Nós corríamos pelas ruas desoladas da capital, fugindo e nos escondendo dos infectados pela praga da lamentação que infestavam cada área daquela cidade que algum dia vivenciou uma relativa paz. Perdemos bastante tempo tentando cruzar o centro da cidade, mal conseguíamos nos locomover pelas esquinas sem sermos abordados por aquelas criaturas famintas que não calavam a boca nunca, sempre pedindo pela morte definitiva pelas nossas mãos.

Em contrapartida, encontramos muitas armas e suprimento médico nas viaturas respectivas, muitos estavam espalhados por todas as áreas junto de milhares de cadáveres esqueléticos ressecando ao vento e ao calor dessa época tropical — apesar da temperatura permanecer relativamente amena por conta das nuvens cor de sangue nos céus, bloqueando uma boa parte da luz solar. Nesse período do ano, certamente estaríamos sendo torrados por um calor de matar como as previsões climáticas noticiavam; nem a intervenção desses monstros do espaço era capaz de conter completamente o clima insano desse país.

Entretanto, era fato que aos poucos a temperatura caía, provavelmente mergulhando o mundo numa possível nova era glacial por conta dessa intervenção.

Com os equipamentos médicos escassos nas ambulâncias, conseguimos tratar Kane com um pouco mais de eficiência e ganhar algum tempo de resistência para ele contra os efeitos secundários dessa infecção de outro mundo. Por outro lado, ao longo desse mês de apocalipse que passou, podíamos notar uma ligeira mudança no comportamento dos infectados, pareciam mais enfurecidos pela ausência de comida — outro dia acabei dando de cara com um homem, a voz de quem ele foi ecoava normalmente, mas ele atacava com muito mais ímpeto e agilidade, como se estivesse realmente desesperado, ou louco mesmo, não faço ideia.

Mas, todos sabemos que esses caras não são os maiores problemas que assolam o mundo, os Supremos continuam vagando pelas nuvens através dos relâmpagos em busca de sobreviventes humanos. Embora tenhamos bastantes armas de fogo, evitávamos ao máximo utilizá-las para não atrair a fúria desses monstros. Não era um evento constante, mas em situações diferentes podíamos sentir a terra estremecer e redomas douradas subirem aos céus, assim como casas, prédios e vida humana sendo exterminada por um ataque de magia dessas criaturas invasoras.

Fazia ao menos dois dias que não dormíamos direito, as vozes gritantes das criaturas rasgavam a serenidade das noites neste mundo conturbado. Estávamos escondidos em um canteiro de obras abandonado, abaixo de algumas fundações de concreto e ferro incompletas pela ausência dos trabalhadores. Esse lugar ficava ao lado de um pequeno matagal ao redor de um córrego, imaginei que o cheiro ruim no ar impediria que as criaturas pudessem sentir o nosso próprio.

Era um final de tarde, montamos uma barraca improvisada com alguns lençóis trazidos conosco do abrigo subterrâneo em cada e algumas cordas de alpinismo. Jazíamos praticamente dentro de um buraco cavado abaixo de uma estrutura de concreto, o espaço para entrar era composto por uma pequena abertura rodeada por um leve declive de barro úmido pelas constantes chuvas fora de época, provavelmente era ali que iriam fazer a porta de entrada para o que parecia ser um porão ou sala extra para o que quer que fosse o propósito dessa obra.

Joshua era da área da engenharia mecânica, mas teve algumas aulas com engenheiros civis para fins de conhecimento mesmo, através de alguns cálculos das estruturas, constatou que era seguro e não havia risco de desabamento, por meios naturais no caso. E como a porta de entrada estava incompleta, permanecia levemente oculta da visão externa de alguém, em realidade, nós que cavamos quando chegamos para abrir a passagem para usarmos de abrigo para passarmos a noite.

Restaram muitos materiais em bom estado espalhados pela área, além de uma loja de ferragens do outro lado da rua na parte da frente da obra, Kane e Kyle ficaram para fazer uma breve limpeza do abrigo temporário enquanto eu e Joshua fomos dar uma olhada na loja. Com as ferramentas diversas, além de alguns apetrechos específicos que podíamos usar para fazer armas brancas melhoradas — tornando cada vez menor a necessidade do uso de armas barulhentas.

A noite estava chegando, e com ela o frio implacável, além dos berros ferozes das criaturas mortas se amontoando pelas ruas em busca de presas. Nem os cães e gatos escapavam de serem alvos dos lamentadores, muitos que não conseguiam fugir e eram encurralados, sendo rapidamente despedaçados pelos monstros famintos.

