Ainda era cedo da manhã, até este momento o sol espreitava incompleto no horizonte emergindo aos poucos para fornecer seu calor naquele clima que permanecia como uma lembrança da noite que passara. Eu despertava de mais um sonho neurótico que novamente atrapalhou meu tempo de descanso. Estava longe de ser a primeira vez que eu emergia daquela cama me sentindo ainda mais indisposto do que quando me deitava para descansar.

O frio da manhã era agradável, mesmo sentindo um leve incomodo pela noite mal dormida, consegui me levantar para iniciar a rotina diária.

Me sentei na lateral da cama ainda mantendo os olhos fechados na vã tentativa de ativar meus sentidos ao máximo, podia escutar o som da televisão da sala, provavelmente era Kane assistindo algum filme doido de destruição.

Essa insônia era um incômodo constante que eu já era acostumado a lidar, passava dias e noites acordado no meu antigo emprego. Uma consequência que eu já esperava.

De repente a porta de entrada recebe algumas batidas do outro lado.

— Pode entrar... — Permiti com uma voz falha e visivelmente indisposta.

— Hunter, precisa de ajuda com a prótese? — Meu primo mais novo, Joshua, recém liberado da faculdade de engenharia pelas férias da metade do ano, era um garoto esperto.

Retirei o lençol de cima da minha meia perna direita, uma outra lembrança dos meus tempos na ativa do Exército Americano.

Eu havia sido dispensado de meus serviços um pouco antes da ordem de retirada das tropas americanas do território afegão, meu pelotão havia sido convocado para uma operação de resgate de reféns de uma vila comandada pelo grupo do “Talibã”. Conseguimos tirar nossos aliados do porão onde eram torturados dia e noite para que compartilhassem nossas informações, abati muitos homens naquele dia; tudo correu bem na maior parte da ação, mas fomos descobertos pelos guardas e logo todo o contingente presente nos alvejou.

Durante a fuga, meu companheiro ficou preso no fogo cruzado tendo apenas algumas barreiras de rocha para se proteger dos disparos ensandecidos de centenas de talibãs enfurecidos. Eu e os outros dois membros do esquadrão já estávamos em uma zona segura livres para seguir, eu não podia deixar meu companheiro permanecer naquela situação, apesar dos avisos de negação dos demais, minha mente não encontrava uma resposta lógica rápida naquele momento, contudo, senti algo diferente em mim... um tipo de impulso incontrolável de energia que me deu forças e me fez agir.

Eu consegui tirá-lo de lá — porém, não escapei ileso.

Joshua soube da minha condição assim que retornei para os Estados Unidos, trabalhou dia e noite num no protótipo de um membro metálico substituto de alta performance, esse garoto se matou por isso para tentar me ajudar. Aquele incidente marcou o fim da minha carreira no exército e fui dispensado para viver minha vida longe das loucuras que eu já havia me acostumado.

Após isto, me juntei aos meus primos e nos mudamos para o Brasil na cidade de Manaus onde usei parte dos meus recursos provenientes da remuneração e abri uma academia de artes marciais para jovens e adultos. Os dois anos seguintes se resumiram apenas em trabalho e reabilitação para mim — Kane me ajudou bastante a recuperar os movimentos precisos do corpo que foram danificados junto da perna após o choque, seus trabalhos na área da fisioterapia foram excelentes para minha recuperação.

Peguei a prótese e calmamente prendi em minha perna, levou um tempo para me adaptar e poder recuperar minhas antigas capacidades físicas, agora, aos poucos me esforço para alcançar o auge novamente.

— Vai dar aula hoje? — Ele perguntou num tom tranquilo com um leve sentimento de curiosidade.

— Sinceramente, hoje não. Não estou me sentindo muito disposto por agora! — Terminei de prender a perna e enfim pude me levantar daquela cama.

— Pesadelos de novo? — Sua expressão permaneceu inalterada, no entanto, sua curiosidade parecia ter se tornado um pouco maior graças ao seu conhecimento dos meus problemas noturnos. — Strippers com gonorreia ou a mulher iluminada?

— Segunda opção... — Abaixei a cabeça lembrando do que tinha visto, alguma espécie de visagem que insistia em surgir nos meus sonhos falando coisas sem sentido que eu ainda não conseguia entender.

Minha mente percorria até os limites na intenção de encontrar alguma resposta, e tudo o que encontrava era os cenários cataclísmicos que eu presenciava toda noite ao dormir. Talvez fosse só o estresse diário me fazendo ver aquelas coisas, mas essas situações se repetiam praticamente toda noite tirando meu sono calmo.

— Oh, Hunter! — Kane gritou desde a sala chamando nossa atenção. — É a sua vez de custear o rancho da semana, toda nossa comida tá quase acabando.

— Mais tarde eu resolvo isso! — Respondi já saindo do quarto.

A tontura insistia em me derrubar, Joshua que continuava ao meu lado reconhecia esses lapsos de fraqueza em mim desde o meu retorno — caminho de forma desengonçada até a passagem da porta já me segurando na lateral para me fixar enquanto luto para manter a compostura.

— Essa insônia recorrente está afetando seus nervos desgastados, precisa encontrar uma solução para isso o quanto antes. — Afirmou Joshua olhando para minha cara suada e pesada.

— Não estou a fim de ficar em casa de novo, essa porcaria de quarto já está me emputecendo. — Dias e mais dias numa rotina repetida baseada somente em casa e trabalho.

— Não se esforce tanto, não tem mais as mesmas forças que tinha antes.

Parecia uma coisa boa levando em consideração tudo o que passamos até este momento para ter algum rumo novo na vida.

Eu aprendi muitas coisas enquanto estive nas forças armadas, mas também precisei fazer outras coisas que não me orgulho nem um pouco de recordar cujas consequências ainda persistem.

Kane era o mais velho da penúltima geração da família, ele e Joshua foram uns dos únicos que ficaram ao meu lado e se dedicaram a me ajudar na recuperação. As pessoas costumam julgar o que não entendem de verdade, eles conhecem os deveres de um militar em território turbulento — só que se limitam apenas nas questões de ética e moral, não sabem nem do começo das coisas que nós nos obrigamos a fazer para sobreviver.

Lentamente segui em direção à cozinha, Joshua abriu as cortinas da varanda ao passarmos pela sala dando a bela visão do quintal iluminado pelo nascer do sol. Kane não mentia. A comida já estava literalmente no fim, não seria dessa vez que eu poderia procrastinar um pouco antes de resolver essa situação. Meus movimentos já aparentavam naturais mesmo com uma perna falsa, falei com Joshua que iria sair com o carro para fazer o rancho do mês e ele se dispôs a me acompanhar na viagem — ainda era bem cedo, não haveria filas imensas para tomar demasiado tempo de espera.

Momentos depois já estávamos no carro prontos para partir, a garagem se abriu lentamente, o jardim parecia meio abandonado ultimamente e o mato cresceu descontroladamente.

