Amarelo- Lírio e Fogo Azul

Capítulo 1 - Eros


Eros

Eu gostava de ser o melhor, com a exceção de que não era. Não mais.

1- Yan Dias, física

2- Leonardo Mendes, artes visuais

A única coisa que eu odiava mais do que a visão do meu próprio nome em segundo lugar, era a porcaria do Zero em primeiro. Novamente. Eu honestamente não sabia como me surpreendia ainda. Depois de um ano completo ficando em segundo lugar, era de se esperar que eu estivesse acostumado, ou, pelo menos, conformado.

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A multidão de alunos que se formava ao redor da lista foi se dissipando um pouco atrás de mim e eu consegui ver, de canto de olho, Zero andando até perto, se empurrando na sua cadeira de rodas vermelha. Revirei os olhos, e tentei ir para o lado para sair de lá, mas seria impossível voltar com esse tanto de alunos.

Zero parou do meu lado e eu abri um sorriso falso.

—Parabéns – murmurei, sem fazer questão de parecer sincero.

Zero sorriu e balançou a cabeça, como se achasse aquilo muito engraçado.

—Será que tem como dizer de novo sem parecer que quer me matar?

Bufei.

—Eu não tava sendo irônico— menti, tentando manter a postura mesmo que todo mundo que soubesse mínimo sobre nós dois soubesse que não nos dávamos muito bem. – Só tava te dando parabéns por ter ficado em primeiro lugar nesse teste que claramente não significa nada já que só testa nossas habilidades em matérias básicas.

O olhei, e pude ver que, atrás dos grandes óculos quadrados e vermelhos, ele parecia que estava prestes a começar a rir a qualquer momento. Era fácil para ele rir da situação, enquanto eu me sentia quase como se estivesse literalmente fervendo por dentro.

—Você fica em primeiro no próximo mês – ele disse. Zero dominava a arte de dizer algo que parecia agradável, mas que, na verdade, era um deboche. Ele virou o rosto para o meu lado, pensativo. – Eu te disse isso mês passado, não disse? Acho que sim.

Abri a boca para dizer algo, mas me segurei. Eu me orgulhava de me manter calmo em situações de estresse, mas esse garoto sempre me tirava do sério. Os alunos ao redor já haviam diminuído, e percebi que eu conseguiria sair dali se quisesse.

Me encolhi, tentando abrir espaço.

—Tchau para você também, Eros. Que rude – Zero comentou, alto, enquanto eu saía.

Virei para trás, com uma expressão que dizia “É sério isso? ”

Ele sorriu, seu cabelo escuro e bagunçado caindo em seus olhos, e deu de ombros. Manteve o sorriso enquanto virava para olhar a lista em paz, e eu fui andando pelos corredores procurando Alice.

A achei sentada em uma escada, o braço ao redor de seu namorado, Davi, que eu não odiava, mas também não era muito chegado.

Acenei para ela de longe, que deu um beijo na bochecha de Davi e foi até mim, contente.

—Segundo lugar! – ela falou, feliz. – Você não ouse abrir essa boca para reclamar – me cortou, antes que eu pudesse falar qualquer coisa.

—Mas... – comecei, e ela interrompeu.

—Não. Sem reclamar, segundo lugar é ótimo.

Alice balançou suas tranças estilo box braids, acenou para o namorado que estava saindo de nossa vista e olhou para mim novamente.

—Okay – falei, me conformando. – E você?

Ela sorriu, animada.

—15! Subi cinco posições desde mês passado, dá pra acreditar?

Ela realmente tinha melhorado bastante.

—Parabéns! – disse, sincero.

—A aula começa daqui a pouco, vamos? – Eu concordei com a cabeça. – Eu não entendo – falou, enquanto andávamos. – Você consegue ficar feliz pelo meu 15, mas tá sempre reclamando de estar em segundo lugar.

A olhei, levantando a sobrancelha.

—Eu posso reclamar agora?

Alice revirou os olhos.

—Pode.

—É só que... eu nunca tô satisfeito. Quando meus irmãos estudaram aqui, eles sempre ficavam em primeiro. Até o Gabriel, e olha que ele foi expulso.

