Além de Tudo

Fluida e maleável


Duas pequenas caixas sobrepostas dentro de uma sacola, que está segurada entre delicados dedos. Fecha a porta com cuidado, põe sobre a cômoda os enrolados, makis, que pedi. Organiza-os cuidadosamente de modo que eu possa comer com mais facilidade. Curiosamente ela resolveu copiar meu pedido e pude ver que os dois bentôs eram clones. Embora eu também goste de comida mexicana, meu estômago não aguentaria comida com fritura, carne vermelha ou pimenta. Resolvi não arriscar e escolhi sushi.

Sento com as costas viradas para a cabeceira da cama. Por cima de minhas coxas o amor da minha vida ajeita a mesa portátil e coloca a caixinha aberta com hashis e suco de laranja para acompanhar. Agradeço com um selinho.

— Pronto, podemos comer! – Posando sensualmente na cadeira com a coluna ereta e pernas cruzadas, sei que sem propósito, Mischa separa os hashis e me olha de soslaio tombando sua cabeça para o ombro direito.– Vai me olhar ou vai comer?

— Hahaha, tá se achando muito!! – Mostro a língua como se eu fosse uma criança. – By the way, se eu pudesse comer, não pensaria duas vezes.

— Uau! Tirem as crianças da sala! – Ela ri, assim como eu também. Palhaças.

Comemos em silêncio, parecendo que além do alimento tentávamos digerir esse encontro. Ao terminar, Mischa joga fora os descartáveis e retira a mesinha portátil.

— Andressa, quer ajuda para te acompanhar ao banheiro?

— Eu diria que não preciso por educação, mas realmente preciso. – Me sinto no fundo do poço. Suspiro.

— Para com isso, Andressa. Confia em mim, não acho que seja motivo para ter vergonha. Vamos.

Faço um gesto afirmativo com a cabeça e ela me ajuda a ir ao banheiro, segurando o suporte do soro. Escovo meus dentes enquanto ela fica me vigiando. Risos, não estou tão ruim assim. Certo que eu quase morri, mas o pior dia de pós-operatório foi antes de ontem, logo após a cirurgia. Eu não conseguia comer, vomitava tudo que ingeria. Minha recuperação foi ótima e talvez depois de amanhã eu possa voltar para casa. Ainda sinto dores da cirurgia, mas não tenho mais nenhum sangramento; o que me deixa bastante aliviada. Acabo o ritual higiênico e seco minha boca com a toalha.

— Andressa… Sei que não é da minha conta, mas esse tipo de gravidez é chamada de ectópica. Literalmente, fora do útero. É impossível para o bebê sobreviver e pode matar a mãe. Digo isso para que não se sinta culpada, caso acredite que tirou uma vida. Infelizmente ele não sobreviveria de uma maneira ou outra. – Mischa me olha com uma expressão de profunda preocupação.

— Por que me diz isso agora? – Vem à tona toda a tristeza acumulada e a culpa que senti especificamente por isso. Não consigo, mesmo com todas as forças, evitar de chorar.

Saio do banheiro, passando reto por Mischa, que me segue para me amparar, e sento na cama. Tento inspirar e expirar para cessar, mas não passa. Apenas choro enquanto ela me abraça e passa as mãos pelo meu cabelo. Paro por exaustão.

— Andy, sinto muito. Passou, passou… Agora está tudo bem. Acalme-se. – Beija minha bochecha e acaricia meus ombros, aliviando a tensão.

— O que me dói mais é que o aborto foi apenas uma parte de um conjunto inteiro de erros, Mischa. A hemorragia foi meu karma, essa cicatriz – levanto meu vestido e mostro um corte médio, entre os ossos do quadril e cinco centímetros abaixo do umbigo – é só uma pequena marca da minha estupidez. – Franzo minhas sobrancelhas e sei que devo estar com os olhos vermelhos e com uma careta bizarra. Respiro fundo.

— Podemos conversar mais sobre, mas é melhor você se deitar.

— Concordo…

Deitada, me sinto mais tranquila. Não sei muito bem o que senti para chorar tanto e me desesperar, só consigo pensar que isso me aliviou de algo que estava travado na garganta. Em tão pouco tempo Mischa fez muito por mim, sendo paciente e prestativa. Como eu a julguei arrogante por tantos anos? Como pude duvidar de seus sentimentos, comparando-os com os meus? Em verdade ela tem uma personalidade introvertida, mas isso não significa que ela seja fria e sim que não faz questão de se expressar além do necessário.

