Novamente regressado àquele sonho intrigante, meus olhos falharam ao abrir mais uma vez ao serem ofuscados pelo resplendor natural desse ambiente irreal. Apesar da falta de visão do que espreitava ao meu redor, podia sentir uma brisa suave carregada com o fresco aroma das flores de campo nos outonos que costumava passar com minha avó fora das adversidades da cidade grande.
Foi quando senti o calor reconfortante da tranquilidade que meu coração ansiava, que aquela presença feminina retornou fazendo ecoar aquela voz, misteriosa e envolvente nos meus ouvidos, como um sussurro distante que me perturbava há muito tempo. Essa era a figura inquietante que estava por trás das repetidas perturbações noturnas, mas, ao mesmo tempo, de alguma maneira, eu me sentia estranhamente atraído por essa presença enigmática.
Enquanto tentava focar minha visão turva, a atmosfera resplendorosa do ambiente ainda dificultava esse objetivo. As cores pareciam mais vívidas e intensas do que em qualquer sonho anterior. Tudo ao redor irradiava uma luminosidade quase etérea, estimulando ainda mais este cenário de beleza e mistério.
Eu me sentia compelido a me aproximar daquela figura sombria. Meus passos eram lentos, como se a atmosfera exalasse um magnetismo que me puxava em direção a essa visagem que permanecia inescrutável, ocultando suas características em meio à penumbra, deixando apenas pistas visuais do que poderia ser.
Essa voz continuava me envolvendo, sussurrando palavras que pareciam vir de todas as direções. Suas palavras eram enigmáticas e me provocavam inúmeras sensações — curiosidade, fascinação e uma estranha sensação de familiaridade.
— Me encontre, Hunter. — A voz ressoou mais uma vez, preenchendo a atmosfera ao meu redor. — Há muito tempo que aguardo por isso...
— Quem é você? — Perguntei soando mais calmo do que deveria.
— A decifração de todas as suas confusões... — Sua voz jazia ecoando como um eco distante. — Uma parte do seu verdadeiro passado há muito tempo esquecido, mas que em breve chegará a hora de relembrar.
Essa resposta me trouxe ainda mais perguntas; todavia, antes que eu pudesse indagar mais, a presença começou a se dissipar. A visão turva foi se esvaindo, e o ambiente resplendoroso também começou a desaparecer diante dos meus olhos.
— Sobreviva, Hunter. Você precisa sobreviver a todo custo! — A voz implorou, mas parecia se distanciar grandemente a cada segundo passado.
De repente, despertei na minha cama ainda com a mente aturdida pelo vívido encontro em meus sonhos; um som ecoava em meus ouvidos como um tilintar constante de metais se chocando, o que me impedia de entender ao certo os sons que me rodeavam. Entretanto, quando meus sentidos retornaram completamente, pude sentir tremores terríveis na terra e parecia que minha casa estava prestes a desmoronar.
Focando melhor a visão, notei Kane entrando no quarto com uma expressão desesperada e luzes douradas ofuscantes vindas de fora da janela que pareciam causar esses tremores. Ele segurou em meus braços e parecia gritar com muita força palavras que seguiam inaudíveis para mim; logo, ele olhou para trás e notou Joshua arrastando Kyle rapidamente pelo corredor em direção às escadas. — HUNTER, ACORDA! — Atingindo um forte tapa no meu rosto que foi capaz de me trazer de volta para a realidade.
— Hã?! — Escutei os gritos desesperados do meu primo e outros milhares de terror vindos do lado de fora, e estranhos sons semelhantes aos experimentos com armas à laser que os cientistas da base testavam constantemente.
Um feixe luminoso atingiu o teto logo acima da minha cama e o arrancou. Arregalei os olhos em desespero ao ver as vigas e telhas despencarem na minha direção. Kane me puxou pelo braço com força para fora da cama, e eu peguei a perna mecânica no ato — as estruturas caíram segundos depois e atravessaram o piso, esmagando o banheiro que ficava logo abaixo.
— Vem, eu te ajudo! — Ele apoiou meu braço sobre seu ombro e me guiou para fora apressadamente. Passamos rapidamente pelas janelas do segundo andar, e pude ver com clareza centenas de sombras sobrevoando o espaço aéreo noturno, cujas mãos emitiam brilhos de diferentes cores, e alguns disparavam esses em forma de feixes luminosos que explodiam ao atingir um alvo. — O que são essas coisas?! — Mais abaixo, várias pessoas tentavam passar pelas cercas de ferro em completo desespero, e pior, eram atacadas por outros que as mordiam ferozmente como animais famintos.
— Estão devorando uns aos outros! Não temos tempo para ficar assistindo. Cadê a chave do porão?! — Merda, ela estava no criado-mudo ao lado da cama que foi esmagado pelos destroços do teto.
— Estava no meu quarto! — Chegamos na escada, e mandei Kane ir na frente verificar o que sobrou do banheiro para achar a chave, que eu o seguiria em seguida.
Seguidamente, uma nova explosão próxima aconteceu que liberou uma potente onda de choque com força o suficiente para desestabilizar as fundações que prendiam as barras das cercas e os ligamentos de aço que as mantinham conectadas. Pessoas voaram com isso e se chocaram com as árvores e barreiras de metal ainda erguidas, tamanha era a força do arremesso que os atingidos eram partidos e quebrados ao meio com os impactos.
— Aaaahh! — Uma pessoa foi separada em dois ao se chocar com uma barra da cerca, o torso e as pernas seguiram rumos diferentes e muito sangue se espalhou.
As ruas foram tomadas pelo caos absoluto; logo, pessoas passaram pelas aberturas na cerca e correram em direção à casa em busca de abrigo, enquanto outras, transformadas em algo diferente, as abateram saltando sobre elas e cravando dentes na pele e arrancando pedaços de carne. Elas gritavam de dor enquanto eram devoradas vivas. Fiquei sentado na escada de acesso para o segundo andar, tentando colocar a prótese o mais depressa possível. Joshua deixou Kyle debaixo da mesa que sustentava a televisão e foi junto com Kane ao banheiro destruído para tentar achar a chave do porão.
Eles chegaram no ponto e começaram a tirar os escombros de cima das coisas. Chuveiro, pia, banheira e todo resto foi destruído, e vidro quebrado se espalhou por toda parte.