Mais tarde eu resolvo isso... — Ligando o carro e seguindo na direção do portão principal.

— Será que os preços dispararam de novo? — Perguntou Joshua deitado no banco do passageiro.

— Com as recentes estimativas da inflação, não duvido nada! — O mundo atual não ia nem um pouco bem com as tensões se instaurando entre as maiores potências.

Atravessamos o portão automático e seguimos em direção ao supermercado mais próximo nos arredores do centro da cidade, apesar do amanhecer avançar e o horário de surgimento do sol, nuvens carregadas pairavam pelos céus bloqueando os raios de luz da manhã — esse seria um dia bem frio.

O caminho seguia tranquilo, pessoas a caminho de suas ocupações diárias, um início de dia como qualquer outro.

Até que o trânsito estava rápido apesar da grande circulação, Joshua permanecia distraído no celular com os fones de ouvido, sua expressão era um misto de seriedade com descontração. Logo paramos no sinal vermelho e me inclinei para saber o que era.

— O que tá vendo aí? — Perguntei tentando ver o que era.

— É só o noticiário, luzes estranhas foram captadas pelos céus em várias partes do mundo incluindo o Brasil. — Mostrando o repórter comentando sobre o assunto.

Joshua parecia desinteressado em relação ao assunto, não o culpo por isso, eu mesmo não tive tanta curiosidade sobre o assunto naquela ocasião. Não era do meu feitio viver de maneira descontraída, na verdade, eu só buscava distanciar meus pensamentos das adversidades que passei ao longo do tempo e ocupar a mente com qualquer coisa que me fizesse esquecer as terríveis experiências vividas no avance da juventude; no entanto, esse desejo simplicista me desviou da profundidade que aquele assunto poderia representar. E este foi o maior erro de toda minha vida.

— Aparentemente, vários cientistas do mundo estão abordando o assunto com diferentes visões pela falta de conhecimento do que pode ser essa coisa na realidade. — Falou ele relatando os boatos que escutou nos últimos tempos.

— E qual é a tua opinião pessoal disso? — Questionei de maneira desafiante que ocasionou no surgimento de uma expressão ainda mais desinteressada.

— Eu sei lá, cara. Eu sou engenheiro, e não o “homem do tempo”. — Respondeu de maneira impaciente e ríspida.

— Foi mal. — Respondi forçando uma risada de sarcasmo.

Ele sempre foi um garoto observador, só não tinha muito interesse em se aprofundar tanto em um assunto que não lhe renderia algo útil no percurso, era mais calculista e sabia dividir bem seu foco em coisas realmente importantes para si.

Era um bom rapaz.

Minutos depois finalmente chegamos no mercado, não estava tão movimentado naquele horário ainda, foi tranquilo e rápido para concluirmos nosso objetivo de juntar comida suficiente para o mês inteiro. Na fila do caixa apoiado no carrinho de compras, avistei três mulheres numa segunda fila que pareciam ter em torno de quarenta e cinquenta anos que conversavam sobre um assunto que tive noção a alguns dias atrás durante as minhas aulas na academia de artes marciais.

— Certeza que pegou certinho o que tinha na receita do médico? — A senhora de cabelos negros e óculos de grau perguntou para a outra que acabara de se juntar a ela.

— Sim, acho que vai ser o suficiente. — Respondeu mostrando algumas caixas de analgésicos e medicamentos diversos da farmácia do mercado. — Já faz mais de quatro dias que a Dana tá acamada com muitas dores. — Guardando tudo.

Lembro de ter ouvido falar sobre um novo surto desconhecido que estava se espalhando entre os mais jovens ao redor do mundo, onde muitos deles sentiam dores intensas e alergias torturantes pelo corpo que os faziam gritar em martírio. A OMS determinou estado de alerta sobre o assunto, mas como eram casos isolados e os sintomas não eram contagiosos, maiores movimentações para estudo dessas enfermidades foram bem lentas pelos poucos investimentos motivados pela baixa taxa de vítimas.

Porém, um dos meus alunos ficou ausente dos treinos, conversei com os pais e relataram que se tratava dessa mesma coisa. Até o momento, o contaminado mais velho retratado tinha 25 anos — três anos a mais do que eu — isso facilmente me incluiria no grupo de risco dessa coisa.

— Hunter! — Joshua me despertou repentinamente de meus devaneios para me alertar de um perigo iminente.

Uma criança brincava com uma bola de futebol que foi repreendida pelos funcionários do mercado e acabou chutando-a com força em minha direção no mesmo momento em que permaneci perdido em minha mente, meu primo notou a ameaça e me alertou, meus instintos despertaram os reflexos e apanhei o brinquedo no ar com a mão esquerda há poucos centímetros de me atingir no rosto.

Era nítida minha ausência da realidade naqueles momentos, Joshua pegou a bola e deu a maior bronca no garoto por esse descuido.

Momentos depois chegou nossa vez e terminei os pagamentos, queria voltar logo para casa e tomar um café da manhã digno.

Eu gostava daquele clima frio que fazia, apesar de estarmos na época de calor que começava em abril. Era certo que mais tarde viria um calor terrível para os Amazonenses. Logo chegamos no carro com as compras e nos dirigimos para casa.

— Esqueci de te falar... — Revelou Joshua sentado no banco do passageiro. — Tua mãe me ligou enquanto eu fui ao banheiro e disse que estava trazendo o Kyle para ficar uns tempos com a gente. — O observei com desdém por alguns milésimos que logo se desfez e voltei à tranquilidade. — Disse que estava passando por alguns problemas financeiros e queria resolver isso primeiro na ausência do garoto.

— Resumindo: o marido dela tá ferrando com as economias e agora não tá mais conseguindo sustentar nem a si mesma. — Respondi com desprezo na voz.

— É a vida que ela escolheu, as consequências são dela também! — Teclando no celular com uma amiga. — Vai ajudar? — Me encarando.

— É o meu irmão, não poderia recusar. — Parando no sinal vermelho da via de mão dupla.

— Aquele cara já causou muitos problemas para a família, me surpreende que você ainda não tenha dado um fim nele. — Memórias nada agradáveis me vieram a mente naquele momento, despertando uma súbita repulsa sobre o assunto.

— Também sinto o mesmo. — Lembranças consumiam minha mente como um filme interminável que eu odiava profundamente.

Horas mais tarde, estava sentado à beira da cama do meu quarto novamente, senti um cansaço súbito após o café e me fez voltar rapidamente para a cama e apagar.

Sentia estranhas náuseas ao me levantar, parecia outra vez mais acabado do que quando me deitei para dormir — tinha uma mensagem recente no celular avisando que os dois saíram para buscar Kyle no aeroporto, é certo que minha mãe deva ter achado em decisão a mais correta, ela odiaria olhar na minha cara de novo e admitir que eu estava certo desde o princípio sobre o imbecil do marido dela. Era mulher bem orgulhosa. Eu tinha uma outra irmã por parte de pai que não via há muitos anos, na época era só um bebê, meu pai cuidava dela antes de morrer em um acidente de trabalho em 2018; agora ela é cuidada pelo restante da família no árido estado do Arizona nos Estados Unidos.

