Amarelo- Lírio e Fogo Azul

Capítulo 13- Eros


Eros

—Agora eu entendo porque você sempre se oferece para pagar nosso café— foi a primeira coisa que Zero falou assim que chegamos.

Eu empurrava a cadeira de Zero pelo chão irregular, enquanto tentava não olhar ao redor. Eu não queria olhar para o campo de futebol que ficava à esquerda das casas onde eu costumava me reunir com os amigos antigos, ou o parquinho em que eu levava Wendy para brincar, ou das últimas vezes que a vi aqui, feliz.

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Doía lembrar de coisas tão doces que eu nunca mais poderia ter.

Não.

Eu não deixaria aqueles pensamentos me levarem.

“Não pense sobre isso, não pense sobre isso” continuei repetindo na minha mente, na esperança de que fosse o suficiente para abafar qualquer outro pensamento que não fosse aquele.

O fato de Zero estar especialmente falante naquela hora era bem útil, porque eu podia manter meu foco nos comentários dele como “Só o espaço desse condomínio é maior que meu bairro” ou “É sério, eu deveria ter adivinhado que havia um motivo para você ser tão mimado”.

Ele falava baixo, num tom que só eu podia ouvir, e eu soltava umas risadas baixas, mas não conseguia formular frases coerentes para o responder.

Estava prestes a ver meus pais depois de quase um ano. Só a minha mãe, se eu tivesse sorte o suficiente para meu pai não estar em casa. Eu nem havia considerado esse detalhe.

Eram tantas variáveis que parecia que minha garganta estava se fechando.

—Eros? — Zero chamou. — Acho que esqueci uma coisa importante no carro. Você pode ir lá comigo buscar?

Assenti e Hugo jogou a chave para mim.

—Você nunca esquece nada — comentei, desconfiado, assim que Hugo e Erick deram as costas para nós.

— É, eu não deixei nada no carro — admitiu. — Só achei que você talvez precisasse se acalmar um pouco antes de entrar. — Eu o olhei, surpreso. — É difícil de não notar suas mãos tremendo — comentou, e deu de ombros.

—Não… é… você está certo.

Passei a mão pelo cabelo, respirando fundo.

—Mas acho que não tenho o que fazer — conclui. — Eu devo parecer muito estúpido agora. Eu só… não gosto de estar aqui. Você sabe, tudo aconteceu aqui nessa cidade. Nessa casa. E meus pais… Argh — suspirei, frustrado.

Zero me olhava com atenção, em silêncio, como se analisasse cada palavra do que eu estava falando, mas não soubesse bem o que dizer de volta.

—Eles não estão tipo… com saudade de você ou algo assim?

Soltei uma risada irônica.

—Eu tenho 80% de certeza que minha mãe é incapaz de sentir qualquer sentimento humano. Quer dizer, ela vai falar que está com saudade. Ela vai ser legal com você, com isso não precisa se preocupar. Mas tenho que avisar que o passatempo preferido dela é me colocar para baixo — comentei, e então me estiquei, tentando diminuir um pouco o nervosismo. — Vamos — falei. — Tire suas próprias conclusão.

Antes de entrarmos, enquanto eu me preparava para um show de falsidade digno do Oscar, avisei a Zero meu plano: dar oi, pegar alguma coisa da geladeira, e ir direto para o quarto sem muito tempo para ter contato com ninguém, e sem dar tempo de Hugo explicar o motivo do seu nariz inchado para mamãe.

Eu não contava que metade da família estaria lá.

Assim que abri a porta, fui surpreendido por alguém me puxando, que eu instintivamente empurrei para longe, prendendo a respiração por uns segundos.

—Merda — murmurei, assim que vi que era apenas minha irmã mais velha, Fernanda, me abraçando. — Desculpa. Você me assustou.

Quanto mais nervoso eu ficava, mais coisas inofensivas, como um abraço, conseguiam me assustar. Felizmente Fernanda entendeu.

—Não tem problema — falou, ainda sorrindo. — Me animei ao te ver. Faz tanto tempo! Eu vou ganhar um abraço de verdade agora? — Perguntou.

Dei de ombros, e murmurei:

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—Bem rápido.

Ela riu, e bagunçou meu cabelo enquanto me dava um abraço que eu estivesse esperando dessa vez.

Minha mãe nos observava da bancada da cozinha, com um copo de café na mão, a expressão neutra.

Reparei que Hugo estava sentado no sofá, com Victor e Gabriel, e não consegui esconder a cara feia. Victor e Gabriel eram os únicos dois dos irmãos que ainda moravam naquela casa, e eu sabia que os veria, mas mesmo assim não pude segurar a pontada de raiva que surgia ao vê-los.