O cheiro de enxofre começou a se tornar cada vez mais intenso no ar, incomodando meu olfato e servindo de alerta para nós. Logo, meus instintos começaram a alertar um perigo iminente, rapidamente puxei Joshua para dentro de uma lixeira no beco à esquerda da loja, ele não havia compreendido este ato repentino, até que ao longe viu um relâmpago rasgar os céus causando uma iluminação breve, revelando um corpo humanoide flutuando dentro das nuvens em modo de caça. Havia um deles por perto, mas não parecia ter notado nossa presença, ele realizava movimento involuntários pelos céus como se estivesse perdido.

Dentro da lixeira, Joshua implorava para que a criatura fosse embora e não inventasse de disparar outro daqueles canhões de destruição em massa que, mesmo sem saber, acabaria varrendo todos nós desse mundo em um único instante.

Logo, dois lamentadores surgiram no beco sujo, com seu típico andar desengonçado e gemido grotesco, fora as vozes atormentadas ecoando pedidos de ajuda que irrompiam a penumbra daquela noite gélida que encerrava a tarde. Dentro da lixeira, podia sentir e escutar o som dos sacos de lixo se chocando contra as estruturas de ferro enferrujado, sinal de que os ventos ficaram mais fortes como um sinal de chuva. Os lamentadores começaram a revirar os sacos de lixo, como se tivessem percebido algum sinal de vida por ali, tenho quase certeza que algum rato maldito também inventou de se esconder por aqui e atraiu a atenção das criaturas. Todavia, eu poderia facilmente abrir a porta vertical e eliminá-los com uma chave de fenda ou qualquer outra coisa mais firme jogada pelo chão. O verdadeiro problema mesmo, era aquele Ser planando sobre as nuvens, enquanto ele estivesse por perto, nossas vidas corriam perigo extremo.

Àquela distância, era praticamente impossível de distinguir as características do Supremo, dias atrás tive a trágica notícia de que meu vizinho, Damian, foi transformado em um deles, e parecia estar me caçando. Isso era um problema, tivemos alguns desentendimentos ao longo de minha estadia aqui no Brasil e ele nunca foi muito com a minha cara.

De repente, sons de disparos foram ouvidos a partir de uma distância longínqua, nossa localização era próxima de uma das avenidas mais conhecidas da cidade, rodeada por bairros diversos. À oeste de nossa localização, havia alguns bairros considerados de alta periculosidade por conta do crime organizado e facções atuantes no local, provavelmente algum remanescente conseguiu sobreviver e estava combatendo os monstros caminhantes; um ato mal pensado que resultou em grande benefício para nós, e o Supremo partiu em direção ao local de origem dos disparos para eliminar as formas de vida presentes no lugar.

O odor de enxofre se dissipou um pouco, melhorando brevemente a qualidade do ar e podíamos ficar um pouco mais sossegados. Contei até três com os dedos juntamente de Joshua, e ao final da contagem, abrimos a porta da lixeira, surpreendendo os lamentadores que prontamente começaram a berrar de fome tentando nos agarrar, mas fomos mais rápidos e os executamos com chaves de fenda diretamente no crânio. Eles foram ao chão já sem reação, e eu podia jurar ter escutado um sussurro de agradecimento alcançar meus ouvidos quando eles foram exterminados.

— Não há de quê... — Falei, pulando para fora da lixeira e varrendo o perímetro com minha visão. — Limpo! — Joshua também saiu, pegando as bolsas com equipamento e rapidamente corremos de volta para o abrigo improvisado sem sermos vistos pelos zumbis lerdos.

— Vai, Hunter! — Joshua me entregou a bolsa e ficou de vigia, deslizei até a entrada onde Kyle aguardava pronto para retirar a plataforma de metal usada como porta.

Puxei a bolsa para dentro do buraco e sinalizei para Joshua, logo, todos arrumamos nossos lugares naquele pequeno espaço de três metros de altura e com espaço para ao menos oito pessoas. Certamente, o planejamento dessa parte da obra era de um buraco ainda maior, mas o apocalipse frustrou esse objetivo e ficou do jeito que está.

Com os parafusos, cordas, fitas, conseguimos melhorar um pouco a segurança do lugar, mas isso não permitia que ficássemos relaxados, crentes que nenhum imprevisto pudesse ocorrer durante o tempo de repouso. O relógio acabara de bater às 18:34 da noite, o primeiro quarto de hora na vigia seria meu, duas horas desperto enquanto os demais repousavam após um longo dia.

Eu estava sentado no canto esquerdo do buraco, ali havia uma pequena abertura entre o concreto e os vergalhões, dando uma visão do córrego cujo sons das águas em correnteza ofuscavam os berros dos lamentadores vagantes ao redor de nossa localização. Me encontrava imersivo em pensamentos, observando Kyle encolhido em um saco de dormir tentando escapar do frio daquela ventania — prelúdio de uma chuva que nunca veio.