Não demorou muito para que eles voltassem do aeroporto, passaram pelo portão principal e estacionaram o carro na porta da frente, tentei ao máximo não me atrasar para receber meu irmão menor, mas não tive sucesso, ainda estava me acostumando a caminhar com essa prótese. Cheguei na sala de estar caminhando devagar e, logo eles entraram pela porta da cozinha à esquerda do caminho onde eu seguia.

— Chegamos! — Disse Kane abrindo a porta trazendo uma mala vermelha consigo para dentro.

Kyle veio logo atrás, era só um menino de quase 9 anos de idade que vivia de cara emburrada, desde que eu e nossa irmã do meio saímos de casa cada um com seus motivos, ele ficou sozinho para viver com a mãe e o bosta do pai dele.

Joshua foi o último a adentrar e fechou a porta logo depois.

— Kyle, não vai falar com o teu irmão? — Questionou Joshua ao ver o garoto de braços cruzados desviando o olhar para a esquerda e evitando contato visual comigo.

Ele parecia bem receoso, seu olhar meio cabisbaixo emitia um leve sinal de repulsa e dor controlada. Me aproximei dele enquanto Kane tomava um copo de água do outro lado da cozinha e observava a cena, agachei em frente a ele e ergui seu rosto com a mão direita — é, não estava errado — havia algumas marcas estranhas no pescoço, pareciam cicatrizes um pouco antigas, em seguida puxei seus braços e mais outras marcas por todo lado como se alguém tivesse batido ali com muita força usando algum tipo de espanador muito duro.

Dei as costas e me dirigi de volta ao quarto para pegar o celular, nessa hora, Kyle que se manteve de olhos fechados durante o tempo em que eu via essas marcas, finalmente os abriu e contemplou a minha cara nada contente. Ele tentou chamar pelo meu nome, mas sua voz falhou ao sentir de mim uma repentina aura encolerizada, bem diferente da que experimentou no dia em nos despedimos no aeroporto antes de eu partir para o Afeganistão. Agora que me lembrei, ele evitou ao máximo manter contato comigo quando voltei e vivia trancado no quarto para escapar das discussões e guerras internas que rolavam por ali; as mesmas guerras que me fizeram partir para sempre daquele lugar e não olhar mais para trás.

Quando desapareci no corredor em direção ao quarto, Kyle tentou ir até mim, mas foi impedido por Joshua que o segurou pelo braço.

— É melhor não se meter nisso... — Advertiu ele sentindo uma tempestade se aproximar.

E não estava errado, naquele momento, meu semblante se alterou de tal maneira que podia destruir qualquer coisa só com a força da raiva. Cheguei no quarto e peguei o celular, só não lembrava qual era o número em questão, Kane apareceu logo depois na porta e disse qual era — a ligação ocorreu e no momento do “alô” começou uma esculhambação que ela jamais esqueceria.

— Você tem alguma ideia do que está acontecendo? Tem alguma ideia do que se passa na cabeça daquele menino?! — Berrando no telefone com todas as forças. — Onde você estava enquanto ele era maltratado e espancado por aquele merda que você chama de marido?! — Rangendo os dentes em fúria. — Nunca se importou com nenhum de nós, estava mais preocupada em satisfazer o ego daquele verme que nunca se importou com você. Eu tentei ajudar, mas você não estava nem aí! Nem mesmo quando tentei acabar com toda essa merda depois de pegar ele te espancando. Que tipo de “amor” é esse que existe entre vocês?! — Respirando e recuperando levemente a calma. — Mãe, escute bem. Kyle vai ficar aqui comigo até que eu decida quando ele deve voltar, e reze muito para que eu esqueça que o Jeffrey existe, pois se eu souber de mais alguma coisa vinda de vocês... na mesma noite eu aparecerei aí e vou arrancar os membros dele um por um bem na sua frente! — Desligando a chamada.

— Quem é você para julgar a ausência de alguém?! — Ouço uma voz infantil no canto da porta.

— Hã? — Era Kyle com os olhos lacrimejando ao observar o desfecho daquela cena. — Vai preparar seu quarto, conversamos mais tarde no jantar. — Ordenei calmamente ao mesmo tempo em que me sentava na cama.

— Não, vamos falar... — Franzi a testa e apertei os lábios em um claro sinal de raiva crescente, encarei meu irmão com uma feição intensa e mortalmente séria.

— Vá... para o seu quarto! — Mandei de novo ainda em um tom de voz contido, ele sabia que eu permanecia em uma grande luta para reprimir as emoções explosivas, ainda assim, esse entendimento não o impediu de se assustar e ir ao chão pela exaltada aura que eu seguia emanando naquele momento.

— Você não é diferente dele! — Berrou estressado.

Ele correu para o quarto de hospedes se trancando e eu me deitei novamente, não tinha lá muita paciência para lidar com a família, verdade seja dita, eu realmente era um cara bem distante da nossa situação na maior parte do tempo. Este era um defeito que sempre tentei superar, minha individualidade causada por eventos antigos que me afastaram de todos e preferi viver sozinho no meu canto — essa distância criou um sentimento raivoso que cresceu ao longo dos anos, estimulado por acontecimentos infelizes que moldaram meu caráter atual.

Porém, desta vez parecia pior, essa fúria quase desumana que mantive oculta desde aquele dia fatídico em que perdi minha perna. Era como uma droga poderosa que roubava sua racionalidade e trazia à tona o estado mais primitivo dos seres humanos, a ausência de dor e uma força inigualável acompanhada por uma sensação de vazio que destruía toda a empatia, era como... um outro “Eu” tomando conta de mim.

Peguei meu celular novamente e notei que ele estava quebrado, sem perceber havia amassado ele nas bordas durante o tempo em que berrava com minha mãe na ligação.

— Merda! — Colocando na estante ao lado da cama e me deitei novamente com os braços em frente aos olhos.

— Aí! — Kane escorado na porta havia jogado um par de luvas de combate ao meu lado. — Lá fora, agora! — Ordenou, não entendi bem, mas coloquei ambas e o segui.

Minutos mais tarde, estava eu desferindo golpes diretos na carapaça do “Jambeiro” que tínhamos em casa, Kane disse que isso fazia parte do tratamento para aprender a lidar completamente com minhas limitações. No entanto, sua intenção da vez era de extravasar a ira acumulada com o que tinha acontecido recentemente, sabia que não era nem um pouco saudável manter isso preso e poderia atrapalhar na recuperação do meu corpo.

— Consigo sentir a tensão descontrolada de longe. Que foi, Hunter? Perdeu o foco? — Questionava ele de braços cruzados nas costas à minha esquerda me observando golpear sem parar aquela árvore rígida.