—Você vai apresentar seu amigo para gente? Mamãe não falou que teríamos mais companhia. — Fernanda falou, e depois estendeu a mão para Zero. — Fernanda. Também conhecida como o único pingo de sensatez dessa casa. Não sei como vocês sobrevivem sem mim.

Zero abriu um sorriso, e apertou a mão da mulher.

—Yan. Eu e o Er- o Leonardo estamos trabalhando em um projeto para o Instituto juntos — explicou, lembrando exatamente da desculpa que eu falei que dei para minha mãe.

—Ah, não precisa disfarçar o apelidinho dele, a gente conhece. Não é, Eros? — Falou, e soltou uma gargalhada.

Eu revirei os olhos, mas antes que eu pudesse me defender, minha mãe falou, do outro lado:

—É um apelido estúpido, se quiserem minha opinião. — Pelo tom de voz frio, era perceptível que não era uma piada.

Olhamos para ela, esperando que completasse com alguma coisa. Com um “bem-vindo de volta” ou “senti saudade” ou qualquer coisa que mostrasse que ela não via o filho há meses, mas ela logo voltou a prestar atenção sua xícara de café.

Ao ver que a atenção estava voltada para ela, mamãe veio andando até nós e disse a Zero:

—Meu nome é Paula, querido. Sinta-se em casa.

E então olhou para mim, de cima a baixo e murmurou:

—Filho, você precisa cortar esse cabelo.

—Senti saudades também — falei, ironicamente.

Eu conseguia ver, no outro cômodo, duas empregadas preparando a mesa do café, e antes que tivesse tempo de fugir, Fernanda estava me arrastando até lá:

—Não, não. Não fiquei esse tempo todo sem te ver para você simplesmente entrar no quarto e se enterrar lá.

—Mas…-

—Vamos. Todos vocês — gritou para os dois garotos na sala, que apenas ignoraram.

Gabriel e Victor haviam se formado há pouco tempo e, apesar de oficialmente trabalharem para nosso pai, simplesmente ficavam no sofá da sala jogando videogame o tempo todo. Em idade, nós três éramos os mais próximos. Olhando os dois tratando mal as empregadas, e qualquer outra pessoa que não precisassem bajular, não fazendo o próprio trabalho e passando o dia como se ainda fossem adolescentes de 15 anos, não conseguia entender como eu era o exemplo ruim.

Assim que sentamos, mamãe estreitou as sobrancelhas e olhou para Zero:

—Yan, não é? Eu reconheço esse nome — falou, e pensou por uns segundos. — Ah, é bom finalmente conhecer a pessoa que tirou o sobrenome da nossa família do primeiro lugar daquela lista depois de uns longos anos — Apesar da fala passivo-agressiva, ela tinha um tom genuinamente gentil. — Eu só estou surpresa que vocês são amigos.

— Eu também — murmurei.

Zero tinha um sorriso forçado no rosto, como se não soubesse o que dizer, mas estivesse tentando ser simpático.

Minha mãe pareceu gostar de conversar com Zero, perguntando a ele sobre o que ele estudava e seus objetivos, e eu sabia que ela estava propositalmente tentando expor como ele era melhor que eu.

Zero também percebeu, porque continuava dando respostas cada vez mais evasivas.

Quando ela perguntou sobre o que ele pretendia fazer, Zero respondeu apenas “Dar aula de física”, embora eu soubesse muito bem que a resposta daquela pergunta era: “Fazer um doutorado em física de astropartículas e cosmologia para poder dar aula em universidades e conseguir uma bolsa de pesquisa”, exatamente com essas palavras. Eu havia o ouvido falar isso muitas vezes. Só o fato de ele estar tendo que se diminuir para não me deixar desconfortável na frente da minha própria família, me lembrava o quão burro e insuficiente eu me sentia.

Hugo, que eu sabia que não suportava Zero, resolveu se intrometer para falar o quanto ele era um ótimo aluno, e que sempre ficava impressionado com a rapidez que ele fazia cálculos mentalmente.

Zero me olhou, com raiva, vendo claramente atrás da falsidade de Hugo.

Suspirei.

Algum dia, Zero vai ganhar a porra de um prêmio Nobel e eu vou estar trabalhando num museu estúpido enquanto pinto quadros que ninguém vai querer comprar.

Respirei fundo, tentando disfarçar o quão eu estava desconfortável daquela situação, mas acho que não estava fazendo um bom trabalho, porque Fernanda interrompeu a conversa constrangedora da minha mãe com Zero depois de uns minutos, e perguntou:

—E você, Leo? O que anda fazendo?

