Além de Tudo

Lar, doce lar


Dói; o corte não me faz esquecer. Abro os olhos fitando o teto branco e iluminado pela luz azulada da manhã, deve ser por volta das 5h. Mexo um pouco meu corpo para poder me sentar na cama e percebo que Mischa não saiu dali; está debruçada numa parte não ocupada da cama, perto da minha cintura. Não sei se me sinto surpresa ou me derreto ainda mais de amores por ela.

Relembro-me da vez em que Mischa me observara dormindo por horas, quando eu descobri que eu não era a única stalker da relação. Também relembro de seu perfume de cereja, ácido e levemente adocicado que ficou impregnado na cama, da nossa primeira e única vez. Hoje ela não tem mais o mesmo perfume: trocou por um mais trending(na moda) e caro, será? Só sei que ele é também levemente adocicado e ácido, mas sua fragrância é floral. Parece ser uma mistura de jasmim, rosas e orquídeas. Dá-me uma vontade súbita de beijá-la, de sentir as essências que transpassam sua pele em seu pescoço e morder cada pedacinho seu. Carinhosamente, claro.

A loira acorda, lentamente se espreguiça esticando os braços para cima e curvando o pescoço para trás.

— Não tem como ser menos gata, Mischa?

— Tirando que não posso dormir 17h por causa da minha rotina agitada, não posso ser menos felina que isso. – Continua se alongando e conversa de olhos fechados.

— Gente, gatos dormem tanto tempo assim? Impressionante.

— Ser bela cansa. – Ela olha para mim e sorri, contendo o riso.

— Rá, sei bem isso. Falando nisso, que animal acha que eu sou?

— Um cão.

— Nossa, que triste.

— Um cão da melhor espécie, Andy.

— Cão ainda continua a ser aquele que obedece e confia demais, mesmo se fizer mal a si próprio. Se melhor ou pior, um cão é super dependente e emotivo…

— Esqueceu que são ótimas companhias, fortes, destemidos, trabalham bem em equipe e se preocupam com seu dono. – Mischa para de se alongar e se levanta. – Sabe que tenho que ir o aeroporto, né? Não me olhe assim, é pior do que se atirar aos meus pés me pedindo para não ir.

— Não é isso – balancei a cabeça negativamente –. A questão é: você é minha dona?

— Andressa, são apenas metáforas. Não leva para o pessoal, meu amor.

— Não me sinto ofendida, apenas quero saber. Por mim, que sejamos ambas donas uma da outra. Eu, de uma gata super linda, maravilhosa, carinhosa, atenciosa e independente com tanto brilho que ofusca… E você, dona de um cão atropelado, super fiel, da melhor espécie, dependente e preocupado.

— Ah, nesse contexto! Claro, sou sua dona. Prometo me esforçar para dar tudo que meu cãozinho precisar. – Piscou o olho para mim, sorrindo. – E sou sua, precisarei de seus cuidados também.

— Prometo dar o espaço e liberdade que minha gata necessitar. – Minha voz está um pouco desanimada. Claramente porque Mischa vai embora; a vejo vestindo o poncho vermelho e pegando sua bolsa.

— Andressa, sabia que adoro seus olhos?

— Por que são verde-azulados?

— Eles brilham, como uma joia. Na primeira vez que nos vimos, sério, me apaixonei por eles e muitas vezes evitei olhá-los porque parecem ler minha minha mente. Eles também têm as cores do mar mais límpido – aproxima-se de mim e me beija carinhosamente –. Sentirei sua falta. No entanto não se preocupe, no final de semana que vem voltarei e ficarei mais uns dias por aqui. Portanto se cuida direitinho, hein. Qualquer problema que houver me avise sem hesitar. Ligarei perguntando ou mandando áudios chatos no Whatsapp.

— Com toda certeza cuidarei bem de mim e darei notícias, Mischa. – Sorrio e a abraço forte. Inspiro fundo para sentir o máximo de seu perfume. Sou muito grata por tudo que aconteceu.

Ela fecha a porta mandando um tchau e sei que tenho que deixá-la ir, por mais que doa.