Ainda era um começo de tarde, o sol parecia ter desaparecido dos céus e engolido por uma nuvem espessa que ameaça uma tempestade que parecia nunca começar, tudo jazia nublado naquele horário que deveria ser bem quente nessa época do ano. Estávamos no jardim logo a frente de casa e ao lado do portão de entrada, cercas de metal de pelo menos 4 metros cobriam toda a área com arames farpados no topo — foi uma medida que Joshua sugeriu quando viemos para cá, esse país era ligeiramente mais perigoso que nossa terra natal e não podíamos dar bobeira.

— Hunter! — Atingindo um golpe em minhas costas que me tirou de meus devaneios.

— Ah, porra. — Quase me desequilibrando.

— Ainda se deixando desaparecer da realidade, não me surpreende que o Kyle ainda tenha algum tipo de receio quanto a você! — Franzi a testa demonstrando um ligeiro incomodo em relação ao último comentário.

— O que quer dizer com isso?! — Minhas mãos já estavam sangrando pelos contínuos golpes no alvo demarcado na árvore com tinta. — Acha que sabe de alguma coisa?

— Sua frustração é a sua maior fraqueza, não consegue deixar o passado no passado para poder aceitar o futuro. — Observando minha perna de metal. — Eu sei o quão difícil foi ter que lidar com a sua mãe se matando por dentro por uma causa ruim. Você era pequeno e tentou protegê-la daquele inseto, mas ela rejeitou isso e ainda te culpou por irritar o Jeffrey que consequentemente descontou tudo na cara dela! — Baixei a cabeça lembrando daquelas malditas memórias. — Depois disso, nunca viu sua mãe da mesma maneira, não é? E isso despertou algo dentro de você, algo poderoso que parecia dominar seu corpo quando ficava com extrema raiva!

— Então você sabe das coisas que eu fiz depois... — Comentei.

— Seu Comandante no Afeganistão era um velho conhecido meu, me mantinha informado do seu progresso. E ele comentou que nunca tinha visto nada parecido com o que você demonstrou... — As palavras do oficial ecoavam em sua mente, assim como os vídeos de drones e câmeras mesmas dos demais soldados presentes nos combates.

Kane sabia bem a minha trajetória até aquele momento, a vida sempre foi meio complicada, meus pais se separaram bem cedo, eu mal tive lembranças de vê-los juntos ainda em vida. Minha mãe sempre teve um tipo de “carência afetiva” e buscava sempre estabelecer relações amorosas com homens que lhe caíam bem, mas seu gosto para tal sempre foi bem ruim. Perdi a conta de quantos merdas ela trouxe para dentro de casa que só a maltratavam, e quantas cenas de abusos físicos e psicológicos que ela sofria que eu tive de presenciar junto dos meus irmãos.

Por várias razões, cresci tendo muito pouco autocontrole das minhas emoções, elas se manifestavam de maneira intensa e resultavam em explosões raivosas pela minha falta de controle sobre elas. Passei a ficar muito tempo isolado, buscando formas de lidar com tudo e entender melhor as coisas — a escola era bem complicada também, minha individualidade parecia provocar desprezo nos demais e impulsionava os metidos a brabos do pedaço a encher o meu saco.

Isso era o que Kane não sabia, que essa raiva exorbitante já existia dentro de mim há muito tempo e, foi justamente na escola que ela se manifestou exclusivamente para um único propósito que moldou minha forma de ver o mundo pelo resto da vida. Por centenas de vezes fui parar na diretoria, motivo: brigas constantes. Esses caras provocaram tanto minha paciência durante várias semanas, que uma hora ela se esgotou e libertou essa emoção oculta resultando num ódio cego que fez cometer coisas terríveis no decorrer do tempo.

— Sua mãe sempre demonstrou rejeitar você, e quando teu pai morreu, você se alistou nas forças armadas e se afastou definitivamente de tudo. Kyle havia nascido há poucos anos, e tinha um grande apreço em você que se perdeu com tempo quando sentiu que foi abandonado pelo irmão mais velho!

Anos antes ainda em Wisconsin, acordei no meio da madrugada escutando sons estranhos, minha mãe tinha mandado Kyle e Ária para a casa de uns parentes em outra cidade uns dias antes — eu recusei partir e fiquei apesar da insistência dela. Uma escolha bem infeliz vendo agora. Percebia vozes raivosas abafadas para evitar que outros escutassem, tinha 16 anos na época, levantei-me lentamente da cama na penumbra da noite, o sono ainda era presente em meus sentidos, mas não era tão severo quanto antes.

Naquela bendita noite, peguei minha mãe apanhando do Jeffrey no quarto deles, ele não esperava minha presença ali, aparentemente ela não havia contado. Aquele merda me viu e a jogou no chão, em ato contínuo partiu para cima de mim em raiva e me encheu de porrada enquanto ela com um olho inchado continuava jogada no chão assistindo a cena; aquele terrível evento foi o que despertou minha raiva assassina pela primeira vez, antes apenas para me defender e causar dor, agora me desvairava a mente e permitia que eu fizesse coisas abomináveis. No final daquela noite, Jeffrey estava no assoalho com ferimentos de pancadas por todo o corpo, sangrava muito e parecia não conseguir respirar, eu, Hunter James Walker, quando me dei conta do que ocorria, o sangue daquele verme já se encontrava em minhas mãos e corpo.

A realidade se tornou uma tortura, e esse mal interno me resgatou e cuidou de tudo. No outro dia, minha mãe foi atendida pelos médicos e questionada pela polícia... após receber alta do hospital, fui levado para o “Centro de Detenção Juvenil”, causa: ela contou que eu havia surtado depois de consumir alucinógenos e ataquei os dois, e as feridas em mim foram resultado do marido tentando se defender. Fiquei dois anos detido, ela contou para meus irmãos que eu havia ido cuidar de nossa avó que morava no exterior — Kyle viveu acreditando que havia sido esquecido abandonado por mim.

— Você só tá falando coisas que eu já sei! Onde pretende chegar com tudo isso? — A brisa dos ventos parecia ter ficado mais forte e nos alcançou fazendo as árvores próximas reagirem com o barulho das folhas que me agradavam bastante.

— Você mantém o peso do mundo sobre as suas costas, redirecione essa raiva sufocada no seu coração e foque em um único objetivo! — Apontando a mão para a árvore. — Anda, ataque! — Essa obstinação fora de hora em prol de um simples treinamento para redundar a fúria já me parecia ineficiente, ou será que ele só queria ver eu ferrando a mão mesmo naquela maldita árvore? Não faço ideia.

Os minutos seguiram e meu punho desfrutava de repetidos encontros com aquela árvore, e sinceramente, nunca mais olhei uma árvore do mesmo jeito depois sem pensar na hipótese de que o Kane só queria me ver sentir um pouco de dor por ter me enraivecido momentos antes. Ele continuava mencionando meu passado para tentar provocar minha paciência e alcançar aquela cólera nociva para expulsá-la, mas não obteve muito sucesso nessa missão, até que explorou um outro pequeno detalhe doloroso que me irritava bastante além dos episódios com meus pais.