—Engraçado você ter perguntado… — Hugo falou, antes que eu pudesse responder.

—Eu não perguntei para você, Hugo.

—É, mas achei que talvez mamãe quisesse saber o que o filho querido dela anda aprontando.

Passei a mão pelos cabelos, levemente arranhando meu pescoço, com medo do que estava por vir, e implorando para mim mesmo: mantenha a calma.

—Agora não — mamãe disse, antes que Hugo continuasse. Eu a olhei, surpresa. — O pai de vocês chega de viagem amanhã. Quaisquer coisas que tenhamos que resolver, é bom que a conversa inclua ele.

—Ótimo — ironizei, não aguentando mais me segurar. — Quem sabe vocês podem me colocar sentado no meio da sala enquanto cada um fala o que odeia em mim? Não tem nada para resolver. Eu sou um homem adulto.

Mamãe apontou para o nariz machucado de Hugo.

—Um homem adulto com sérios problemas de comportamento — falou, tranquila, como se analisasse o personagem de um filme qualquer. — Um homem adulto cuja única obrigação é, no mínimo, se destacar na faculdade e parar de ser irresponsável e sujar o nome da nossa família, e nem isso faz direito.

—Primeiramente, — tentei juntar informações coerentes na minha cabeça, que parecia estar girando — eu dei aquele soco no Hugo porque ele empurrou Erick. Você fala “se destacar na faculdade” como se eu não estivesse fazendo nada. Gabriel foi literalmente expulso de lá, e eu não ouvi nada desse papo de “manchar o nome da família”. Como eu sou a pessoa ruim aqui?

A pergunta soou mais genuína do que deveria. Eu realmente não entendia.

—Como você tem coragem de perguntar isso depois do que você fez? — mamãe, murmurou, um tom quase decepcionado.

Na minha cabeça, eu gritava:

“Não foi minha culpa! Não foi. Eu juro que não foi”

Mas eu sabia que não poderia afirmar aquilo. Sabia que nem eu mesmo confiava nas minhas palavras.

Ouvi Fernanda falar algo, e então todos começaram a falar ao mesmo tempo. Por alguns segundos, ouvi um barulho tão baixo de trens passando que precisei prestar atenção para identificar se era real ou não. Tudo cheirava a borracha queimada.

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Eu estava me perdendo. Pisquei os olhos, focando novamente neles.

—Chega! — gritei. — Não dá para passar um minuto com vocês! Eu vou ir para o quarto— falei, e ignorei os protestos da minha mãe. Olhei para Zero. — Você vem?

Ele assentiu com a cabeça e fomos até a sala de estar novamente. Eu estava me forçando a entrar no modo automático, como se qualquer pensamento fosse me fazer ter uma crise ali mesmo.

Zero olhou para o longo lance de escadas e levantou a sobrancelha.

—Olha, Eros, eu tenho trabalhado muito na minha habilidade de me teletransportar, mas acho que ainda não consigo — brincou.

—Sério que esse é o momento de fazer piada? — respondi, baixo, mas com um pequeno sorriso.

—Você tá sorrindo, não tá?

Sequei com a mão as lágrimas que senti escorrendo.

—É difícil não rir quando você faz uma piada ruim dessas.

—Viu? Funcionou.

Revirei os olhos, e dei uma cotovelada amigável em Zero.

Eu queria conversar e me distrair, qualquer coisa que me fizesse sentir como se eu não estivesse perdendo o ar. Mas não sabia bem se conseguiria.

—Tem um elevador — murmurei, apontando para o outro corredor.

—Eu ouvi isso certo? — Zero parecia confuso. — Tem um elevador na sua casa?

Fui com ele até o final do corredor chegando a sala do aquário.

—Minha mãe achou que o elevador de vidro combinaria com os aquários — comentei.

As quatro paredes eram cobertas por aquários, tinham dois sofás no canto e um grande elevador de vidro que se posicionava do lado de um dos sofás. A luz fazia com que tudo parecesse levemente azul.

Zero foi olhando ao redor, parando para observar os aquários.

—Os peixes são do meu pai — comentei. — Quer dizer, ele diz que são dele, mas eu nunca o vi aqui.

—Eu sinto como se tivesse entrado em uma outra dimensão.

—É exatamente isso. Eu tenho a tendência de focar nos detalhes ao meu redor quando estou nervoso, para me acalmar. E aqui tem muita coisa para olhar. Eu costumava ficar muito aqui depois que… —

Depois que Wendy morreu. Depois que eu deixei ela morrer.

