Além de Tudo

Indiferença: A Máscara - II


Já se passara mais de 40 minutos e achei estranho Mischa ainda estar tomando banho, pois eu conseguia tomar banho em menos de 20 – o que ainda é um desperdício, como todos me dizem –. Mischa estava em uma das suítes da casa da minha avó, a minha era ao lado dela. Fui ao seu quarto. Por cima da grande cama de casal havia uma mala prateada bem grande. As roupas, que há pouco Mischa usava, estavam espalhadas pelo chão; apenas seus tênis all star estavam bem alinhados em frente ao grande armário de madeira talhada. Ouvi o som do chuveiro cessar.

— Mischa! – Eu disse, antes que ela abrisse a porta.

— Aaah! – Mischa gritou em uma voz bem aguda e quase ensurdecedora por trás da porta do banheiro. – O que você está fazendo aqui no meu quarto?! – Falara em português alto e bem claro, sem qualquer sotaque estrangeiro.

— E...Eu...– Meu coração começou a palpitar. O fato dela saber português me fez sentir imenso constrangimento. Por isso o pai dela ficou surpreso: eu estava falando alemão com uma garota que sabe falar perfeitamente a minha língua materna – português, obviamente –. Saber alemão era uma tradição na família, não um motivo de surpresa. Pena eu ser tão desatenta. – Você estava demorando demais no banho, eu fiquei preocupada. – Consegui suportar minha ansiedade para soltar a frase.

— Olha, – ela rodou a maçaneta e começou a abrir a porta – eu admito que fiquei muito tempo tomando banho, mas isso não lhe dá o direito de invadir minha privacidade. Muito menos minha vida pessoal! – Nesse momento a porta estava totalmente aberta e vi seu corpo magro e pálido envoltos em uma toalha azul-marinho e seus cabelos molhados grudados no rosto. Seus olhos frios pareciam querer me expulsar do Universo, como se eu tivesse feito o pior crime, cometido um pecado mortal.

— Desculpe. – Não conseguia dizer mais nada além de desculpas. – Sinto muito por invadir sua privacidade! Boa noite!– Eu disse, saindo rapidamente do quarto com uma imensa vontade de chorar.

Ela provavelmente demorou tanto tempo assim porque, na verdade, estava escutando a minha conversa com a minha avó e disfarçou deixando o chuveiro ligado. Chorei de frustração enquanto tomei um banho que terminara em exatos 20 minutos.

Ela não veio falar comigo naquela noite e eu já desistira de tentar o impossível. Tentei me distrair até o sono chegar, mas me parecia dificultoso demais dormir em um momento desses. Eu estava usando um pijama de ursinhos, sentei na janela e observei o brilho estelar. Passou algumas horas e adormeci ali mesmo. Acordei com a forte luz da manhã iluminando meu rosto. Senti uma intensa dor no pescoço ao me retirar da janela. Acontece quando você é uma pessoa ignorante e dorme de mau jeito.

— Ora, Andressa, por que toda vez que olha as estrelas você esquece de dormir na cama, hein? – Monologuei de forma autista. – Que horas são? – peguei o celular e eram 7:30 da manhã. – Acordei cedo... – Suspirei. Infelizmente, flashes passaram rapidamente do episódio desagradável da noite de Natal.

De repente ouço a porta do meu quarto abrir, deveria ser minha avó.

— Bom dia, vó... – Falei com uma voz fraca, olhando para o celular e perdida em pensamentos.

— Sinto muito não ser sua avó – a porta se fechou –. Mas... Espero que um dia eu possa ser ao menos sua amiga. – Era a voz de Mischa ecoando humilde e inesperadamente.

Rápido, me virei para a sua direção e ela estava linda, como usual. Usava uma saia cheia de detalhes preta, uma camiseta branca e botas de couro com salto baixo.

— Bom dia, pensei que não falaria mais comigo. – Disse forçosamente, contendo meu remorso.

— Na verdade eu queria me desculpar. Tenho grandes dificuldades em me relacionar com as pessoas e, depois de tudo, eu não seria tão arrogante a ponto de ignorar alguém da própria família. Ainda que uma parente distante. – Ela me olhava diretamente nos olhos, parecia inabalável.

— Percebe-se que você é alguém próxima de ser considerada antissocial. Mas não importa, eu invadi seu espaço e sua vida pessoal por pura curiosidade, sem ao menos pensar em seus sentimentos. Eu que lhe devo desculpas.

— Estamos quites, vamos deixar isso para lá então... – Ela sorriu e me estendeu a mão. – Vamos começar tudo de novo, e sem esse linguajar pavorosamente polido!

— Hum! – Comecei a rir um pouco. – Eu começo com as perguntas.

— Ok.

— Qual sua idade, onde você nasceu e como sabe falar português tão bem? – Sorri, enquanto ela processava as informações.

— Bem... Tenho 15 anos, nasci em Moscou, na Rússia. Aprendi tão bem português porque moro no Brasil há 10 anos. – Ela sorriu, me olhando como se eu fosse uma idiota.

— O...o quê!? – Gritei assustada. – Como as pessoas me privaram de te conhecer antes? – Pensei alto sem querer e ela caiu na gargalhada.

— Não... – ela começou a recuperar o fôlego – Não foram as pessoas. Fui eu. Eu nunca tive interesse em conhecer meus parentes e sempre vivi em um lugar... – ela parou para pensar. – Digamos assim: rigorosamente sistemático. Algo que me fizera acreditar por muito tempo que tudo deveria ter utilidade e cumprimento de metas. Mas, certo dia, meu pai me falou que eu deveria encontrar a essência de viver e que seria bom se eu pudesse vir para essa festa de Natal. – Ela suspirou, olhando para o chão como se não tivesse encontrado esse "item".

— Seu pai mora com você? – Disse eu, bastante curiosa, estranhando essa vida solitária e de abandono parental dela.

— Ah, não. Ele vive junto com a mulher dele, na Suíça. Desde pequena fui criada por empregados e educada por professores particulares. – Ela falou com a maior naturalidade.

— Incrível... – Não consegui conter meu espanto, fiquei boquiaberta com a história dela. – E os seus amigos?

— Livros, músicas e... papai. – Ainda continuava a falar como se fosse a coisa mais normal do mundo. – Só que papai só vem uma vez por ano, então não sei se posso realmente considerá-lo como um amigo. – Ela segurou e olhou para o pequeno pingente dourado que escondia debaixo da camiseta. Era uma borboleta.

— Céus... – lágrimas começaram a cair do meu rosto – deve ser... Muito difícil! – cobri meus olhos com as duas mãos.

— Não. Não é difícil para quem se acostuma. Ela tocou suavemente minhas mãos e as retirou do meu rosto. – Você deveria saber que não podemos nos apegar aos remorsos nem ressentimentos. A vida é curta demais para vivermos com amargor no coração. – Ela me abraçou gentilmente.

Não sei porquê ela fez isso, mas eu me senti protegida. Foi como se ela pudesse ver através de mim e entendesse como eu era por dentro. Minhas lágrimas secaram e me aprofundei mais e mais naquela abraço. Tudo poderia explodir, desde que ela estivesse ao meu lado. Foi o que eu pensei naquele momento. Mas, e quando chegasse a hora dela se despedir? Bem, ela ficaria aqui até o começo das aulas. Eu ainda teria tempo suficiente para aproveitar sua presença.