Ao finalmente prender a perna, outra daquelas criaturas voadoras disparou um projetil luminoso no jardim da frente cujo domo avermelhado queimou a cozinha e por pouco não me atingiu na escadaria. No entanto, a força da explosão causada arremessou aquelas criaturas canibais pelo buraco que segundos atrás era a cozinha. Eu caí no meio da sala entre o sofá e a televisão assustando Kyle que continuava encolhido abaixo da televisão protegendo a cabeça com as mãos e chorando de medo; três daquelas criaturas que mais pareciam cadáveres ambulantes do que outra coisa — caíram logo abaixo de mim.
Os observei com espanto, duas mulheres e um homem que eu podia jurar conhecer se ergueram do chão com seus corpos deformados. O homem, era o pai de uma das minhas alunas na academia, ele abriu sua boca com fileiras de dentes ensanguentados e tinham restos de carne humana entre eles; ele rugiu se movendo como um animal quadrúpede e tentou morder minha perna de metal, minha respiração ficou desregulada pelo susto e reagi instintivamente o atingindo com repetidos chutes no rosto que quebraram seu nariz e arrancaram-lhe o maxilar. Em seguida, olhei para o lado esquerdo e vi que as duas mulheres esparramadas no chão tentavam alcançar Kyle com seus braços abaixo da mesa berrando como os monstros que são.
— NÃO! KYLE, SE ESPREME NA PAREDE! — Observei o homem deformado me puxar pelas pernas e tentar cravar os dentes restantes na minha carne.
— Hunter, socorro! Me ajude, por favor! — O mais puro terror tomou conta de mim naquele momento, mesmo naquele estado cadavérico, podia escutar a voz daquele homem como se ainda estivesse vivo ali. — Eu não consigo controlar meu corpo! ISSO DÓI MUITO! NÃO ME DEIXE TE MORDER! — Ele se curvou para trás torcendo os ossos de sua coluna como um contorcionista profissional, me virei rapidamente de barriga para cima e segurei seu cabeça com as mãos no momento em que ele despencou sua cabeça para enfiar os dentes na minha barriga. — Aaaahhh! — Segurando sua cabeça com todas as forças que tinha, meus dentes rangiam pela pressão exercida em cada músculo do meu corpo para evitar o pior.
— AÍ! — Ouço a voz de Kane do corredor a frente, a criatura ergueu a cabeça para o ver também.
No instante seguinte, a criatura teve o crânio explodido por um balaço de escopeta, Kane tinha pegado a arma guardada no quarto trancado nos fundos do corredor inferior. Joshua passou correndo por ele com um taco de beisebol e saltou num grito voraz desferindo um golpe vertical com toda força de seus braços nas costas da mulher no chão que estourou os ossos abaixo do pescoço — ela estremeceu em sofrimento, seus gritos desesperados e carregados de tormento aumentaram ao mesmo tempo em que Joshua continuava golpeando. A segunda mulher se ergueu ao lado da espancada, esta grunhia baixo e caminhava com os braços erguidos na intenção de agarrar Joshua que no susto reagiu depressa a atingindo com o taco na vertical de baixo para cima no queixo o esmagando e a jogou no chão em seguida. Eu permanecia estático e incrédulo com aquela cena de filme de terror, meu corpo tremia como se estivesse sob frio intenso, e segundos depois, a mulher apesar do queixo quebrado, se ergueu gemendo e num salto direto tentou agarrar Joshua, porém, Kane engatilhou a arma novamente e disparou no coração dela abrindo um imenso rombo do tamanho de uma bola de futebol. Ela foi ao chão de novo e os gemidos cessaram.
O silêncio predominou dentro da casa, me arrastei para perto da mesa e chamei Kyle para que saíssem logo de lá, no entanto, seus olhos estremeceram ao observar à nossa retaguarda. Aquela mulher com um buraco no peito se colocou novamente de pé, Kane tentou recarregar a arma, mas no susto a deixou cair e aquela criatura torceu o pescoço para a esquerda num estalo assustador — parecia que não sentia dor alguma — ela ergueu os braços e emitiu um grito desesperado expondo sua grande mandíbula.
— Joshua! — Gritei e o mesmo reagiu depressa a atingindo na horizontal quando tentou pegá-lo num salto.
Ela voou até a parede ao lado do sofá e bateu a cabeça, quando Joshua se aproximou para o golpe final, ela se levantou num salto com os braços abertos e tentando enfiar os dentes na cabeça dele que, no puro reflexo segurou o taco com ambas as mãos em frente ao rosto e foi ao chão com a investida daquela coisa. Ela mordiscava famintamente o material de madeira enquanto tentava alcançar a cabeça de Joshua.
— O coração dela explodiu! Como ainda está viva?! — Falei em um tom alterado.
Kane parecia assombrado, seus olhos arregalados expressavam emoções contraditórias que ele não conseguia entender para buscar uma ação imediata. Contudo, ao escutar minha voz num berro desesperado, ele recobrou a consciência e puxou uma faca de cozinha que voou para o chão da sala na explosão anterior — ele correu gritando conseguindo puxar forças de onde nem imaginava, a criatura que atacava Joshua se distraiu com os berros dele e recebeu uma facada no topo de sua cabeça.
A faca adentrou na direção vertical atravessando o cérebro com precisão, sangue escorreu como enxurrada sobre Joshua que desviou o rosto para o lado um pouco antes de se banhar. Kane respirou aliviado, mas este teve seu momento interrompido quando a mulher voltou a berrar e mordeu um de seus antebraços.
— AAAAAH! — Vociferando com a imensa dor que o alcançou.
A mulher o levou ao chão e continuou mordendo até arrançar a pele e um bife do braço, Joshua ficou estático pelo susto por alguns instantes, mas logo através de um impulso pela preservação da vida do familiar, rastejou para longe e correu para tirar a mulher de perto do primo que continuava gritando e reclamando da dor inacreditável que experimentava. Ela foi agarrada pelo mais novo ao tentar morder o homem novamente, Joshua a levou ao chão enquanto Kane tentava sair dali para fazer alguma coisa.