Como você tem coragem de perguntar isso depois do que você fez? a voz soou clara, na minha cabeça.

Fui até o sofá, e sentei, de frente para um dos aquários.

—Eros? — o ouvi chamar, mas não respondi.

Era como se minha garganta estivesse se fechando de novo. Eu sentia que era assim que aquele final de semana seria: um grande ataque de pânico dividido em pequenas doses.

Zero colocou a cadeira do lado do sofá, e admito que cheguei um pouco para o canto para ficar mais perto dele.

Era estúpido o quanto eu estava morrendo de raiva e inveja no momento em que minha mãe falava dele. Eu me sentia uma pessoa terrível por ter, por uns momentos, sentido todo aquele ódio novamente, principalmente pela única pessoa aqui que parecia realmente estar do meu lado.

Eu mal me reconhecia.

—Eu sou uma pessoa horrível — murmurei. — Sei que estou fazendo drama por nada.

—Claro que não — Zero falou. — Sua família… — ele falou, e suspirou, como se procurasse as palavras — me parece uma coisa e tanto para se lidar.

—Eles são — respondi. — Eu queria tanto… — respirei fundo — eu queria tanto poder dizer que eles estão errados… — quanto mais eu tentava falar, mas me sentia preso. — Mas eu não sei… não sei se…

Escondi o rosto com a mão, desistindo.

Zero ficou silêncio por uns segundos, então disse:

—Não é legal como os peixes conseguem controlar as próprias densidades? — eu o olhei, confuso. — Considerando os princípios da hidrodinâmica, o principal determinante da posição de um objeto em um fluido é a densidade, então faz sentido que os peixes precisem de um órgão que os ajudem a alterar suas densidades.

Eu estava prestes a gritar com Zero por querer falar sobre hidrodinâmica enquanto eu me acabava de chorar.

—Então, vamos supor — ele continuou — que aquele peixe ali — falou, apontando para o aquário na nossa frente. — Aquele menorzinho, bem no meio. Laranjinha, com as manchas brancas. Tá vendo?

—Sim — falei, sem nem procurar o maldito peixe.

Ele riu.

—Não, assim não tem graça. Olha, aquele peixe laranja grande, nadando bem devagar, é o maior dos de onde eu estou apontando. Se você olhar na esquerda dele, e um pouco para trás, vai achar.

Zero começou a fazer uma análise esquisita de hidrodinâmica usando os peixes como exemplo, cada vez me fazendo achar algum peixe diferente, com uma descrição absurdamente específica.

Foi quando eu fiquei tão distraído reclamando e rindo das análises absurdas de Zero que percebi exatamente o que ele estava fazendo.

—Vamos subir — falei, depois de alguns minutos. — Antes que alguém chegue aqui e tente nos acusar de estar usando drogas.

Zero abriu um sorriso.

Enquanto subíamos pelo elevador de vidro, em silêncio, eu disse:

—Você fez de propósito, não fez?

—O quê?

—Eu te disse que quando preciso me acalmar, olho para os detalhes ao meu redor.

Zero deu de ombros.

—Assumi que se você explicitamente achasse que eu estava tentando te acalmar, não funcionaria.

Evitei olhar diretamente em seu rosto. Eu não queria admitir o quanto me assustava, e o quanto era um conceito novo para mim, alguém se importar comigo daquela forma.

—E era uma desculpa para falar de física de qualquer forma — Zero concluiu, e deu de ombros.

Assim que chegamos no meu quarto, eu estava tão exausto que apenas puxei o colchão da cama de baixo e deitei, sem nem tirar os sapatos.

—Pode dormir na minha cama — falei para Zero, o rosto enfiado no travesseiro.

Ele observava as coisas no meu quarto, mas eu estava cansado demais para comentar algo.

—Eros, tentar entrar no celular de Davi não vai ser fácil — falou, fazendo meu coração afundar novamente ao lembrar de tudo que estava acontecendo. — Acho que já vou ir tentando. Você pode pegar seu notebook?

—Você não vai dormir um pouco antes? Passamos a noite toda na estrada e você não parecia nada bem.

—Eu estou acostumado a noites de sono ruim. De qualquer forma, não conseguiria dormir agora.

—Tá — concordei, sentando no colchão. — Computador normal ou notebook?

—Notebook. Você sabe que eu posso acabar destruindo seu computador e/ou encher ele de vírus, não é? Principalmente porque vou ter que instalar umas coisas muito questionáveis.