Ela deu de ombros.

—E daí? Você não é seus irmãos.

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Esse é exatamente o problema. Sem contar que assim que a gente se reunir, eles vão ficar me lembrando disso, e é como minha mãe diz “Segundo melhor não é o melhor. ”

Me encolhi, lembrando exatamente do tom da minha mãe ao falar isso. Ela era um dos motivos pelos quais eu evitava voltar para casa nos domingos, quando nos deixavam sair do instituto se quiséssemos.

—Com todo respeito – Alice começou—, mas você tem 20 anos, foda—se a sua mãe. Ficou em segundo lugar numa lista de quase 500 alunos, se ela não tá orgulhosa disso, então foda—se ela.

Soltei uma gargalhada, em silêncio, querendo conseguir concordar. Quando acabei o ensino médio e fui aceito aqui, na faculdade mais prestigiada do Brasil, pensei que meu inferno de ser comparado com meus irmãos havia acabado. Mas o Instituto tem essas malditas provas, que testam mensalmente nossos conhecimentos básicos e que, por acaso, tornou meus irmãos conhecidos por sempre ficarem em primeiro lugar, além de todos eles terem sido aceitos e se formado aqui. Eu sabia que, como um dos Irmãos Mendes, tinha uma reputação a zelar.

Fomos andando até a sala, e nos sentamos no canto, perto da janela, do lado de João, a outra ponta do que formava nosso trio. Por algum motivo que eu não havia conseguido descobrir ainda, não haviam muitos grupos de amigos aqui no IN, mesmo que todos fossem amigáveis e conversassem entre si, pouca gente tinha amigos próximos. Eu era sortudo nesse sentido, de certa forma.

De todas as classes, aquela era a que eu mais odiava, e a que me saía pior.

“Expressão de sentimentos pela lente da pintura” era o nome estranhamente específico da aula ministrada por Eliza, que também era a coordenadora do curso de artes.

“Quem precisa de uma aula para aprender a expressar sentimentos?” murmurei para Alice, no início da primeira aula que tivemos.

Bom, eu precisava, aparentemente.

Se minha confiança já era baixa normalmente, ela saía de lá acabada. Em todas as aulas, eu tinha que ouvir variações diferentes do mesmo discurso de Eliza.

“Leo, você é incrivelmente bom em técnica. A perspectiva disso está... quase perfeita. E você domina cores como ninguém. Mas eu olho para seus quadros e eu sinto.... eu não sinto nada. O que isso significa? O que você tava querendo dizer com isso?”

Que, geralmente, era seguido de um silêncio constrangedor entre eu e o resto da sala. Porque eu não queria dizer nada e, quando queria, não sabia expressar. Meus quadros eram só quadros e meus sentimentos eram só meus sentimentos e, aparentemente, ao contrário de todos que sabiam o fazer naturalmente, eu não conseguia misturar os dois.

Eu conseguia, muito tempo atrás. Mas, depois do incidente com Wendy, eu precisei me esforçar de forma extraordinária para me manter calmo e racional, e tinha me tornado tão bom naquilo que não sabia mais como sentir as coisas.

Nas aulas, geralmente, falávamos sobre um sentimento específico e maneiras diferentes de transferi—lo para a tela, analisávamos alguns quadros e seus sentimentos ou coisas do tipo.

Depois que todos haviam se sentado, Eliza começou a falar. Abriu o computador, e projetou no quadro um quadro que todos nós já conhecíamos.

—Guernica, de Pablo Picasso. Acredito que vocês estejam familiarizados com ele.

Ela falava andando pela sala, concentrada.

—Acho que a primeira coisa que dá pra se lembrar ao pensar nessa tela é que ela é um grande símbolo político anti—guerra.

Eliza prosseguiu, contando como o quadro fazia referência ao ataque nazista em Guernica, que foi realizado majoritariamente para os alemães testarem suas armas.