— Aah! Chega dessa porra, o que quer conseguir com isso afinal? — Estava cansado e irritado.

— Como vai a Lauren, Hunter? — Arregalei os olhos com o questionamento.

— Não ouse mencionar...

— Ainda não conseguiu esquecer? — Escorado de braços cruzados na esquerda da árvore enquanto me observava falhar em colocar a raiva para fora.

Tenente Lauren Christine, a médica de campo do meu pelotão e único amor que eu tive na vida. Ela foi raptada por uma tropa inimiga durante um ataque ao nosso acampamento temporário quando eu combatia com os mesmos, muitos dos meus irmãos caíram em combate aquele dia, mas conseguimos espantar os invasores no final, o problema... eles a levaram bem debaixo do nosso nariz.

— Não foi sua culpa, você não podia ter impedido as coisas que aconteceram com ela... — Disse ele tentando me consolar.

— Você não sabe as coisas que ela sofreu nas mãos daqueles desgraçados! — Desferi um soco com toda força na árvore a fazendo estremecer com força e os pássaros acima voaram em pânico.

Quando a encontramos uma semana depois, ela havia sido estuprada, maltratada e cortada incontáveis vezes como um porco no abate, sua genitália foi dilacerada por algo cortante ou empalada de maneiras inimagináveis, por algum tipo de milagre divino, ela continuava viva quando a encontrei amordaçada numa cadeira em um “quarto do pânico” nos fundos da base subterrânea do Talibã em meio ao deserto. Seus cabelos ruivos agora manchados com seu sangue, sua pele branca agora era vermelha e preta com os vermes devorando sua carne quase sem vida. Eu não pude salvá-la a tempo e ela morreu nos meus braços momentos depois... foi minha falha e perdi a única coisa boa que veio após escapar da minha vida tortuosa em casa — por quê? Acho que Deus tinha alguma intriga pessoal comigo e queria me ver rastejar e implorar por sua misericórdia nessa vida.

Não a soltei por um segundo sequer e a carreguei de volta para zona segura, minha fama de matador implacável chegou aos ouvidos dos inimigos e eles descobriram sobre minhas afeições pela Tenente e quiseram dar o troco em mim por todo o prejuízo que levei a eles durante esses anos de combate. Notifiquei a família e eles lamentaram profundamente, mas não tanto quanto eu... e agora, eu precisei seguir com esse sentimento de fracasso, fracasso em proteger as coisas que me eram importantes e contemplar cada uma desaparecer aos poucos.

— Não pode se castigar com isso para sempre, ela sabe que a culpa não foi sua!

— Ela tá morta, Kane! Não me faça remoer esse sentimento de novo, eu odeio lembrar dessas coisas. — Os ossos da mão vibravam internamente com os golpes raivosos desferidos e o sangue já começava a manchar o jambeiro.

O seu pai também, mas você não! Ainda tem a oportunidade de consertar as coisas, e prefere fugir delas com esse falso estoicismo... levanta a cabeça, irmão. Eles morreram, não se pode fazer mais nada por eles!

— EU SEI!!! — Aquela fúria maligna ressurgiu novamente tomando conta do meu coração conturbado, e em um grito que expressava a mais pura exaltação em meu ser, dei um soco com tanta força que atravessou a árvore de uma extremidade a outra.

Eu fui ao chão no ato ao mesmo tempo em que o pedaço arrancado voou com grande velocidade na direção da cerca de ferro que a fez tremer. Caí de joelhos segurando o punho direito com a outra mão sentindo o sangue escorrer e a dor dominar, apesar disso, me mantive em silêncio apenas contendo essas emoções dentro de mim durante o tempo em que Kane observava o buraco grande que foi feito na árvore, mantinha uma expressão de surpresa mistura com orgulho.

— Se sente melhor agora? — Perguntou ele como se nada estivesse acontecendo.

— Tá de brincadeira comigo? — Sentado no chão apertando a mão ensanguentada.

— Você sempre lidou melhor bem com a dor física, logo essa mão fica melhor. Por outro lado... — A quentura que sentia na cabeça durante os momentos de raiva contida havia sumido ao colocar tudo para fora naquele golpe. — Acabamos por aqui! — Segurando em meu braço e me ajudando a levantar novamente. — A sua raiva é uma arma absoluta de guerra, mantenha-a sob controle antes que ela domine você e te estimule a fazer coisas que farão você se arrepender no futuro. — Eu ainda estava incrédulo com esse método para trazer a paz que ele usava comigo, mas de certa forma, isso era culpa minha, sempre deixei claro que a dor era algo que eu apreciava e me tornava mais forte para lidar com o mundo.

Em seguida, Joshua apareceu jogando um saco de gelo para mim.

— Vocês são malucos. — Disse ele parado diante de nós balançando a cabeça negativamente.

— Cadê o Kyle? — Perguntei depois de colocar o gelo na ferida que aliviou bastante.

— Tá trancado no quarto falando com a mãe no celular.

Retirei minha camisa suja de suor e disse para eles que iria tomar um banho, o clima parecia ter se fechado ainda mais indicando finalmente a vinda da chuva. Quando entrei em casa, Kane e Joshua continuaram lá fora observando o que fui capaz de fazer quando dominado pelo instinto primitivo da raiva —, eles realmente tinham receio em relação às sequelas que acumulei ao longo da vida e que isso poderia nunca sarar, e eu continuaria instável assim até o meu derradeiro fim.

À vista disso, nossa vizinha da casa da frente tinha escutado meus berros de raiva e o som da árvore se arrebentando e foi verificar.

— Meninos, tá tudo bem aí? — Disse ela do outro lado da rua chamando a atenção dos dois primos distraídos.

— Tudo sim, Senhora Medeiros. E por aí? — Respondeu Joshua transmitindo tranquilidade com um sorriso forçado.

— Tem certeza? E todo esse sangue aí na árvore? — Não hesitou em questionar os fatos.

— Era só o Hunter treinando para controlar a raiva, nada demais. — Disse Kane forçando uma cara de descontraído para desviar assunto.

— Ah, entendi. Enfim, as coisas não estão muito boas... — Ela parecia abatida com eventos recentes.

O filho dela, Damian de 19 anos estava acamado com febre altíssima e espasmos musculares, ele dormia constantemente e falava coisas aleatórias como se estivesse vivendo pesadelos terríveis. Kane e Joshua entraram no quarto dele, jazia estirado na cama sob efeito de remédios receitados pelos médicos para manter os sintomas controlados; sofria da mesma enfermidade que os outros jovens por todo o mundo de acordo com as grandes organizações de saúde.

— Ele só fica aí se debatendo e sussurrando sem parar, eu não sei mais o que fazer e nem os médicos sabem mais como me ajudar. — Disse a senhora tristemente em frustração.

Joshua se agachou ao lado da cama tentando entender o que ele sussurrava, parecia se tratar de um idioma desconhecido que ele não conseguia entender.