—É. Imaginei. Não tem problema — apontei para a mesinha no canto do quarto, onde meu notebook estava, no meio de um monte de partituras e folhas de caderno. — Ali. Você sabe a senha.

—Sei?

—A mesma do meu celular.

Meus olhos estavam se fechando de tão exausto, e eu não sabia dizer se era por ter estado tão ansioso ou por causa da viagem.

—Pode ir dormir e daqui a pouco eu te acordo — Zero falou.

Eu só não esperava acordar com o barulho de Zero socando a mesa, do lado do computador.

—Ei, ei. Calma aí — falei, sonolento. — Quando você disse que poderia destruir meu computador, não imaginei que fosse na base do soco.

Zero não sorriu, ou respondeu. Apenas empurrou o computador para longe e esfregou os olhos por baixo dos óculos.

—O que foi? — perguntei, sentando no colchão.

Ele apontou para a tela do computador.

—Isso não está levando a lugar nenhum! — reclamou. — Eu estou há seis horas na frente desse maldito computador, e nada! Alice não sabe as senhas das redes sociais do Davi, e é basicamente impossível adivinhar. Não consigo achar nenhuma brecha relevante na segurança dos sistemas, o que significa que preciso tentar entrar diretamente no celular dele. Sabe como é difícil hackear um celular que não está em uso?

Balancei a cabeça.

—Foi uma pergunta retórica? Porque, obviamente, não. Não sei — falei, mas entendia que não eram boas notícias. — Espera aí. Seis horas? Você não ia me acordar?

—Perdi a noção do tempo, acho — admitiu.

—Vamos comer alguma coisa. Depois você continua tentando.

—Sem chance de eu parar agora — falou, rapidamente voltando a atenção para o computador. —Espera. Já sei. Posso mudar o sistema operacional do seu computador?

Estranhei a pergunta, mas assenti, desistindo de tentar o convencer a parar um pouco.

Era inútil tentar conversar com Zero quando ele estava concentrado.

Fui até a cozinha, arrumei dois pratos de comida e coloquei um deles na mesa, do lado do computador.

Eu já estava ficando preocupado com Zero obsessivamente digitando coisas quando ele parou repentinamente e virou para mim, a expressão facial contorcida, como se estivesse lutando contra um sorriso orgulhoso.

—E aí? — perguntei.

—Tem 60% de chance disso aqui dar errado — falou. — Mas acho que finalmente cheguei a algum lugar.

—E agora? — perguntei.

Zero se recostou na cadeira, relaxando a postura.

—Agora a gente espera.

—E se der certo…?

—Se der certo, — falou, o sorriso orgulhoso finalmente se deixando aparecer — vamos ter acesso a todos os arquivos, chamadas e mensagens do celular de Davi.

—Zero, você é um gênio. É sério.

Ele piscou para mim e rapidamente se virou ao computador novamente.

—Ei, eu faço isso! — reclamei. — Você não pode usar minhas manias contra mim!

Quando cheguei perto, Zero estava rindo, mas seu rosto estava vermelho. Ele virou para mim, ainda rindo, mas logo depois se espreguiçou e recuperou a postura.

—Eu poderia desmaiar de fome agora mesmo — falou, e eu não tinha certeza se estava brincando ou não. Apontei para o prato de comida, que já deveria estar frio àquele ponto. — Ah. Eu não vi. Obrigado.

Eu estava sentado na cama, mandando mensagem para Alice.

“Zero me mandou uma mensagem do tamanho de uma redação do Enem cheia de informações técnicas e números

Tradução, por favor” foi o que ela me mandou.

Enquanto eu tentava explicar para ela, lembrei das mensagens que eu havia mandado no carro, e da foto de Zero dormindo no meu ombro.

Então olhei para Zero e falei uma coisa muito impulsiva, ciente de que me arrependeria:

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—A gente deveria sair.

Zero manteve a expressão neutra, sem reação nenhuma, o que foi a última coisa que eu esperava.

Ele pensou por uns segundos.

—Não acho que eu esteja entediado o suficiente para querer sair daqui.

Ótimo. Ele não havia entendido.

“Sair, tipo, encontro. Tipo juntos. Juntos juntos” era o que eu deveria ter dito.

Mas perdi toda a coragem de soletrar para o garoto, e fiquei até um pouco aliviado que ele havia interpretado de outra forma.

Mas, ainda assim, eu também queria sair no sentido literal da palavra. Aquela casa fazia eu me sentir sufocado.

—É uma pena, — falei — porque o planetário daqui é ótimo.