Meus dias no hospital passaram-se rapidamente. Meus avós maternos, Liam e Anne Hayes, me visitaram. São jovens como minha avó Catarina Hoffman – cerca de 60 a 65 anos –, a diferença é que esta possui muito mais simpatia e energia. Não sei o que é, amo os dois mas ambos são muito conservadores, rígidos e fechados na própria intolerância. Reprovaram minha atitude, embora deixassem claro que só o faziam pelo meu bem. Parece que quase ninguém ao meu redor que conheceu minha mãe consegue parar de apontar minhas semelhanças com ela. Vovó Anne não parava de falar sobre a gravidez acidental de mamãe e vô Liam parecia farto de toda a tensão gerada, deixava claro que eram memórias inconvenientes. É triste pensar que até hoje esse conflito é arrastado por tantos anos e até hoje eles repelem meu pai, como se a culpa da morte de minha mãe fosse dele. Tios de todas as partes também me visitaram e alguns primos também. Pareceu um velório, de fato.

Fui para casa, eu poderia andar e tudo mais só que sem fazer nenhum esforço físico pesado por pelo menos um mês. Para não fica sedentária, fiz algumas caminhadas leves pelo bairro, alongamentos específicos e exercícios com os braços. Papai voltou a falar comigo no mesmo dia em que cheguei em casa, cozinhou para mim, um de seus hobbies que pratica com perfeição, e ainda faz tudo que eu peço sem pensar duas vezes. É terça-feira e o final de semana parece muito longe.

— Filha, está tudo bem? Precisa de alguma coisa? – Christopher Hoffman aparece na minha frente, de camisa social azul escura, calça social preta e segurando uma caneca de café. Ele é muito lindo, a barba por fazer lhe dá um charme que o próprio não percebe e seus cabelos mais compridos que o normal o torna ainda mais belo.

— Pai, você entrou na minha frente.

— O que tá assistindo?

— F. R. I. E. N. D. S.

— Adoro essa série. – Encarando-me com seus simpáticos e olhos azuis acinzentados, ele dá um sorriso que deixa à mostra seus dentes brancos, que devem ter passado por tratamento ortodôntico devido o encaixe tão perfeito. – Sua mãe também gostava.

— Sei que posso soar apática, mas já não aguento ser sombra da mamãe. Pai, sinto muito… Mas é o que eu penso de verdade. Quero ser sincera contigo, com muitas coisas inclusive, mas isso é algo que preciso te dizer com urgência.– Eu saio da posição esparramada pelo sofá para me sentar. Dou uma batidinha no lugar ao meu lado, olhando para papai com expressão séria. Ele senta do meu lado.

— Desculpa, filha. Eu deveria ter percebido que essas comparações são das mais absurdas. Sem contar que se esse pirralho do Kevin fosse como eu, nunca teria te abandonado ou incentivado que cometesse um aborto!

— Não queria que tocássemos só neste assunto do aborto e do idiota do meu ex-namorado. Também fui idiota, você lembra da conversa que tivemos quando cheguei da internação para nossa casa?

— Claro, eu lembro.

— Pois bem, eu te esclareci tudo. Falei tudo que podia dizer sobre o relacionamento entre mim, Kevin e o feto.

— Sim, fiquei dois dias sem conseguir comer direito de tanta raiva e… Sobre o bebê, filha, acho que mesmo que eu não seja religioso, pareceu que houve uma colher de chá divina para sua situação. Você poderia ter morrido, eu me desesperei demais enquanto te levava para o pronto-socorro. Também ouvi do cirurgião que seu feto não sobreviveria de qualquer maneira.

Karma, divindade ou acaso… Seja como for, eu aprendi muitas lições, papai. Por exemplo, por que ficamos com quem não gostamos só por comodidade, só por aparência? Por que achamos que seja inútil lutar ou esperar por um amor verdadeiro e recíproco?

— Não sei você, mas nunca deixei meu amor morrer encalhado na praia. Sei que atualmente não busco mais ninguém, mas é que até hoje a presença de sua mãe me faz muita falta. Faz seis anos que ela faleceu, já tenho meus trinta e sete, e sei que ela ocupa um espaço na minha vida que não é substituível por ninguém mais.

— De fato, ela era única. Para os espíritas, ela ainda é; algo que também prefiro acreditar. Papai, é lindo o que o senhor disse e tudo mais, só que duvido muito que uma pessoa tão incrível, amorosa e livre como mamãe impediria que você buscasse outro alguém. Ninguém é insubstituível, mesmo que sejamos únicos e incomparáveis. O que realmente acredito é que a ligação existente entre você e ela veio de muitas outras vidas passadas e isso de fato é um grande vínculo de amor e confiança… Mas a ponto de fechar seu círculo de relacionamento, não faz sentido.