—A cidade foi reduzida a cinzas. Mais de mil civis morreram. E foi isso que inspirou Picasso a representar sua dor com esse quadro. É impossível o dissociar com os ideais políticos óbvios que ele representa, mas, de muitas formas, acho que todos nós conseguimos nos identificar com algo aqui. A perda. Seja como a mãe segurando o filho – ela falou, apontando na pintura – ou o homem gritando. Seja perder alguém ou perder uma oportunidade. É por isso que eu vou fazer algo diferente hoje, ao invés de explicar primeiro algumas formas que vocês podem passar esse sentimento para a arte de vocês, quero que, primeiro, façam um quadro pensando em alguma perda que tiveram. Não vou dar um estilo específico, contando que tenha significado, mas tem que ser a óleo. Desculpa, galera da aquarela. Eu vou orientando vocês durante meu horário, não precisa ficar pronto hoje, mas eu quero isso até a aula que vem.

Aquilo foi tudo que precisou para que eu ficasse 15 minutos olhando para uma tela em branco, as mãos tremendo. Eu sabia exatamente o que deveria pintar, mas não conseguia me forçar a fazê—lo.

Eliza foi até mim.

—Nenhum progresso?

Balancei a cabeça negativamente, frustrado. Ela olhou um pouco ao redor, e então foi para o meio da sala, entre nós e nossas telas.

—Gente, alguns de vocês estão tendo dificuldade com isso. Acredito que não seja fácil representar algo tão pessoal como a perda.

Ela me olhou de relance e então me ocorreu que talvez soubesse de Wendy, visto que meus irmãos estudaram aqui e a maioria dos professores também conhecem nossos pais.

—Quando Picasso pintou Guernica, — Eliza continuou— ele estava passando por um período que ele mesmo descreve como sendo o pior período de sua vida. Ele tinha acabado de perder a mãe e estava sem inspiração. Situações tão dolorosas assim podem tirar nossas inspirações. Mas quando o ataque em Guernica aconteceu, Picasso utilizou toda a sua dor para montar o que foi uma de suas obras primas. O que eu quero dizer é: transformem a dor de vocês em arte, pode sair melhor do que o esperado.

Cruzei os braços, chateado. Eu tinha uma certa repulsa pelos discursos emocionados e analises profundas de Eliza, mas, ao mesmo tempo, a admirava. E algo em mim, talvez não querer ouvi—la reclamando no meu ouvido depois, me incentivou a dar uma chance e pintar uma variação do mesmo quadro que tinha me feito entrar aqui.

Foi o que pintei há dois anos atrás, no meu exame de admissão, mas uma versão modificada.

Uma criança pequena, com um vestido e tranças, brincando numa linha de trem. No fundo, folhas cobriam o local, que parecia estar abandonado ou, pelo menos, ser bem antigo. A pintura toda era baseada em tons de laranja e amarelo, as folhas de outono e o cabelo loiro da criança em destaque. Ela parecia olhar diretamente para o centro da tela, quase como se olhasse nos olhos de quem visse o quadro.

Eu sabia exatamente como desenhar Wendy, como reproduzir os traços dela mesmo depois de tanto tempo, e sabia qual a mistura de cores que dava, exatamente, a cor do cabelo loiro dela. Aquele tom de amarelo era meu favorito, e também era o tom do meu próprio cabelo. Sempre que eu podia, o usava em pinturas. Eu estava sempre misturando aqueles tons e colocando pedaços de coisas que me lembravam ela em tudo que podia. Por isso, era tão familiar desenhá-la mesmo depois de tanto tempo.

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No entanto, nessa versão tudo estava propositalmente borrado, como se algo tivesse molhado a pintura original. A única coisa que estava clara era a menina, mas ela ia ficando mais borrada em algumas partes, como se estivesse desaparecendo.

Pensei “ Tenho medo que ela esteja desaparecendo”

Antes que eu entrasse num espiral de pensamentos, o sinal tocou e eu guardei a pintura para continuar depois. Saí de lá ansioso, tremendo, precisando desesperadamente de uma distração.

Foi quando vi uma professora que eu não lembrava o nome, mas ela carregava uma pilha de 5 livros pesados. Parecia estar indo na direção da sala que eu sabia que Zero e o resto dos alunos do projeto se reuniam naquele horário. Zero era o líder da equipe, e eles haviam ganhado, duas vezes, a vaga que o colégio abria eventualmente para realizar projetos com os alunos. Eu sempre quis descobrir exatamente o que eles faziam.