Quanto a mim, encostado na mesa em que Kyle se escondia abaixo, assistia aquela cena grotesca do meu primo se arrastando pelo chão com lágrimas de dor nos olhos e o outro não conseguindo lutar contra a força daquela criatura canibal. Naquele momento, minhas memórias antigas voltaram a perturbar minha noção de realidade. Momentos de sofrimento como aquele que via com minha família e nos quais falhei em proteger pessoas que me importavam: Lauren, meu pai, minha avó e meus irmãos de guerra. Fui resgatado de meus pensamentos tumultuados por Kyle, que puxou minha camisa de debaixo da mesa e estendeu um objeto que há muito tempo não via. Minha "Katana Japonesa", uma arma de pura destruição que recebi do meu pai como herança quando ele morreu; um pequeno lembrete do meu bisavô, que lutou contra os japoneses na Segunda Guerra e trouxe a espada como espólio de combate, presenteando meu avô, que fez o mesmo com meu pai e que agora estava em minha posse.
Ao pegá-la e observar Kane no chão, suas palavras ditas a mim no dia anterior se repetiram incansavelmente como um filme que nunca terminava. “Sua raiva é uma arma absoluta de guerra...” e “Redirecione essa raiva sufocada no seu coração e foque em um único objetivo!”.
E ao escutar essas frases se repetirem incontáveis vezes dentro da minha cabeça, o ambiente pareceu se alterar bruscamente e eu não estava mais na sala vendo aquela cena brutal dos meus primos. Minha cabeça latejava, meus olhos se abriram e vislumbraram uma espécie de sala rochosa e seca como se tivesse sido construída no meio de algum deserto. Na verdade, aquilo me parecia bastante familiar; me sentia ofegante, pesado e cansado. Escutava sons de disparos e gritos de tensão por todos os lados como se uma batalha intensa estivesse sendo travada.
Sinto meu corpo sangrar, observo melhor e percebo estar usando um uniforme militar idêntico ao que tinha quando ainda residia no território afegão. O medo tomou conta de mim, senti o fuzil “M4” pesar em minhas costas e uma mão suave repousar em meu rosto. Já entendi tudo...
Lauren, o amor da minha vida estava novamente repousada em meus braços como na maldita lembrança de quando a perdi. O terror com aquelas criaturas deve ter mexido com minha mente e despertado novamente os traumas contidos, e consequentemente, me fizeram reviver uma das piores dores que tive o desprazer de experimentar.
Senti aquele toque suave que tanto fez falta, a encarei com olhos marejados e carregados de frustração diante daquela manifestação do meu fracasso. Mas, estranhamente, seu rosto permanecia calmo e sem sinal algum de emoções negativas apesar do seu estado presente.
— Meu amor... — Sussurrei calmamente tentando conter a vontade de chorar, Lauren percorreu sua mão pelo meu braço até alcançar o rosto para enxugar a lágrima que escorria.
— Corte! — Disse ela de maneira enigmática. — Corte depressa! — Agarrou meu rosto com ambas as mãos e senti um choque percorrer todo meu corpo, tal efeito pareceu energizar meus sentidos e me jogou de volta para o mundo real.
Meus olhos permaneceram estagnados e o mundo ficou mais lento, a única coisa que eu podia escutar era o pulsar crescente do meu coração envenenado com aquele sentimento que o mantive sob controle por muito tempo. As pulsações se tornaram intensas a um nível perigoso quase beirando um infarto — minha respiração se acelerou e meu corpo se enrijeceu, as veias saltaram e a energia física se multiplicou em instantes. Em seguida, ergui meu rosto revelando o regresso em todo esplendor daquela forma retorcida que trazia a destruição de tudo o que existia.
A cólera absoluta tomou conta do meu ser que em ato seguinte, puxou a lâmina da bainha e cortou fora o braço mordido de Kane tão rapidamente que demorou alguns instantes para ele notar o ocorrido e gritar ainda mais forte.
Os gritos dele chamaram novamente a atenção daquela mulher que posteriormente teve seu corpo separado em três com um golpe transversal com giro da espada.
A cabeça escorregou para longe do pescoço e o tronco se separou da pélvis que caiu para o lado contrário. Joshua ficou paralisado e depois estourei o crânio da canibal com uma pisada forte e carregada de ódio.
Foi por apenas um instante, instante esse que foi mais do que o suficiente para me fazer perder a noção dos atos e exterminar a ameaça. Quando o impulso raivoso passou, eu caí no chão largando a espada enquanto buscava controlar a respiração desregulada que estava acabando com meus pulmões com o fim daquela súbita força.
Observei minhas mãos banhadas pelo sangue das criaturas, este foi o primeiro contato que tive com uma das pragas que trariam o juízo final ao mundo. Porém, embora as coisas estivessem críticas dentro de casa, lá fora com certeza estava muito pior.
Pessoas corriam desesperadas pelas ruas, buscavam abrigos e ajuda de qualquer maneira enquanto criaturas mortas as perseguiam com uma fúria animalesca. Esses seres dotados de grande força e aparência pútrida podiam ser chamados facilmente de “zumbis” como nos filmes que rodavam pelas redes, mas esses eram diferentes dos convencionais mostrados nas produções cinematográficas.
Os Lamentadores são seres humanos cujas vidas foram ceifadas por intervenção dos invasores, em contrapartida, apenas os corpos foram mortos e as almas eram impedidas de seguirem o curso natural para o céu e o inferno, assim, foram condenadas a permanecerem vinculadas aos seus antigos corpos que agora foram reanimados e agiam através de um instinto primitivo de caçar para comer. O grande detalhe, era que as almas presas aos corpos se mantinham conscientes o tempo todo e não tinham controle das ações do corpo, suas mentes sofrem torturas excruciantes e desejam nada mais além do fim de tudo isso. Tamanha agonia é transmitida através de suas vozes que se manifestam pelo espaço alcançando os sentidos dos vivos que costumam escutá-los implorando por um fim prematuro, que matem seus corpos mortos reanimados e os livrem dessa dor.
Essas criaturas vorazes corriam pelas ruas caçando e matando as pessoas, e cada um dos capturados se transformavam em lamentadores como eles. Essa praga se espalhou pelo mundo rapidamente com o despertar dos supremos nos quatro cantos da terra — todas as vítimas da doença original foram transformadas nesses seres místicos dotados de habilidades que escapam do entendimento humano.