Houve muitas ocasiões em que eu me sentia impotente perante a situação precária do mundo, desejos e ambições estremecendo cada átomo do meu corpo, como uma lembrança da incapacidade de poder consertar esse buraco enfadonho onde meu irmão pequeno será obrigado a viver. Isso me causava grande irritação, nem de longe eu gostaria de vê-lo viver uma vida conturbada como eu vivi. Meu anseio, era vê-lo crescer feliz, longe da maldade do mundo e livre da necessidade de ter que se tornar um monstro para poder combater outros monstros; e agora, estamos em um apocalipse, uma merda de apocalipse... ser forte, se tornou o único caminho para quem quer sobreviver aqui.

Estive diante de muitos monstros ao longo de vida, combati todos com a força do ódio ardente na essência da minha alma, o ódio que sempre me acompanhou durante a jornada até aqui e me manteve com vida nos piores cenários possíveis. Dizem que esse sentimento é nocivo, envenena o corpo e corrói a alma, mas se ele for capaz de manter minha família em segurança, então não o vejo como algo ruim. Um pouco antes de tudo isso começar, ouvi boatos de que minha irmã primeira irmã havia dado à luz a um menino, não tive a oportunidade de revê-la, ou sequer conhecer meu sobrinho, não consigo nem cogitar a situação deles hoje, pensar que estão mortos é a única maneira de não ocupar minha cabeça com uma crença provavelmente frustrada que poderia arruinar minha própria sobrevivência e a dos meus iguais. Quero manter minha esperança intacta, esperança em conseguir resistir até achar uma solução para essa crise, e manter meus irmãos à salvo.

A noite seguia quieta, com a destruição dos postos de abastecimento elétrico da cidade, o breu absoluto tomou conta de tudo, tornando praticamente impossível sair pelas ruas nestas horas com alta probabilidade de morte certa. Minha experiência militar dizia que estávamos no lugar certo e na hora certa, a noite era nossa inimiga, esperar pelo nascer do sol era a única ação viável. Os mortos espreitam na escuridão, famintos por vítimas desorientadas como um convite para a conversão para o lado morto da força.

Madrugada, meus olhos acomodados por conta da ausência de perturbações já começavam aos poucos a se cansar, tentei abandonar os instintos militares logo depois de minha retirada, mas, a inevitabilidade dessa característica se apresentava, exigindo um olhar muito mais atento nessa complicada realidade que fomos incumbidos de combater. Assim, me esforcei para manter os sentidos ativos ao máximo, foi quando ouvi a respiração de Kyle se desregular abruptamente, fiquei acomodado contra a parede e ele logo despertou.

— Tudo bem aí? — Perguntei com leve preocupação, sabia das dificuldades que ele tinha para conseguir pegar no sono rapidamente.

— Ah, sim, é só... — Estralando as costas. — Esse chão é meio duro para dormir.

— Deveria se contentar por ter a oportunidade de descansar os olhos. — Respondi rapidamente com uma ignorância mal planejada.

— Entendi. — Rastejando em minha direção naquele espaço apertado. — E você... Hunter. — Sentando-se ao meu lado. — Já teve noites ruins?

— Mais do que dá para contar. — Apoiando a arma sobre as pernas.

— Todas enquanto estava trabalhando no exército? — Senti um choque percorrer minha espinha, chegando ao cérebro e reativando lembranças que eu me esforçava para ignorar.

— Sabe que não, Kyle! — Matei centenas de pessoas ruins em minhas missões, mas a morte de milhares de vermes não se equivale em nada se comparar com a única vida que eu de fato sempre quis ceifar. — Nossa mãe nunca foi fácil de lidar, seu pai então. — Kyle era pequeno, porém, nada estúpido, ele entendia bem as coisas e evitava compartilhar seus próprios conhecimentos antes de desvendar o território inicialmente.

— Eu não gosto dele. — Esclareceu.

— Nem eu, garoto. — Segurando o ombro direito dele com o braço por cima do pescoço.

— É complicado. Mas eu precisava de você por perto para entender melhor as coisas, entender porque nossa família desestruturada não tinha mais salvação, e você me abandonou lá sozinho! — Havia escárnio em seu tom de voz, e ele retirou minha mão de seu ombro em rejeição ao contato direto. Não dá para se livrar das escolhas do passado, elas sempre voltam para prejudicar algum pedaço do seu presente, e como o universo tende a ser justo e traiçoeiro ao mesmo tempo, essas escolhas minam as relações que de fato ainda possuem importância para nós.