— Não é por nada não, mas isso parece possessão, sei lá... — Concluiu.

— Não fala besteira. — Rebateu Kane em desaprovação com o comentário do primo.

— Minha irmã nos Estados Unidos relatou os mesmos sintomas em adolescentes pela vizinhança, e os Teólogos sugerem que se trata de um sinal do fim dos tempos. — Continuou.

— Esses fanáticos religiosos não param nunca, para eles tudo é um presságio do Apocalipse da Bíblia. Isso é só uma nova praga provavelmente provocada por algum “imbecil” descuidado por aí!

— Olha a boca! — Repreendeu a mulher.

— Perdão, Dona Medeiros. — Kane se desculpou.

— Acho que aqui não é um bom lugar para debates, melhor deixar o Damian descansar tranquilo aí. — Os dois concordam e se retiram para a sala de estar.

— Ele tá assim já faz algumas semanas, peguei ele estirado no chão do quarto ardendo em febre. Fiquei desesperada e chamei os paramédicos que o levaram, mas pouco tempo depois o trouxeram de volta pois os leitos do hospital estavam todos ocupados por pessoas com os mesmos sintomas! — Os hospitais lotaram de imediato nos primeiros dias dessa estranha doença. — Tudo o que fizeram por mim foi indicar alguns medicamentos para manter os sintomas sob controle e deixá-lo em repouso! Mas já faz alguns dias que ele não desperta, estou ficando preocupada de isso piorar e um dia eu descobrir que meu filho nunca mais vai acordar...

— Calma, Dona. Não vamos nos precipitar tanto! — Sugeriu Joshua tentando deixá-la tranquila.

— Verdade, nenhum óbito foi catalogado ainda. E já faz um tempo desde que tudo isso começou, tenho certeza de que ele logo estará melhor! — Disse Kane com as mãos nos ombros da senhora.

Naquela noite nos reunimos na mesa de jantar novamente, minha mão já foi enfaixada mais cedo e tinha sido a vez do Joshua de cozinhar, o prato do dia era a tal “especialidade” dele: frango assado de forno. E estava ótimo, ele sempre foi meio independente e se ligou ainda mais nessas áreas quando combinamos de dividir as despesas aqui pelo Brasil.

Os três reunidos e comendo como se tivessem passado anos na cadeia sem comer comida boa, eu já estava devorando o quinto prato recheado de: frango, arroz, farinha e feijão. Só existia um detalhe que eu não tinha notado mais cedo; um lugar vazio no último ponto livre da mesa quadrada, fiquei tão concentrado em comer que nem me toquei da ausência de Kyle.

— Cadê ele? — Questionei os dois primos de cada lado.

— Trancado no quarto ainda, tá lá desde que chegou hoje à tarde e não sai nem para comer! — Respondeu Kane de boca cheia.

— Ah, entendi. — Afastei a cadeira da mesa. — KYLE, VEM COMER! — Gritei com força até alcançar o quarto do segundo andar quase no fim do corredor.

— EU NÃO QUERO! — Respondeu com birra num som quase inaudível, típico de criança emburrada.

— ENTÃO VAI FICAR COM FOME, PORQUE EU VOU COMER TUDO! — Instantes depois só escutamos o som de pisadas fortes no chão de madeira, ele devia ter pulado da cama no susto quando soube que iria ficar sem comida se não descesse logo.

Não demorou muito para ele chegar na cozinha usando um short casual e sem camisa também assim como todos nós, Kyle parecia descontente com algo quando se sentou em seu lugar, observou cada um de nós comer sem parar e a expressão de dúvida permanecia estampada no rosto infantil dele.

— Onde está meu prato? — Perguntou ele em dúvida.

Neste instante, todos paramos de comer e nos entreolhamos expressando praticamente o mesmo pensamento de “é o quê?”.

— Hahahahahahaha! — Os três mais velhos caíram na gargalhada com o questionamento do garoto. — Tá de brincadeira né? Só pode. Tu não tá aleijado não, moleque. Pode levantar essa bunda murcha daí e fazer teu próprio prato ali no fogão! Não esquece que você não está mais na casa da mamãezinha. — Senti de longe a raiva crescente no olhar dele, mas essa era a verdade, ali todos se ajudavam, e nenhum era escravo do outro.

Ele foi pegar o prato muito puto e continuamos rindo dessa “pérola” até ele voltar com o prato cheio e se empanturrar junto de nós.

Ao final daquela cena, todos cheios e prontos para finalizar o dia, Kyle largou o prato na mesa e caminhou na direção das escadas para voltar ao quarto — Joshua franziu o cenho e o chamou de volta jogando um pano de mesa sobre ele com tanta força que ele quase caiu.

— Volta aqui para lavar teu prato e limpar a mesa! — Ordenou ele recolhendo as panelas e devolvendo para o fogão e tampando cada uma.

— Eu estou cansado... — Disse ele reclamando.

— E a gente ficou de bobeira o dia todo igual tu naquele quarto? — Falei com o tom de voz moderado. — Faz logo o que ele mandou, você tá muito mal-acostumado! — Ele retirou o prato e foi lavar sem demora enquanto eu varria o chão e Kane lavava a louça do jantar.

— Vocês são sempre assim? — Perguntou de maneira enigmática ao passar o pano com sabão na mesa de madeira.

— Assim como? — Retrucou Kane terminando de lavar as panelas vazias.

— Chatos...

— Na verdade, tu que não se tocou que a realidade aqui é diferente de onde você viveu esse tempo todo. — Respondi. — Aqui a gente se ajuda, mas não somos empregados um do outro. Ou você toma as rédeas do que quer, ou fica sem nada! Ninguém aqui vai fazer por você... — Ele desviou o olhar e voltou a esfregar a mesa com mais força.

Apesar das reclamações, Kyle se sentia contente em partes, o pai dele geralmente era igual de mal-acostumado e sempre tinham a mãe para fazer as vontades, limpar e servir a comida para cada um individualmente. Embora soubesse que ela fazia isso por pressão do marido ou medo dele os abandonar, Kyle se deixou levar por esses detalhes e se “estagnou” por assim dizer — agora — conosco, as coisas seriam bem diferentes e ele teria que mudar velhos hábitos, tomar a frente dos próprios interesses e buscar tudo por conta própria. Kane, Joshua e eu faríamos aquele menino amadurecer e virar um homem de verdade.

Quando a madrugada chegou, Kyle havia ficado na mesa de jantar fazendo algumas atividades escolares que passaram para ele durante esses tempos que ficaria longe, e consequentemente, acabou dormindo por ali mesmo de cara nos livros e babando na mesa com a luz da cozinha acesa sobre sua cabeça. Kane e Joshua já tinham se retirado para os quartos, o mais velho tinha um compromisso para o dia seguinte bem cedo numa “ONG” que ajudava pessoas vítimas de acidentes e precisavam reaprender a andar e coisas básicas de movimentação. Quanto ao Joshua, foi chamado para trabalhar num projeto na zona industrial quase no mesmo horário de Kane e por isso se deitou cedo também.