Na época, eu não fazia a menor ideia do que realmente estava acontecendo, e nem que o caos da minha vizinhança, na verdade, era igual no mundo inteiro. “Supremos” uma raça híbrida nascida das vontades e ambições dos humanos, instigadas pela corrupção dos autores do fim do mundo; esses monstros eram extremamente poderosos, possuíam super força e controle dos elementos básicos mediante as emoções negativas e transtornos dominantes de cada um dos hospedeiros transformados.
Eles eram capazes de burlar as leis da física e alguns inclusive a contrariar a gravidade, assim dominando a capacidade de voar pelos céus conforme desejam, além disso, seus corpos evoluíram para o estágio além do limite máximo que o ser humano podia alcançar —, apesar do manuseio de energia destrutiva, estes também dotavam de reflexos assustadores e grande resistência, tudo ainda mais estimulado pela excitação e desejos de adquirir mais e mais poder com o caos e destruição ordenado pelos seres que os escolheram.
De volta em casa, Joshua socorreu Kane rapidamente improvisando um torniquete com o cinto da calça para interromper o sangramento antes que o mesmo encontrasse seu trágico fim.
— Aaah! Aaaaaaahhhh! — Berrava de dor com a ferida aberta.
— Merda! — Prendendo o cinto com força, conseguindo parar o sangramento. — Maldição, o que houve com essas pessoas?! — Questionava Joshua exaltado com o que acabara de presenciar.
— Não faço nem ideia! — Respondi tirando Kyle de debaixo da estante e buscando a chave do porão em seguida.
Na correria pude notar mais daquelas pessoas estranhas caminhando pelo jardim na direção da casa gemendo e berrando, Kyle passou por mim em busca do kit de primeiros que estava em uma das gavetas da cômoda na parede esquerda no fim do corredor e no início da sala de estar. Não tínhamos tempo para ajudar Kane ali, então retirei tapete da sala o mais depressa possível para revelar a porta abaixo com uma tranca de aço — a abri com a chave e ajudei Joshua a levar o mais velho para o porão que foi trancado por dentro logo em seguida.
No escuro do subsolo, nós permanecemos no mais absoluto silêncio para evitar que os monstros nos achassem.
Há vários metros abaixo da superfície, o porão era uma vasta área que eu costumava usar como depósito para vários materiais e objetos para serem usadas para ocasiões especificas. Ordenei que Kyle buscasse em uma das estantes por alguns sacos para dormir usados em acampamentos, ao trazê-los, rapidamente montei um no piso gelado e colocamos Kane para ficar relaxado.
— Hunter... — Kyle estendeu um lenço úmido para que eu limpasse o sangue viscoso que tinha no meu rosto.
Joshua correu para limpar o sangue de si numa pia que ficava ao lado da estante, voltou em seguida recolhendo o kit de primeiros socorros e se preparando para tratar os ferimentos do primo mais velho.
— Ele vai ficar bem? — Perguntou Kyle assustado.
— Não sei, me passa o esparadrapo! — Ordenando.
Ele parecia meio ansioso, as milhares de perguntas sobre o que acabaram de presenciar estavam atrapalhando seu discernimento e turvando sua visão das coisas. No entanto, tomei as rédeas da situação para que ele pudesse respirar um pouco, Lauren havia ministrado alguns treinamentos mais complexos de primeiros socorros para que eu pudesse me virar melhor no campo de batalha.
— Aah! — Joshua estava tremendamente apreensivo, as lembranças das coisas que viu bagunçavam sua razão.
— Deixa que eu faço isso... — Me passou os materiais cirúrgicos e tentou tomar um ar, mas sua atenção foi tomada pelo “chiar” do rádio na bancada de trabalho que ficava no fim do corredor a alguns metros da pia do lado esquerdo do porão.
As transmissões começaram de imediato para dar os alertas às pessoas sobre os eventos que se desenrolavam na cidade, meu pressentimento já alertava o puro perigo, mas até aquele ponto, somente aqueles mortos falantes eram minha preocupação.
— “Esta é uma transmissão de emergência em todas as frequências!” — Disse o locutor com uma voz grave e parecia não estar se sentindo bem. — “Isto não é um teste, estamos sob ataque massivo dessas criaturas canibais. É imperativo que todos permaneçam quietos dentro de casa, mantenham um estoque de comida para algumas semanas e evitem as ruas a todo custo! Esses monstros surgiram do nada nessa madrugada, relatos indicam que eles surgiram a partir das explosões dos invasores que estão sobrevoando a cidade e destruindo tudo. Faça o que for necessário, mas não tentem confrontar esses seres de maneira alguma, as forças policiais de plantão se mobilizaram de última hora para combater essa ameaça, infelizmente, foram mortos rapidamente por estes seres e alguns voltaram como criaturas zumbificadas.” — Tossindo. — “Alguns de nossos colaboradores foi mordido por um daqueles bichos, logo morreu e voltou para nos atacar... também fui mordido, não tenho muito tempo! Sou o único que sobrou da equipe aqui. Se estiverem me ouvindo, por favor, escondam-se, resistam e previnam as mordidas da maneira que fora necessária.” — Kyle observou Kane desmaiado após ter o braço tratado e recebido uma dose do tranquilizante. — “Huuhgh! Estou acabado, um dos invasores está bombardeando o prédio em que me encontro. Isso não está acontecendo apenas no Brasil, mas o mundo inteiro está sofrendo com esses ataques simultâneos! Aaaaah!” — Cuspindo sangue do outro lado da transmissão. — “A morte está em toda parte, se escondam e sobrevivam o máximo possível!” — Um som estrondoso foi escutado em seguida e o som de estática anunciando o fim da transmissão soou sem parar.
Naquele momento, Joshua suspirou pesadamente e me encarou ao terminar de enfaixar o braço de Kane muito depois do mesmo já ter apagado pelo remédio.
— Como sabia? — Perguntou se referindo à minha ação imediata após o ataque que o caído sofreu. — Como sabia da mordida?
— Não sabia. — Limpando o suor da testa e ficando de pé ao lado do corpo de Kane. — Foi apenas instinto...
De repente, o teto do abrigo estremeceu violentamente como se algo pesado tivesse caído ali e acompanhado por uma onda de choque com sons de explosões e madeira se quebrando. Joshua segurou a escopeta com força apontando para o teto que parecia suportar bem aquela investida, Kyle se agarrou em minha perna enquanto eu mantinha a espada firme na mão direita apontada para o chão.