Eu cresci em um lar perturbado, minha mente se moldou num tormento por si só, e fugir foi o único sinal de refúgio que pude encontrar para extravasar todo o dano acumulado na sanidade. Minha mãe foi o meu trauma, já Kyle, eu era o dele. Ele é um garoto esperto, mas não deixa de ser uma criança — uma criatura frágil que, apesar dos meus próprios problemas pessoais, deveria ter me mantido firme para salvá-lo de ter a mesma dor que eu senti.

— Mas, mudando de assunto... — Interrompendo minhas reflexões pessoais sobre os desfechos antigos. — O que houve com você naquele momento? — Arqueei as sobrancelhas sem entender corretamente o que ele estaria se referindo. — Quando aquele monstro mordeu Kane, você... parecia fora de si.

— Ah, isso... Bem, para ser honesto com você, nem eu mesmo sei explicar. — De fato essa informação estava fora do meu alcance, era só, uma coisa que acontecia comigo em situações de muito estresse. — Não sei, é algo que acontece e pronto.

— É culpa da mamãe também? — Kyle nunca media as palavras, entrando em assuntos que não compreendia corretamente o peso emocional contigo.

— Pode se dizer que sim. — Fechando os olhos e segurando um dos joelhos, estava ficando tarde e deveríamos aproveitar a calmaria para descansar os nervos. — Já é bem tarde, é melhor ir dormir, partiremos ao amanhecer. — Ele pareceu se decepcionar com isso, no entanto, conhecia bem as necessidades em meio à crise que vivenciamos agora.

— É, fazer o quê... — Ficando de pé e voltando para o canto do buraco para poder dormir. — Não vou mentir, sinto falta de nós. Espero que algum dia possamos voltar ao começo. — Ele sorriu e deitou para dormir usando a mochila como travesseiro e o casaco como cobertor, em poucos instantes, seu ronco baixo já era audível para mim.

Encostei a cabeça na parede, sentindo a brisa fria lá de fora gelar um pouco nosso abrigo temporário, o sorriso em meu rosto era singelo, porém, inevitável. Não há desculpa para minhas falhas, apesar das circunstâncias, mas nem aqui no fim do mundo, não significa que não há espaço para reconstruir uma história cheia de lacunas.

— Perdido em pensamentos de novo, Soldado? — Joshua rasgou o silêncio abruptamente, também não estava dormindo nesse meio tempo.

— Porra! Joshua, vai dormir. — Respondi rapidamente, tentando não deixar evidente que fui pego desprevenido.

— Como é que dorme? Vocês falam alto para cacete. — Se sentando no chão concretado com o taco de beisebol sobre suas pernas.

— Ah, você ouviu a conversa?

— Um pouco, mas isso não vem ao caso. — Ele parecia não dar importância em assuntos pessoais alheios, afinal, ele não tinha fama de fofoqueiro, ao contrário do resto da família. — Mas e aí, o que você acha dessa situação? Digo, já viveu algo assim?

— Cara, isso aqui não é tão diferente do que já lidei antes. Contudo, zumbis, ou seja lá o que são aquelas coisas, e criaturas voadoras que disparam lasers pelas mãos... É a primeira vez que vejo, e não faço ideia de como lutar.

— Não é fácil para ninguém, irmão. Eu já vi filmes de zumbis, e as criaturas lá fora parecem algo a mais do que um simples apocalipse zumbi padrão. — Assistir e ler sobre ficção científica sempre foi uma ocupação na infância de Joshua para passar o tempo livre.

— É... — Observando a abertura ao lado da minha cabeça, vendo a água do córrego fluir violentamente em resposta à tempestade que se fazia presente com seus ventos poderosos. — Receio que ainda não tenhamos experimentado a verdadeira ameaça. — As criaturas voadoras destruíram as forças do mundo, permanecíamos alheios às intenções delas, afinal, não parecia que a mera destruição fosse sem propósito.

Eles incapacitaram os exércitos do planeta, eliminando as possibilidades de uma resistência sólida ao domínio de seja lá o que eles são. Se ainda havia rebeldes pelo mundo, certamente estão fazendo o mesmo que nós agora — se escondendo, sobrevivendo um dia por vez — sabemos muito pouco dessas criaturas, sem recursos, um enfrentamento direto é suicídio. Ademais, esses “caminhantes” perambulam sem parar o dia inteiro, clamando por um livramento através de nossas mãos. É uma situação deveras desconcertante, meus instintos me instruem à somente permanecer oculto, evitando qualquer cenário que exija um combate direito; meu irmão é minha maior prioridade, não posso vacilar sob quaisquer circunstâncias, Kyle, Kane e Joshua precisam sobreviver.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.