—Eu sei que você falou isso para me manipular —Zero começou —, mas eu realmente não me importo. “Planetário” é o suficiente para me convencer. Só vou conectar meu celular no seu computador para caso acontecer algo.

Tentei esconder a decepção no meu olhar enquanto descíamos para o andar de baixo e pedíamos um Uber para o planetário que, por sorte, não ficava longe.

Talvez fosse melhor daquela forma. As coisas estavam boas como estavam. Tentar mudar algo seria como colocar uma última coluna em um castelo de cartas que já estava perfeitamente formado.

Considerando que se tratava de nós dois, eu sempre carregava comigo essa sensação de que, a qualquer explosão, minha ou dele, voltaríamos a nos odiar. Eu não poderia provocar nenhuma briga ou tensão desnecessária, e o fato de eu achar estar tendo sentimentos românticos por Zero era exatamente o tipo de sentimento que geraria conflito desnecessário.

Eu só precisava fazer o que fazia com o resto dos sentimentos: ignorar.

O que parecia fácil, na teoria. Na prática, nem tanto.

—Você bateu seu recorde — Zero comentou, assim que chegamos ao planetário.

—O quê?

Ele olhou para o relógio.

—15 minutos sem falar nada. 15 minutos. As únicas vezes que te vi esse tempo todo calado foi quando estava dormindo. E, se bobear, nem isso.

Deixei escapar um sorriso, mas fiz a melhor cara de desprezo que consegui.

—Falou o cara que ficou 30 minutos fazendo uma dissertação sobre peixes e hidrodinâmica.

—Isso é injusto, não conta quando eu estou falando de física.

—Você só fala sobre física. Metade das nossas conversas é “blá blá blá teoria da relatividade blá blá blá radiação cósmica”.

—Admito que estou um pouco ofendido —comentou, a expressão levemente triste. — Eu prometo que vou tentar falar menos de física.

—Não! — reclamei. — Você não pode levar as coisas que eu falo a sério, Zero.

Zero soltou uma gargalhada, a expressão mudando imediatamente, e me empurrou de leve.

—É, como se eu não soubesse disso. Viu como é fácil te fazer admitir que gosta quando eu encho seu saco?

—Caralho, que jogo sujo — respondi, rindo.

—Vingança por me fazer sair nesse calor.

Entramos no planetário, e eu confessei a Zero que também nunca tinha ido ali, o que só o incentivou mais a querer visitar todas as exposições. Eu não me lembro de já ter o visto tão feliz assim.

Eu não me lembro de já ter me visto tão feliz assim.

Se não fosse o fato de eu estar me forçando o tempo todo a me lembrar que eu e Zero éramos só amigos, aquilo tinha tudo para ser um encontro: nós dois passeando pelo planetário, conversando sobre o universo, rindo um pouco alto demais e esquecendo que existia um mundo lá fora.

A parte mais impressionante de todo o museu era uma sala, em forma de cúpula, onde todas as partes eram projeções do céu noturno. Era como estar, literalmente, entre as estrelas.

Sentei na cadeira do corredor, Zero do meu lado. Nos minutos em que esperávamos o vídeo que iria ser exibido começar, Zero se inclinou para mim, apontando para o céu que estávamos vendo e sussurrou:

—Você sabia que dá para dizer a temperatura de uma estrela…

—Pela cor — o interrompi. — Estrelas vermelhas são as mais frias. Quanto mais próximas do azul, mais quentes.

Zero me encarou por uns segundos, como se estivesse levemente surpreso.

—O quê? — perguntei. — De vez em quando, eu presto atenção no que você fala.

Não era uma coincidência eu me lembrar daquele fato específico. No dia que Zero me contou isso, ele usou o exemplo de chamas de fogo: quanto mais azuis, mais intensas.

Naquele momento, eu finalmente consegui achar as palavras que estive procurando para descrever a intensidade dos olhos de Zero: fogo azul.

—Tem uma escala de classificação para descrever o espectro de cores em relação a temperatura, — Zero falou, me puxando para a realidade novamente — e foi bem engraçado quando tivemos que decorar. O, B, A, F, G, K, M. O mnemônico para isso é um dos melhores já inventados, sério — comentou, sorrindo. — “Oh, Be A Fine Guy and Kiss Me”.

—Seja um bom garoto e me beije — traduzi, baixinho.

Levantei o olhar para Zero, e estávamos perto o suficiente para que eu conseguisse ouvir sua respiração.

Eu sabia que queria o beijar, e pela forma que ele me olhava, como se eu de alguma forma fosse mais interessante do que todas as aquelas estrelas ao nosso redor, poderia jurar que ele queria também.