— Merda! — Disse Joshua recolhendo a arma, a frustração era clara em seus olhos ao escutar ainda os gritos desesperados das pessoas lá fora em tons quase inaudíveis. — Estão matando todo mundo! Isso é um extermínio... — Sons de explosões e disparos de arma de fogo.
— Não adianta lamentar, não podemos fazer nada para evitar isso. Vem, me ajuda a mover o Kane para o fundo do corredor... — Ele agarrou duas pontas do saco de dormir e eu peguei as outras para movê-lo para uma posição mais segura.
Até que outro estrondo no teto se fez presente e todo o porão de paredes de ferro rangeram levemente, Kyle ficou com Kane enquanto eu e Joshua nos aproximamos da escada de entrada para aquele lugar. Logo, uma voz sombria ecoou pelo ambiente ao mesmo tempo em que passos pesados aconteciam no piso de madeira da casa acima. Joshua mantinha a arma engatilhada e tremia muito, a espada era segurada firmemente por mim com todas as forças.
— Walker, cadê você?! — Uma voz sombria do lado de fora invadiu o abrigo chamando nossa atenção. — Para onde você foi? — Joshua puxou o ar com força para evitar respirar.
Era uma voz que não parecia assustada como das pessoas que estavam morrendo nas ruas, parecia haver malícia em suas palavras e vasculhava os destroços da casa em minha procura. Me aproximei levemente da porta de acesso e vi através de uma minúscula abertura a silhueta de um homem alto, o tapete que caiu sobre a porta depois da última explosão ofuscava ainda mais minha visão do que poderia ser.
— James Walker, para onde você foi? — A criatura esmurrava coisas no caminho sempre que falhava em me encontrar. — Você sempre andou por aqui com esse ar de “bonzão”. Se achava melhor que todo mundo, e me desprezou quando tentei entrar para a sua academia! Mas agora, eu sou mais forte que você, e o General me deu uma oportunidade de ser o melhor do mundo como eu sempre quis. — Um daqueles caminhantes se aproximava grunhindo com sua boca cheia de sangue. — Mãe, pelo visto andou bem ocupada! — A criatura tentou o atacar, mas levou um soco no peito com tanta força que a atravessou ao mesmo tempo em que também a arremessou de volta para o jardim.
Subitamente, aquela presença sentiu um choque em seu cérebro que o deixou momentaneamente num estado catatônico, as pupilas de seus olhos sumiram, ele sorria malignamente e estremecia no lugar como se estivesse recebendo algo que o agradava muito. Seu corpo emitiu uma força avassaladora no ambiente que se manifestou como uma onda de choque, parte da casa foi varrida por essa presença e a árvore do jardim foi arrancada do chão; ele reabriu os olhos novamente e um vento moveu o tapete abrindo espaço para que eu pudesse ver melhor o que acontecia, meus olhos se arregalaram ao ver de quem se tratava, em seguida, o corpo dele se modificou anormalmente para um pálido como se estivesse doente.
— Sim, General Einhard. Que a vontade do Grande Mestre seja feita! — Sussurrou ele com um sorriso medonho nos lábios ao apontar a mão direita para o chão que começou a brilhar em um laranja intenso.
Meus sentidos alertavam o mais puro perigo, era uma sensação idêntica à quando meus inimigos apontavam uma bazuca para mim no campo de batalha. Contudo, uma outra presença surgiu caindo dos céus ao lado do primeiro que recuou o brilho laranja como se tivesse cancelado uma possível explosão.
— Damian... — Uma voz feminina alcançou meus ouvidos e ficou diante do primeiro, parecia ter baixa estatura e cabelos castanhos, mas estava com muito sangue por seu corpo como se tivesse acabado de matar alguém.
Não tive muito tempo para analisar melhor as coisas, aqueles dois seres se juntaram e dispararam um pilar vermelho luminoso a partir das mãos que alcançaram um ponto acima das nuvens que se espalhou pelos céus como uma praga consumindo tudo em seu caminho. Nuvens vermelhas como fogo devoraram o mundo, horas depois, essas mesmas nuvens bloquearam a luz do sol e começaram a reduzir as temperaturas do planeta aos poucos.
O tempo continuou seguindo normalmente e logo os gritos desesperados das pessoas cessaram, Joshua sabia que o significado disso, em contrapartida, as explosões e gemidos dos mortos continuaram. A voz daquela mulher não saía da minha cabeça, parecia tão familiar. Kane ficou alguns dias inconsciente sob nossa vigilância e com uma das pernas acorrentadas numa barra de ferro no canto do porão por segurança.
Os primeiros dias foram complicados; divergências de ideias e notícias ecoavam pelas rádios a todo momento. Joshua e eu reforçamos a entrada do porão com alguns materiais pesados e algumas vigas de madeira que estiveram guardadas aqui durante algum tempo para propósitos que já sequer consigo me lembrar — minha cabeça estava a mil com todas as recentes tribulações.
No segundo dia, Joshua conseguiu ligar para a mãe nos Estados Unidos em busca de alguma notícia boa sobre o estado deles em comparação com nossa situação. Porém, sua frustração tomou conta quando a ligação foi atendida e apenas um "filho" ecoou do outro lado antes de uma explosão cortar a chamada. Meu primo rangeu em fúria ao imaginar que um daqueles seres havia matado sua mãe, mas com muito esforço consegui mantê-lo calmo e ele caiu no sono após chorar por várias horas.
No terceiro dia, Kyle fazia a contagem dos suprimentos de emergência que tínhamos conosco. O problema: a maior parte da comida permaneceu na casa que foi destruída no primeiro ataque, e tudo o que havia guardado para situações como essa não duraria mal duas semanas se tudo continuasse nesse ritmo.
No quarto dia, Kane finalmente abriu os olhos gemendo e gritando de dor, assustando Kyle, que fazia a limpeza de seu ferimento no exato momento da ocasião. Parece que o braço decepado realmente deu certo e impediu que a infecção se espalhasse. Todos ficamos contentes com tudo isso e o deixamos repousar por mais um tempo. Joshua e eu já estávamos discutindo um plano de emergência para nossa fuga que em breve aconteceria.
No quinto dia, novamente outros daqueles seres destruidores apareceram e chamaram pelo meu nome — eles reviraram os destroços da casa, destruíram tudo com explosões e golpes de punho nas estruturas em minha busca. Eles sempre apareciam e iam embora, era como se sentissem minha presença, mas não conseguiam saber o ponto exato onde poderiam me encontrar; a única pergunta naquele momento que eu me fazia era: o que esses monstros queriam comigo?