Me inscrevi nas duas vezes para tentar conseguir minha própria exposição, e, nas duas vezes, Zero conseguiu a vaga. Eu nunca sempre estava tentando arrumar uma desculpa para chegar perto e descobrir o que era de tão importante.

Não pensei duas vezes antes de ir até a professor e perguntar:

“Precisa de ajuda?”

Ela assentiu e dividiu os livros comigo, e afirmou que estava indo até a sala 7, ao que eu comemorei internamente.

A sala era grande e tinha uns três blocos, um com computadores e um quadro, um com cadeiras e outro com vários armários.

Enquanto ajudava a professora a colocar os livros nos armários, percebi que era difícil ser discretamente fofoqueiro, porque Zero imediatamente me viu olhando de canto de olho e riu, baixo. Ele era uma visão esquisita, pra ser sincero. Ele era o equivalente a um quadro com informações demais, daqueles que tornam difícil prestar atenção em uma coisa só. O que mais chamava atenção, de primeira, eram os óculos e a cadeira de rodas, os dois vermelhos, combinando entre si. Ele era bem magro e sempre usava blusas largas, que contrastavam com o cabelo cheio e as sardas. E seus olhos eram incrivelmente azuis, um azul forte, saturado, num intermédio entre azul—claro e azul—céu. Eu nunca havia conhecido ninguém com olhos assim.

Desviei o olhar. A professora agradeceu minha ajuda e saiu, antes de mim. Eu fiquei lá em pé, desajustado, por uns segundos. Foi quando pensei: “dane—se” e decidi ser inconveniente sem nem disfarçar. Tinham alguns rostos conhecidos lá onde Zero estava, gente que eu ocasionalmente dava oi e falava algo ao passar pelos corredores, e foi o que me motivou a ir falar com eles.

Cheguei perto do grupo de alunos, que se reunia ao redor de um computador. Olhei para ver quem eu reconhecia: tinham dois garotos que eu não conhecia mas que provavelmente eram de física, tinha Leila, de história, e me perguntei o que ela estava fazendo ali no meio deles, e Diana, de computação, que eu conversava regularmente. Dei oi para todo mundo e Zero soltou:

—Cara, o que você ta fazendo aqui?

“Vendo o que seu estúpido projeto é para confirmar que ele é estúpido” pensei, mas não respondi.

—Ajudando aquela professora que acabou de sair.

—É a Sonia! – Diana disse. Parecia não estar incomodada de eu os ter atrapalhado. – Ela é super maneira, exceto quando tá dando aula.

Eles começaram a conversar entre si, e eu tive um pequeno intervalo para olhar o computador, que tinha uma planilha no excel, mas não consegui distinguir o que exatamente eles estavam planejando. Zero me viu observando, e levantou uma sobrancelha. Eu revirei os olhos, e desisti.

—Gente, eu já tô indo. Vejo vocês por aí?

—Ei, pera aí – Diana falou, antes que eu me virasse e saísse.

—O quê?

Ela apontou para Zero e depois para mim.

—Vocês foram os dois primeiros lugares na Classificação, né?

—Eu não consigo fugir disso – murmurei, baixo o suficiente para ela não ouvir.

—O que?

—Nada.

—Fomos sim – Zero disse, curioso. – Por que?

—Eu ouvi eles dizerem que vão reorganizar os dormitórios — Diana comentou. Ela fazia parte do Grêmio estudantil, mas também era consideravelmente fofoqueira. Eu a olhei, confuso, sem entender a relação daquilo com a pergunta.

Foi quando ela disse:

—Talvez eles usem a lista para organizar. Tipo, do número até o último.

Então ela balançou a cabeça, olhando para nós dois.

—É, vocês dois como colegas de quarto vão ser uma dupla e tanto.

—Se não se matarem antes – um dos garotos falou, e eles riram.

Eu e Zero nos encaramos de lados opostos da mesa.

“Eu espero que não seja verdade” murmurei, e ele concordou com a cabeça. Estávamos igualmente descontentes.

Das piores coisas que poderiam acontecer lá dentro, aquela era definitivamente a pior.