Zero deixou que eu colocasse a mão em seu pescoço.

Deixou que eu chegasse tão perto que eu acreditei, por uns segundos, que aquilo estava realmente prestes a acontecer- e então ele gentilmente virou o rosto, um sorriso triste como quem dizia: “ me desculpa”.

Assistimos o vídeo em silêncio, e saímos da cúpula ainda sem coragem de falar qualquer coisa.

Era deprimente o fato de eu estar me sentindo tão magoado. Não fazia sentido.

Ainda assim, estávamos tão estupidamente desconfortáveis na presença um do outro que eu só conseguia pensar:

“Parabéns, Eros. Você finalmente conseguiu seu diploma em Estragar As Coisas! ”

Eu não estava acostumado a ser rejeitado. Ou a me importar com ser rejeitado, de qualquer forma.

Zero observou o próximo andar do museu em silêncio, e o ver tão quieto depois de ter estado tão falante era como acordar de um sonho muito bom.

Eu estava começando a me sentir tão sufocado por todo aquele desconforto que a única coisa que consegui dizer foi:

—Eu preciso ficar bêbado.

—O quê? — Zero disse, confuso.

—Eu preciso ficar bêbado — repeti. — A gente pode ir para outro lugar?

—Eros, eu não sei se é uma boa ideia…

—Já está de noite. A gente passa em algum pub, fica lá só tempo o suficiente para beber um pouco e vamos para casa. Por favor? — implorei. Eu estava me sentindo patético e havia tanto tempo que eu não bebia nada que aquela me parecia a ocasião perfeita para ficar bêbado e esquecer os problemas.

Ou ficar bêbado e chorar no colo de Zero, o que eu implorei para mim mesmo do futuro que, por favor, não fizesse.

Zero concordou, a cara fechada de quem realmente não queria ir.

—Mas você vai ficar sóbrio o suficiente para que, um, você lembre o caminho de casa e dois, eu não precise dar um jeito de te carregar porque isso não vai ser nada fácil.

—Fechado — respondi, imediatamente. — Que tipo de pessoa você acha que eu sou, afinal? Eu nem sou de ficar bêbado — comentei, o que era verdade.

Mas que não foi tão verdade assim para aquela noite específica.

Levei Zero para o lugar que eu costumava ir com meus amigos, o Only Hope, uma balada gay com dois andares- o primeiro era uma lanchonete/ bar inspirado em fliperamas antigos, com uns jogos e mesas para sentar, e o segundo andar era apenas a pista de dança.

Admito que talvez eu estivesse pensando em dar um perdido em Zero e fugir para o segundo andar.

Assim que chegamos e nos acomodamos em uma das mesas, a primeira coisa que eu fiz foi pedir uma garrafa de vodka. Zero pediu água.

—Você realmente não vai beber? — perguntei, irritado.

Ele me olhou, confuso.

—Eu literalmente não posso beber. Os remédios, lembra?

Me senti culpado por ter feito a pergunta de forma tão acusatória e por ter me esquecido de uma coisa tão importante. Eu estava me sentindo culpado por muitas coisas.

O fato de termos continuado em silêncio, esquisitos um com o outro, também não ajudou. Eu havia propositalmente levado Zero a um lugar cheio de referências a jogos, super-heróis e star wars, na esperança que ele não aguentasse e começasse a falar, como sempre faz.

Não adiantou.

—Você está… bebendo bastante rápido — Zero comentou.

Eu nem havia percebido.

—Não, claro que não — falei. Me sentia mais leve. Menos infeliz. — Hoje foi bom para caralho, não foi? Eu te disse que ia ser ótimo conhecer o planetário! Vamos apagar a última hora. Certo? Isso é bom. Melhor.

Zero deu de ombros.

—É, foi legal até.

—O que você mais gostou? 1,2,3, vai!

Ele abriu um pequeno sorriso.

—Não sei. Acho que a parte sobre a história das descobertas astronômicas, porque eu descobri umas coisas que eu não sabia.

—E existe alguma coisa que você não saiba? — falei. Não sabia se estava reclamando ou o elogiando.

Eu sentia que estava sendo mais extravagante do que o normal, e não sabia se era culpa da garrafa de vodka vazia, ou se era porque Zero estava rindo e eu queria tão desesperadamente quebrar aquela barreira que surgiu novamente.

Então ele parou de rir.

—Eros, você não acha que já chega?

—O quê? — perguntei. — Já chega de quê?

Ele apontou para a segunda garrafa que eu havia pedido.