No sexto dia, todas as nações do mundo declararam Lei Marcial, "um pouco atrasadas a meu ver", e as forças militares de todo o globo entraram em acordo para um ataque massivo contra o inimigo. Joshua ficou extremamente contente com tudo isso, todavia, meus receios eram grandes diante dessa situação, afinal, esses monstros surgiram do nada e reduziram o mundo inteiro ao caos em apenas uma única noite — provaram que possuíam meios para destruir e dominar tudo o que quisessem, e uma guerra dessa magnitude poderia ser um verdadeiro tiro no pé.
Duas semanas depois, a guerra finalmente terminou e todos os contingentes da humanidade foram abatidos por essas criaturas. Fomos derrotados por um inimigo extremamente mais poderoso. Os últimos sobreviventes da raça humana se mantiveram ocultos na escuridão e distantes dos olhos dos recém-nomeados "Supremos", rastejando pelas ruas como vermes em busca de sobreviver ao fim do mundo. A comunicação mundial foi interrompida completamente, e eu e meus irmãos perdemos todo nosso suprimento alimentício. Não poderíamos mais permanecer no mesmo lugar, a frequência dos Supremos se tornou maior e a fúria deles causava tremores de terra que poderiam colocar nosso abrigo abaixo de vários palmos de terra, apesar das fortes estruturas.
Um mês mais tarde, todo nosso suprimento se esgotou, mesmo com nossos esforços de economia e redução calórica. Tudo acabou uma hora. Estava mais do que claro que aquele era o momento que todos temíamos que chegaria, o momento de seguir a maré e buscar um novo abrigo ou, pelo menos, mais recursos para evitar a morte por fome, cujos sinais já eram visíveis naqueles de nós não acostumados a suportá-la.
A situação já era precária. Há muito tempo não escutávamos mais o recorrente pandemônio do começo de tudo. Kane estava muito melhor e conseguia se mover livremente pelo abrigo, apesar da reabilitação com a ausência de um braço. Ele tinha certeza absoluta de que ficaria completamente bom de novo para nos ajudar a lidar com essa situação de merda em que nos encontrávamos. Naquela manhã, Joshua andava de um lado para o outro, juntando todo o equipamento necessário para nossa sobrevivência, priorizando ferramentas e materiais médicos que sobraram após esse longo período de "acampamento" no porão.
— Já conseguiu tudo? — Kane perguntou a Joshua enquanto prendia suas bandagens para a jornada que viria.
— Quase. O que o Hunter foi fazer? — Joshua guardando o kit de primeiros socorros na mochila impermeável.
Não fazia muito tempo que discutíamos planos de sair da cidade agora que as coisas pareciam ter se acalmado, e com o fim da guerra mais curta que já vi, as estradas de entrada e saída da cidade agora não estavam mais sendo interditadas pelo exército brasileiro. Quer dizer, agora eram habitadas apenas por militares mortos e os ressuscitados. Kane e Joshua ficaram animados com a promessa de equipamentos e armamentos mais eficazes para a viagem. Com certeza haveria muitas armas e carros mais resistentes espalhados por toda cidade arruinada, e eu me certifiquei de escutar cuidadosamente as transmissões finais dos caras da rádio, que noticiavam o máximo de informações possíveis sobre os conflitos com os Supremos por todo o mundo — e aqui em Manaus não foi diferente. No entanto, as ruas eram bem mais perigosas para nós, e não tínhamos nem sombra de poder bélico para enfrentar os Lamentadores e muito menos aqueles invasores que cavalgavam pelos raios dentre as nuvens escuras dos céus.
Saio do banheiro chutando a porta e chamando a atenção dos outros três presentes:
— Seguinte! — Fechando a porta e puxando um pequeno mapa da cidade do bolso do casaco de capuz e o colocando na mesa de madeira no meio da sala. — Eu já vi situações ruins, mas nada se compara ao que estamos vivenciando agora. Essas coisas estão por toda parte, fora os invasores dos céus que mantêm tudo sob vigilância, de acordo com o cara do rádio. — Marquei o supermercado mais próximo com uma caneta. — Aqui fica aquele mesmo mercado que fomos antes dessa merda começar. — Joshua assentiu com a cabeça, seu olhar se mantinha sério e convicto. — Em situações de crise e nos filmes também era nítida a reação dos humanos em correr para esses lugares nas primeiras horas de terror em busca de suprimentos. — Lembrando dos filmes mais genéricos de apocalipse e na época da quarentena do Covid-19 uns anos antes. — Porém, esses tais Supremos vão além de tudo o que eu já vi antes, reduziram o mundo ao caos em apenas uma única noite. — Kane sinalizou concordância com o olhar.
— Teremos sorte se aquelas explosões não tiverem destruído o mercado a essas alturas. — Movendo um peão de xadrez para cima do ponto marcado no mapa onde ficava o mercado. — Nossa área foi bem atingida na primeira noite, ao menos foi o que vi antes de perder a consciência pelos dias que seguiram.
— As ruas foram infestadas de monstros lamentadores, mesmo que não haja supremos por lá, é praticamente inevitável que nos encontremos com esses mortos. — Joshua de braços cruzados finalizou a fala do primo mais velho.
Cocei a cabeça, notando os possíveis empecilhos no caminho. Queria poder evitar o máximo possível de problemas pelo bem de todos nós. As ameaças lá fora eram formidáveis demais; uma luta em quaisquer circunstâncias seria muito arriscada.
— Merda! — Batendo as mãos na mesa com raiva, desvio o olhar para atrás de Joshua que em seguida alcançou Kyle sentado no chão contando as munições da escopeta.
Conseguia visualizar em minha mente as lembranças de meus momentos finais com meus camaradas que não viviam mais, essas memórias de falhas antigas despertavam o mais exaltado sentimento de medo; medo de coisas assim voltarem a se repetir com aqueles que eu mais me importava, e isso, era complicado de lidar.
— Kyle, quantas sobraram? — Kane me despertou de minha paranoia.
— Não muitas... — Terminando de contar as últimas munições. — Cara, tem uns 30 disparos com isso aqui.