Eu fiquei assistindo alguns filmes no sofá da sala e vi ao longe o caçula dormindo na mesa, recoloquei a perna de metal e fui até ele. Ainda que tivesse alguns problemas de adaptação e revolta com o mundo, Kyle era só um garoto procurando um lugar para poder chamar verdadeiramente de lar — eu o amava mais que qualquer coisa na vida apesar de não deixar isso tão claro, mexi levemente em seus cabelos para poder enxergar a mais pura serenidade em seu rosto ao poder dormir sem escutar gritos de raiva e brigas constantes no meio da noite. O peguei nos braços, apaguei a luz e o levei lentamente de volta para o quarto lhe entregando de volta para a cama, ainda bem que já tinha escovado os dentes e tomado banho, se não o acordaria agora mesmo para fazê-lo.

A manhã seguinte seria quarta-feira e dia de dar aula de artes-marciais, iria levá-lo comigo para participar e conhecer outras crianças e quem sabe fazer novos amigos. É, esse era um bom plano; o embrulhei na cama e me dirigi para fora do quarto, no entanto, escutei ao longe ele despertar do sono e chamar pelo meu nome.

— Hunter... — Chamou com sua voz fraca e ainda carregada pela sonolência.

Parei na porta e suspirei levemente ao retornar para o quarto e encontrar o menino erguido na cama com seus olhos entreabertos, ele ligou o abajur ao lado da cama e continuou a chamar pelo meu nome.

— Estou aqui... — Me sentei numa poltrona no canto esquerdo da cama num ponto relativamente escuro.

— Para onde você foi? — Perguntou fracamente e eu fiquei um pouco em dúvida sobre o que falar, sabia bem que uma hora ou outra ele iria querer saber a verdade a partir de mim mesmo e não inventada por más bocas por aí. — Mamãe disse que você nos abandonou, se tornou um monstro que só espalhava discórdia por aí. — Minha mãe nunca cansa de me surpreender, agora espalhando essas coisas ruins para influenciar negativamente a cabeça de uma criança para fazê-la não perceber completamente o monstro que vivia com eles em casa.

— Entendi, e de certa forma ela não mentiu. Porém, eu nunca te abandonei, enfrentei problemas ao longo da vida que não fui capaz de superar e nem conseguiria naquele ambiente que tínhamos em casa. — Para minha mãe, eu era a causa de tudo que dava errado na vida dela, principalmente depois das vezes que contrariei suas decisões e escolhas mal pensadas durante a trajetória. — Quando ficar mais velho, vai entender que existem coisas que não podemos controlar, eventos infelizes que acontecem sem aviso e nos deixam tão maus que perdemos a noção das coisas. E para onde eu fui, bem... — As lembranças das centenas de guerras que travei em minha curta estadia nas forças armadas vieram a mente. — A vida despertou uma força ruim dentro do meu coração que era capaz de destruir tudo de bom que possuíamos... então, eu fui para lugares onde outras pessoas ruins viviam causando confusão e soltei esse mal sobre elas para que parassem de machucar outros.

— Você as machucou? — Foi bem direto como sempre. — Mamãe sempre disse que o mal nunca resolve o mal, e as pessoas que vivem assim nunca tem um final feliz...

— Finais felizes não existem, Kyle. A realidade é muito mais cruel do que as histórias fantasiosas que inventam na televisão para preservar sua infância! — Ele arqueou as sobrancelhas ao escutar a resposta. — Só a dor gera compreensão, irmão. E tirei os homens maus daqueles lugares, as pessoas que choravam dia e noite pedindo à Deus por paz, finalmente puderam ter uma noite de sono tranquila sem temer os monstros da vida real...

— Porque você matou todos eles... — Disse no momento em que repousava sua cabeça de volta no travesseiro para dormir.

— Sim. — Confirmei desligando o abajur novamente. — Durma, você vai treinar comigo pela manhã. — O embrulhando. — Nos vemos mais tarde! — Sussurrei ao sair do quarto.

“Nos vemos mais tarde”, essa era a mesma frase que meu pai dizia para mim antes de sair para trabalhar nas madrugadas — ele sempre teve dificuldades para se expressar, e era dessa maneira que eu sentia o quanto ele nos amava, e que ele sempre estarei conosco mesmo há milhares de quilômetros de distância.

Essa foi a coisa mais feliz que fiz nos últimos tempos, uma conversa tranquila com meu irmão menor apesar do assunto abordado, receio que minhas ações mal explicadas deixaram muitas confusões nas cabeças de pessoas que realmente importaram para mim. E esse meu lado alternativo de fúria corrupta transformou a forma como todos me enxergavam, essa era uma visão errada que um dia eu deveria corrigir e poder recuperar o tempo perdido e a vida que ficou para trás.

O que não sabíamos, era que essa fatídica noite representava a última oportunidade de tranquilidade e paz que o mundo inteiro teria o prazer de experimentar.

Na casa vizinha, a Dona Medeiros escutou sons de atormentação provenientes do quarto do filho, este gemia em completa dor e se contorcia na cama alternando de sons de dor e sussurros de palavras inaudíveis e indecifráveis para as pessoas menos preparadas. Ela observou a palidez tomar conta de Damian, estava mais cinza do que antes e espumava pela boca — agachada ao lado dele completamente estagnada de preocupação, a mulher buscou o remédio receitado pelo médico para acalmar os sintomas dessa praga que tomou conta do menino, correu na direção da mesa de madeira ao lado que ficava repleta de medicamentos e tentava achar o correto.

— Calma, meu filho. Vai ficar tudo bem! Mamãe está aqui... — Encontrando o correto e pegando seringa para absorver e aplicar no garoto.

Porém, antes de conseguir aplicar o medicamento no braço esquerdo dele, Damian se moveu involuntariamente atingindo a pobre mulher no rosto com um soco com toda força que a fez parar do outro lado do quarto batendo a cabeça a fazendo sangrar e por pouco não desmaiou com a pancada.

— Ah! Doeu... — Damian tossia sangue com muita força e caiu da cama se debatendo.

— Aaaah! Mãe! Socorro!!! — Tossindo litros e litros de sangue.

— Não, meu filho! O QUE VOCÊ TEM?!

Feridas se abriram por todo o seu corpo como se tivesse sofrido vários e vários golpes de facada, seu rosto pálido manchado de sangue e seus olhos mudam do preto natural para um vermelho sangue que tomou conta de todas as áreas externas e internas. Ele se coloca de pé em milissegundos com seus ossos estralando internamente — a mãe ficou horrorizada e estarrecida com o que estava presenciando.

Logo, ele se acalmou e terminou de joelhos no chão mantendo a cabeça baixa ainda sussurrando em línguas distintas.

— Damian... — Chamou receosamente.

De repente, suas palavras se tornaram audíveis para a mulher e retornaram para o idioma nativo brasileiro.