— Mischa, não sei como te agradecer. Você é maravilhosa.

— Não precisa me agradecer. É o mínimo que posso fazer por você, mein lieber.

— Meu anjo da guarda, praticamente. Haha… Sabe, me veio aqui em mente que você não comentou direito sobre sua madrasta e seus planos manipuladores, além disso não sabia que você tinha um irmão mais novo.

— Bem gostaria de ser seu anjo e zelar por sua segurança. Cada aperto que você se mete… Principalmente se envolvendo com sua prima de terceiro grau, como pode? Hahaha. Ah, então… Minha madrasta, Kira, teve meu irmão mais novo recentemente. Ele só tem um ano de idade. Ele é lindo, precisa ver haha.

Sobre a minha madrasta, ela é cruel. Não sei dizer ao certo, mas não sinto nenhuma empatia por ela. Sinto pena do meu irmão que terá que conviver com alguém assim. A mansão em Curitiba é parte da herança que meu pai obteve após as mortes de meus avós. Meu pai tem atualmente quarenta e cinco anos. Meus avós morreram quando ele tinha trinta e dois, ou seja, treze anos atrás. Quando eu tinha cinco anos eu ainda morava com meu pai em Moscou, daí teve a morte de meus avós e tivemos que ir para o Brasil. Me assusta até hoje que o acidente que tiveram deixaram seus corpos irreconhecíveis, foi necessário teste de DNA.

Kira se casou com meu pai quando eu tinha por volta de meu três anos. Ela sempre agiu de maneira falsa, nunca gostei dela mesmo criança. Ela convenceu meu pai que seria melhor para mim que eu me mantivesse afastada da rotina agitada dele, tendo que viajar para diversos países. Eu não queria de jeito nenhum, mas fui obrigada a aceitar. Por sorte, a governanta da casa sempre foi ótima para mim, como uma segunda mãe. Só que Alice, filha dela… Bom, isso fica para outro dia.

— Que horror! Sua madrasta é medonha… O que tem Alice?

— Prefiro falar sobre isso outro dia.

— Terá outro dia? Amanhã você estará em São Paulo e depois de amanhã sabe-se lá…

— Hahaha… Andressa! Trabalho muito e em vários lugares, mas consigo arranjar tempo para tudo. Não se desespere.

— Okay. E Alice?

— Ai meu Deus…– Mischa revira os olhos.

— Por favor… Ela te fez bullying? Tratou você mal? Abusou de você?

— Calma, criança. Ela não fez nada disso. Mas… Outro dia eu conto! Não é hora para ficar falando dela por enquanto.

— Tá bem, tá bem. Você ganhou.

Fecho os olhos. Uma expressão de renúncia. Sinto sua mão acariciar mais uma vez meus cabelos e eu rio, mas sem abrir os olhos. A sensação é super agradável e relaxante. Tateando, coloco minha mão esquerda sobre sua coxa direita e também a acaricio. Sinto que somos um casal de velhinhos após uma vida bem conturbada, só que somos apenas recém adultas. Mischa com dezoito e eu com dezessete. Estamos apenas começando a nos conhecer melhor e a amadurecer a ideia de vivermos juntas.

Lembro que a água é um elemento muito importante para a cultura taoísta, cultura esta proveniente da China. No Tao Te Ching, diz-se que a bondade sublime é como a água e que beneficia a todos sem preferência. A água simboliza também a transitoriedade das formas; não é nenhuma, embora se adeque a qualquer recipiente. Fluímos como a água e tudo que nos tornamos não passa de um estado. Nosso real estado não possui forma alguma. Como uma célula totipotente, podemos ser tudo que quisermos ser. Não há limites; acreditar neles é estar iludido. O que sinto por Mischa já esteve poluído pelo sentimento de posse e obsessão, mas agora retoma ao seu estado natural. Puro.

Amo-a, com toda certeza. Seja em quais circunstâncias estivermos, sei que esse sentimento nunca deixará de existir. E qual a melhor forma de expressá-lo? Amando sem julgar. Amando sem possuir. Amando naturalmente. Dessa maneira, não me preocupo se amanhã de manhã ela estará em São Paulo. Não me dói, de forma alguma. Rezo para que ela siga seus sonhos e que alcance êxito. Sinto que muita coisa mudou para mim, mas o caos às vezes se faz necessário.

Adormeço.