Pouco tempo depois, estávamos reunidos na escada de saída do porão, Joshua e eu retiramos os móveis do caminho e Kane ficou mais atrás segurando o taco de madeira com Kyle ao seu lado. Estava muito frio, devia ser bem tarde da noite por conta da pouca iluminação vinda de fora — quando terminamos, a porta se abriu e muita poeira adentrou o abrigo pelo tempo de acúmulo ali.
Joshua passou na frente com a escopeta carregada em suas mãos e eu o segui logo depois segurando a espada, o cheiro de enxofre era terrível.
— Merda... — Falei com repulsa ao observar o ambiente.
Corpos espalhados por toda área, alguns queimados e outros despedaçados como se alguém tivesse arrancado seus membros através de puxões com mãos vazias na pura força bruta. Joshua virou o rosto vomitou nos destroços da casa e eu ordenei que Kane tampasse os olhos de Kyle para evitar aquela visão terrível, era repugnante; ficamos mais de um mês confinados no subsolo enquanto o mundo inteiro ruía, eu sequer conseguia assimilar que ainda estava no meu bairro.
Apesar da imensa agonia, não podia deixar de sentir a mesma sensação que sentia dias e noites nas campanhas da guerra no passado, mas isso aqui agora, eram como um lembrete dos fantasmas dos tempos antigos. Essa sensação de estar novamente no inferno não me abandonava, e o medo do que poderia encontrar por aqui era pior ainda, não apenas por mim, e sim pelos meus companheiros. Joshua, consciente da condição de Kane e das necessidades urgentes do grupo, me lembrou que a primeira prioridade era garantir equipamento médico, comida e armamento para a jornada à frente. Não podíamos mais contar com os escassos recursos que recolhemos do abrigo, então era certo que teremos que nos aventurar pelas ruas perigosas em busca desses materiais.
O frio era terrível, a cidade estava em ruínas, com lamentadores famintos vagando pelas ruas em busca de carne. E o pior, podia sentir a presença daqueles supremos nos céus, uma camada de ameaça muito pior que os lacaios do solo, e isso tornava nossa situação ainda mais desafiadora. Meu tempo acumulando experiência em batalhas deveriam render frutos agora, o mundo atual deixou de ser o mesmo e exige que sejamos cautelosos e estratégicos se quisermos sobreviver nessa realidade hostil. Os céus eram vermelhos como se estivessem sangrando. À medida que avançávamos pelas ruínas da nossa antiga casa, os relâmpagos cortavam o céu vermelho como lâminas afiadas, e os trovões pareciam rugidos daqueles monstros invasores.
— Eles acabaram com tudo... — Comentou Joshua sem acreditar no que tudo se transformou em apenas um único mês. — Por que fizeram isso? — Olhando para mim logo atrás que erguia Kane que mal conseguia andar direito e tremia de frio.
— Não sei, mas o que sei, é que aqui não é seguro para ficarmos. — Chegando na garagem e percebendo que o carro foi esmagado pelos destroços da casa quando ela foi explodida na primeira noite. — Porra! — Rangendo de raiva.
— Calma, irmão. Isso já era premeditado, vamos ter que seguir com o plano b. — Respondeu ele, dava para notar o alívio em seu olhar, e eu próprio sabia também que não seria uma boa ideia andar de carro por aí nessas circunstâncias com aquelas coisas vigiando as ruas o tempo todo, mas, minha preocupação maior era com Kane, já passou muito tempo desde aquela mordida e o ferimento dele embora tenha apresentado uma melhora, ele próprio tem agido meio estranho ultimamente. — Temos que ir para o mercado do centro, tem algumas farmácias ao redor que podem ter antibióticos intactos para ajudar o Kane. — Kyle que segurava o mais velho pelo outro lado resolveu se manifestar também.
— Eu achei que o Joshua fosse viciado em mecânica, e não imaginei que entendesse tanto de medicina. — Comentou o caçula do grupo.
— Só sei o básico de primeiros socorros, o que se provou bem útil agora. — Respondeu de maneira direta e satisfeita com o rumo.
— Ente... — Tampei a boca do meu irmão ao escutar passos desengonçados se aproximando pela retaguarda à esquina da casa destruída.
Joshua que permanecia escorado na parede do lado contrário de onde veio a voz, se moveu rapidamente para atrás de uns destroços do telhado se ocultou por lá ao mesmo tempo em que observava de relance uma silhueta magra cambalear em meio à nevoa da rua. Ouço um rugido raivoso e puxo Kyle para o chão ainda tampando a boca com minha mãe para impedir sua respiração acelerada por conta do medo, Kane se mantinha quieto segurando o taco de madeira à minha esquerda, logo, uma voz feminina ecoou pelo espaço vindo da mesma direção de onde a silhueta magra foi avistada instante atrás.
— Alguém... me, ajude. — A voz fantasmagórica se manifestou pelo ar arrepiando todo meu corpo, o som enigmático ressoa banhada em uma imensa dor. — Por favor, alguém... me salve! — Era um lamentador que caminhou para fora da névoa, na verdade, uma lamentadora, que, fez Joshua arregalar os olhos em descrença quando a viu melhor.
— É a Dona Medeiros... — Sussurrou ele para nós.
— A vizinha? — Questionei.
— Ela é um deles! — Segurando a escopeta com ambas as mãos com força.
— Viu mais algum com ela? — Falou Kane tentando controlar a dor que sentia levemente.
— Não, só tem ela! — Finalizou.
— Nesse caso... — Soltando Kyle e pegando a espada com a mão direita.
— O que vai fazer?! — Perguntou levemente exaltado.
— Tu não tá ouvindo? — A voz de súplica dela continuava ressoando como trilha sonora de um filme de terror.
— Espera, vamos pensar melhor sobre isso. Ela tem um filho! — Falou Joshua tentando me fazer desistir dessa intenção.
— Ela já tá morta, e tá implorando por isso. — Kane se colocou de pé apoiando o bastão no chão como uma bengala.
— E além do mais, Damian era um dos doentes da praga que originou esses monstros... — Sugeri ao lembrar daquela voz chamando pelo nome dele.
— Acha que foi ele que fez tudo isso e matou a própria mãe? É um absurdo! — Contrariando.
— Isso não importa mais, já aconteceu. — Caminhando na direção da mulher zumbificada que ergueu os braços e abriu a boca ao me ver indo ao seu encontro.