— General Einhard, eu aceito o seu chamado... Liberte-me dessa existência inferior! — O silêncio predominou sobre aquele ambiente conturbado, a mãe permaneceu estática tentando parar o sangramento na própria cabeça. — Aaaaaaah! — Os céus se abriram e um imenso pilar luminoso despencou abrindo um buraco no teto da casa e cobrindo todo o corpo do atormentado. — AAAAAHHHHH! — Centenas de milhares de sombras aladas desceram dos céus através daquele esplendor luminoso e foram engolidos aos montes por Damian que flutuava distante do chão no ato deixando sua mãe ainda mais espantada.

— O QUE É ISSO?!! DEUS, SALVE MEU FILHO! — As sombras continuaram invadindo o corpo do garoto que continuava gritando em sofrimento.

No momento seguinte, Damian despencou no chão, seu corpo ardia como brasa queimando o chão amadeirado abaixo de si — seu aspecto de dor havia desaparecido dando lugar para uma risada grave de puro prazer.

— Damian...? — Chamou a mulher ainda paralisada no lugar.

Ele ergueu a cabeça subitamente encarando a mulher e quando se deu conta, seu pescoço foi agarrado pelo filho que a ergueu no ar, ela lutava para conseguir respirar e estremecia em pavor ao presenciar o olhar maléfico daquela coisa que era tudo menos seu único filho. Rindo de forma sinistra, aquela criatura parecia estar sofrendo algum tipo de metamorfose — seus dentes se transformaram em milhares de presas pontiagudas, sua pele era pálida como uma criatura morrendo de câncer e sua força cresceu exponencialmente, e pior, ele evoluiu para um tipo novo de existência, abandonando sua própria humanidade.

— Agora eu vejo tudo com muito mais clareza... — Disse ele com uma voz grave e amedrontadora. — Este mundo pútrido deve sofrer, a vontade de destruição do Grande Mestre será feita! — Observando a mulher em sua posse. — Veja bem, mãe... agora eu sou maior que qualquer coisa na terra, vou purificar este mundo com sangue e começarei por você! — Feixes elétricos se manifestaram por seu corpo até o braço se convertendo numa lâmina de energia dourada que atravessou o pescoço da mulher que deu seu último suspiro e caiu morta no chão sem a menor oportunidade de se defender, apenas, assistir sua vida ser tomada por aquilo que um dia foi seu filho.

Transformado num monstro fora da realidade, Damian sentia-se grandemente fortalecido e gritou de maneira estrondosa cuja pressão liberou uma onda de choque no ambiente causando destruições por todo seu redor e abrindo um buraco ainda maior no teto da casa. A criatura de alguma maneira burlou a gravidade e voou para fora, seu corpo transbordava de uma energia caótica que cobria seu corpo como uma doença degenerativa que reduzia suas funções que o tornavam humano e lhe presenteava com um instinto animalesco que o fazia ansiar por mais morte.

Ele concentrava o poder herdado e disparava feixes dourados que ao se encontrarem com o ar criava reações alternativas que se modificavam como bombas potentes que destruíam tudo em que encostavam. Explosões sucederam em diversas direções e cantos da cidade matando centenas naquela madrugada, ele ria malignamente enquanto realizava aqueles atos desumanos.

Paralelamente, o corpo morto da Senhora Medeiros reabriu os olhos, agora vermelhos e vazios, ela se ergueu do piso em meio aos destroços da casa ainda com o buraco da perfuração no pescoço que lhe ceifou a vida. Ela grunhia e se movia de maneira desarticulada como um cadáver — caminhou em direção à saída ao sentir as presenças de pessoas correndo de um lado para o outro após notarem as explosões e a criatura voadora causando o caos, o pior, o corpo reanimado da mulher apesar das feições e reações instintivas como um verdadeiro zumbi de filme de terror, sua voz humana ecoava de alguma maneira através dos grunhidos de seu cadáver ambulante; o fogo se espalhava pela vizinhança e as ondas de choque das explosões arremessavam destroços e estruturas pelos ares causando outras centenas de mortes.

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— O que tá acontecendo aqui? — Questionava uma mulher recém desperta do seu sono de beleza e não entendia o que acontecia.

— Joana... — A voz da Dona Medeiros ecoou pelo ambiente alcançando os ouvidos daquela mulher em meio ao pandemônio que se instaurava.

— Dona Medeiros, o que houve com a sua casa?! — Vendo a mulher surgir em meio à poeira e fumaça dos incêndios ao redor da residência.

— Joana... socorro! — O corpo da mulher caminhava lentamente sobre os destroços e tropeçou numa viga de madeira indo ao chão, Joana correu até a mesma para socorrê-la.

— Calma, eu te ajudo! — Caminhando pelos escombros e pegando a mulher pelos ombros a arrastando daquele lugar. — Dona Medeiros? — O corpo dela tinha um tom levemente esverdeado como um corpo em processo de decomposição.

— SOCORRO! — Gritou ela em agonia partindo para cima da mulher cravando seus dentes no pescoço e arrancando um pedaço.

— AAAAAAHHHHHH! — Indo ao chão sangrando e seguidamente outras pessoas vítimas dos ataques e explosões de Damian se ergueram da morte iguais à Dona Medeiros e começaram a atacar as pessoas não afetadas.

Essas vítimas perderam suas funções e controle do próprio corpo que agora agia instintivamente, infectados com algum patógeno ou parasita que prendia suas mentes, mas reanimava seus corpos mortos pelas ações do monstro. As vozes dessas pessoas ecoavam por meio de telepatia que as demais escutavam como se estivessem falando normalmente mesmo as bocas de seus corpos não se movendo conforme as palavras se pronunciam.

Os não-afetados pelas explosões de energia, mas capturados pelos afetados e feridos por eles também se tornavam iguais a eles e caçavam outros ainda vivos. E de todos estes seres era possível escutar as vozes de tormento implorando por salvação ao mesmo tempo em que seus corpos desalmados agiam por conta própria e realizavam banhos de sangue e uma completa carnificina por onde passavam.

Em outro lugar...

De pé sobre um prédio em chamas, um homem de cabelos albinos e trajando uma armadura negra com capa púrpura e uma grande foice — observava os acontecimentos se desenrolarem como epidemia sem controle. Os ventos frios daquela noite balançavam seus cabelos enquanto ele assistia os incêndios e explosões, logo, outras centenas de pilares luminosos desceram dos céus e bilhões de seres alados despencavam em pontos específicos despertando milhares de outros escolhidos para conduzir o apocalipse; os gritos de fúria e terror das vítimas eram como música para os ouvidos daquele ser.

— Está começando... — Disse ele segurando a foice cuja lâmina cintilava em raios azulados.

Este era o princípio do fim, o prólogo de uma cadeia de eventos que levou o mundo monótono que conhecíamos para uma terra desolada — recheada com tormento, caos, monstros sem alma e seres abomináveis de puro poder destrutivo que reduziriam o mundo ao pó. Este era o despertar dos Supremos.