos meus ombros. Ele me fazia bem em milhares de níveis diferentes, e achei que aquele talvez fosse o meio termo perfeito. Zero não conseguiria me dar as respostas que eu queria por enquanto, e estava tudo bem. Nós dois havíamos passado por muita coisa e estávamos lutando com muita coisa dentro de nossas próprias mentes- e fora delas também. Mas eu poderia me contentar com aquilo, com Zero encolhido no meu abraço, deitado no meu travesseiro, segurando minha cintura com força enquanto eu o abraçava como se qualquer movimento brusco fosse denunciar que eu estava sonhando.

E então, de repente, tive uma ideia para o Festival. Uma ideia que, se desse certo, poderia finalmente juntar todas as peças soltas do quebra-cabeça que envolvia os desaparecimentos. Eu já sabia qual meu próximo passo seria, e Zero e Alice não gostariam nada.