— Hunter... fique longe, não tenho controle do meu corpo! — Lamentou ela em agonia enquanto seu corpo pútrido se erguia de maneira animalesca para me atacar.
Eu estava pronto para cumprir o desejo daquela pobre mulher, encerrar o sofrimento da Dona Medeiros seria uma grande piedade ao vê-la nessa situação lamentável. No entanto, ao ver o estado agonizante dela, revivi as memórias da guerra de novo, onde eu experimentei o sabor amargo da angústia de deixar para trás alguns de meus companheiros soterrados após uma missão de resgate de supostos compatriotas americanos em um campo inimigo abaixo da terra. Naquela época, minha equipe havia interceptado uma transmissão dos Talibãs que comunicavam aos demais membros sobre os espólios de um conflito recente, a mensagem era um comunicado sobre alguns capturados da batalha e noticiaram onde eles seriam mantidos. Fomos enviados para o resgate dos aliados, porém, a mensagem era uma mentira e fomos vítimas de uma armadilha cruel onde a base toda foi revestida com “TNT” e “C-4” e muitos dos companheiros enviados morreram na explosão e outros permaneceram com vida, mas, presos abaixo de toneladas de escombros.
Os gritos no rádio das vozes dos sobreviventes implorando por ajuda me despertaram do baque, eu estava num ponto mais afastado do marco zero da explosão e tive poucos ferimentos.
Logo, gritos de batalha e explosões ao redor foram ouvidos por mim e alguns dos aliados que escaparam da explosão com ferimentos não tão graves. Eu lutei para tentar alcançar os demais soterrados que pediam por ajuda, porém... ameaças maiores se aproximavam e a lógica gritava em meu subconsciente alertando do fracasso desse objetivo, eles precisavam da minha ajuda, mas os demais ao meu redor também, o que eu deveria fazer? Então, precisei deixar meus irmãos presos para trás e salvar os que estavam comigo, pois as forças inimigas logo chegariam e matariam todos se continuássemos no mesmo lugar por muito tempo.
Agora, a situação parecia um eco sombrio do passado, e eu me encontrava novamente diante de uma escolha igualmente difícil. Poderia encerrar o sofrimento da Dona Medeiros, e enfrentar a dor de carregar o sangue inocente nas mãos. A guerra me ensinou que, às vezes, a compaixão podia ser um ato de misericórdia, ainda assim, carregaria para sempre o fardo de ceifar vidas inocentes.
Foi quando a voz sombria que ecoou pelo meu subconsciente ordenando que eu finalizasse a dor da Dona Medeiros fez meu coração acelerar. Eu sabia que essa era uma manifestação do lado sombrio da minha natureza, uma parte de mim que eu desconhecia a origem, mas que foi instigada pelas atrocidades vivenciadas por mim desde o meu nascimento e principalmente, pelos horrores das guerras e perdas sofridas.
Dividido pelo senso de compaixão e a necessidade de proteger minha família. Encarei a Dona Medeiros, cujos olhos vazios suplicavam por alívio de sua agonia eterna. A voz sombria ecoou novamente, mais insistente do que nunca.
Entretanto, também lembrava das palavras de minha amada Lauren Christine, que mesmo afogada até o pescoço pelo caos e a maldade do mundo, sempre me incentivou a manter minha humanidade acima de tudo, mesmo nos momentos mais malignos. Por um instante diante daquela mulher zumbi, eu hesitei, mas em seguida, a razão superou a emoção e a realidade se tornou clara para os meus olhos. Esse mundo não era mais o mesmo que eu costumava lidar, essa mulher não era mais viva e seria irresponsabilidade minha deixá-la perambulando pelo mundo para matar outros ainda vivos. A voz sombria do meu lado furioso chamou pelo nome mais uma vez e meus companheiros se aproximavam correndo em câmera lenta ao verem minha demora para agir e aquela mulher morta se erguer para me morder na cabeça.
Quanto a mim, conseguia enxergar melhor agora depois dessa longa reflexão, eu sempre vivi sentindo que o mundo nunca teria piedade dos fracos que se ajoelham diante do problema, então, por que deveríamos ter a mesma concepção com o mundo? Meus olhos recuperaram o vazio maligno da fúria cega ao reconhecerem que a realidade exige a imposição do mais forte para que a sobrevivência se torne possível. Há poucos metros de alcançar meu rosto com sua boca repleta de dentes pontudos e ensanguentados como de um animal que acabou de se alimentar, a voz incessante de desespero da Dona Medeiros finalmente encontrou seu derradeiro fim quando minha espada atravessou seu cérebro num corte horizontal com uma única mão o dividindo em dois — miolos e sangue voaram no exato instante da ação e o cadáver ambulante enfim sucumbiu.
Tudo ficou mais claro agora, tive a plena ciência de que as escolhas difíceis e os sacrifícios eram agora parte inevitável nessa nova jornada. Com a frieza se instaurando em meu coração e espada em punho, eu guiarei meus irmãos com determinação implacável em direção ao desconhecido. Tomei decisões pela vida que selaram meu destino e minha alma, me tornei uma abominação, porém, até as abominações neste mundo podem encontrar um caminho que ajudará outros.
Enquanto partíamos pelas ruas desoladas pela presença da morte, eu não podia deixar de sentir aquela velha sensação de estar sendo observado por alguém ou alguma coisa, e não estava errado nisso afinal de contas. Naquele momento não havia percebido, mas existia um homem estranho de vestes negras, cabelo grisalho como um idoso e uma aura sinistra que nos observava à distância enquanto deixávamos para sempre o lugar que um dia chamamos de lar. Ele estava sentado furtivo no telhado de uma casa, suas feições ocultas pelas sombras e a fumaça das destruições ao redor, mas seus olhos observadores pareciam não perder nenhum dos nossos movimentos.
Um sorriso contente se formou em seus lábios ao testemunhar minha rejeição à compaixão e abraçar essa natureza implacável. Era como se ele estivesse satisfeito com a direção sombria que eu estava tomando em meio ao apocalipse.
Quando desaparecemos no horizonte tenebroso em direção ao centro da cidade, o homem de vestes negras se colocou de pé e sacou uma grande foice fantasmagórica. Seus olhos brilharam em um tom púrpura sinistro, destacando-se na escuridão ao seu redor. Como uma figura enigmática, ele se retirou para as sombras, desaparecendo completamente.