—De beber. Você está falando rápido demais. Eu estou começando a ficar preocupado de verdade.

—Besteira! — reclamei. — Tipo, eu estou bem. 90% sóbrio. 90% é uma palavra engraçada, não é? Quero ir dançar. Vamos ir dançar? Lá em cima?

—É, chega — ele falou, pegando a garrafa e puxando para o lado dele da mesa, ao que eu cruzei os braços e fiz cara feia. — Acho que está na hora de ir embora.

—Merda. Não. Claro que não — reclamei. — Eu odeio aquela casa. Eu odeio minha família. Estúpidas pessoas que se acham melhor que eu. Eu não sou uma pessoa ruim. Sou?

Aquele foi o momento exato que eu percebi que estava, não só bêbado, mas muito bêbado. E prestes a começar a chorar.

—Você quer saber uma coisa muito engraçada? — falei. — Nenhum dos meus amigos daqui quiseram sair comigo quando souberam que eu estava vindo. Filhos da puta. Só porque eu “abandonei eles” ou algo do tipo. O que é estúpido, porque o que eu deveria fazer na época? Ligar para eles e falar “É, desculpa, não estou conseguindo manter contatos sociais porque acabei de ver a pessoa que eu mais amava sendo morta na minha frente, mas claro, claro que vou na sua maldita festa de aniversário! ”. Tanto faz. Eu não me importo.

Eu nem sabia mais do que estava falando direito. Só sabia que estava com raiva e triste.

Zero me interrompeu antes que eu continuasse.

—Eros? — chamou, mas eu ignorei e continuei falando. — Eros. Leonardo.

A voz de Zero me chamando pelo meu nome verdadeiro pela primeira vez foi o que me fez prestar atenção.

—Eros, eu adoro que você está se abrindo e tudo mais, mas eu realmente não quero que você me conte nada que vá se arrepender depois — falou, num tom firme, quase que brigando comigo. — Você sabe que pode me contar qualquer coisa, okay? Só não agora. Eu prometo que vou ouvir o que quer que seja que você quer conversar sobre quando você estiver sóbrio.

—Eu nem estou tão bêbado — insisti, sabendo que era mentira. Senti as coisas ficando esquisitas, de repente. — Zero, não relacionado com o fato de eu estar bêbado, porque não estou, mas acho que vou vomitar — anunciei, logo antes de sair tropeçando para o lado de fora e vomitar na calçada.

Zero e um dos atendentes apareceram lá depois de uns minutos, com uma garrafa de água e uma cadeira de plástico, que eu sentei e escondi o rosto com a mão.

Zero ficou parado do meu lado por uns segundos, até que eu tomei coragem para sussurrar:

—Me desculpa.

—O quê? — ele perguntou confuso.

—Eu não queria… eu acho que te entendi errado hoje e… estraguei tudo. Eu não deveria ter tentado… eu... — soltei um soluço, senti as lágrimas descendo.

Zero passou a mão pelo meu cabelo, devagar.

—Eros, tá tudo bem, eu prometo. Você não estragou nada. — Ele suspirou, cansado. — Eu é que deveria estar pedindo desculpas. É só que…

Ele parou por uns segundos, então levantei o rosto para o olhar, mas eu estava tão tonto que acabei apenas deitando em seu ombro.

—Talvez eu seja um covarde — Zero falou. — É só que… não sei, eu fiquei confuso. Eu ainda estou confuso. Mas espero que você saiba que...

Zero hesitou novamente, se engasgando nas próprias palavras.

—Eu só fiquei com medo porque… — continuou. — Porque acho que você é a única pessoa que eu tenho nesse mundo. Eu só fiquei com medo.

—Eu também — murmurei. — Pensei que você fosse me odiar e nunca mais falar comigo.

—Não. Nunca. Mas eu realmente não sei como me sinto em relação a isso. Não sei nem como você se sente. A gente conversa sobre depois, se você quiser. No momento, eu só quero te tirar daqui, e me certificar que você troque essas roupas sujas e vá dormir. Eu odeio te ver assim.

Ele prendeu meu cabelo com o elástico que eu mantinha no pulso e sussurrou “Vamos”.

Assim que levantamos para pagar a conta e ir embora, o celular de Zero apitou.

Eu conseguia ver que seu rosto ficou pálido e ele olhou para mim, assustado.

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—Eros. Eros, funcionou— murmurou. — Não pode ser.

—O quê?

Eu conseguia ver as mãos de Zero tremer enquanto seguravam o celular.

—Acabei de conseguir acesso a todos os arquivos do celular de Davi. Precisamos ir embora. Agora.