— Não sabia que minha filhinha já é caxias dos conhecimentos religiosos. Bem, talvez esteja certa sobre isso. Sua mãe nunca teve ciúmes de mim, sempre fomos confidentes e respeitosos um com o outro. Talvez ela realmente pense que eu tenha que me libertar dessa ideia fechada…

— Pode apostar que sim, papai. Agora, mudando de assunto mas nem tanto, já chega de me fazerem de sombra da Viviane Hayes, mais conhecida como mamãe. Você já aprendeu a lição, agora repasse para meus avós maternos, não suporto mais as comparações.

— Eu?! Mas por que eu que tenho que dizer isso para seus avós Hayes?

— Sem medo! Vocês têm um conflito para dissolver e você é o melhor para transmitir essa mensagem por mim.

— Bem… Parece que não tenho escolha a não ser aceitar essa missão.

— É pegar a quest e ver seriado comigo, ou pegar a quest e parar de entrar na minha frente.

Papai sorri para mim, bagunça meu cabelo com a mão esquerda e vai para seu quarto com sua caneca de café. Quer dizer que ele vai fazer o que eu pedi, super fofo.

Passa algumas dezenas de minutos e o interfone de casa toca. Vou atender e me surpreendo com a voz alegre, vibrante e entusiasmada.

— Andressa? Aqui é a Larissa. Vim te visitar, migaa!

Saio correndo destrambelhadamente em direção ao portão de casa, que dá de encontro ao jardim, abro o portão e pulo no pescoço de uma mulher pouco centímetros menor que eu, com cabelos loiros escuros e de olhos verde-esmeralda.

— Se você não estivesse magrela assim, eu estaria no chão a essa hora. – Larissa me abraça enquanto estou suspensa em seus braços envoltos na minha cintura e depois me põe no chão.

— Cala boca, você me amaaa! – Aperto suas bochechas e ela mostra a língua enquanto envesga os olhos.

— Novidades, além das mesmas tretas tradicionais? Mischa, Kevin, seu pai, seus avós, Jesus, Deus e o mundo?

— Entra, que no quarto é melhor para a gente conversar. Muiita coisa para falar, te prepara.

— Lá vamos nós! – Ela finge uma voz de desânimo mas no fundo está muito curiosa para saber de mim. Sua pele é branca e um pouco bronzeada porque pratica tênis. Rosto belo, simétrico, com nariz perfeito, que parece ser esculpido em mármore, e sobrancelhas muito bem feitas e bonitas, super patricinha.

Minha suíte é bastante espaçosa com cama King Size, grande armário embutido feito de madeira de ipê, mesa de estudos, mesa de computador, muitas prateleiras com bichos de pelúcias, um aparelho de som perto de um enorme espelho feito para a prática de balé e um banheiro grande com banheira de hidromassagem. Larissa, que usa um top, um xale de crochê, shortinho jeans e botinas de camurça preta, senta na minha cama e deixa suas pernas esticadas até o chão, um pouco abertas. Não faz questão de deixá-las juntas ou cruzadas, decide por fazer um gesto bastante masculino. Seu corpo é impressionantemente magro e bem torneado. Rio.

— Sapatão.– Sento-me ao seu lado direito.

— Não sou eu que estou apaixonada por uma menina.– Larissa põe uma mecha de cabelo atrás da orelha direita e me olha com tom de deboche.

— Mischa é mais que uma menina, se ela fosse um cara eu também gostaria dela.

— Ahh, não me diga. Lá vem o papo da reencarnação.

— Sua chata, para de me zoar. Você sabe que não tenho preferência de gênero.

— Também não tenho e compreendo seu drama, Dessa. Nós somos gatas e legais para caralho e nos apaixonamos por quem menos deveríamos.

— Ei, calma lá. Prima de terceiro grau é um quarto dos genes de um irmão. Ou seja, você ainda está na pior! Sem contar que seu irmão não se interessa nas suas investidas, ainda bem, nem creio que você o ame.

— Cruel essa, hein, Andressa. Talvez eu não ame romanticamente meu irmão e seja só atração doentia, mas nem ligo. Vou quebrar a cara, porque sou de conhecer o mundo.

— Doentio é pouco, amiga. Às vezes não é preciso quebrar a cara, Lari, você pode parar antes de cometer erros.

— Sua conversa moralista me impediria? – Olha para mim com suas sobrancelhas levantadas, irônica. Tão malvada, linda e inteligente. Ela está segura do mundo, mas o mundo não está para ela.

— Amo você, mas por que tem que ser tão difícil e cabeça dura, miga? – Suspiro.

— Também amo você, Dessa. Somos muito parecidas quanto a ser cabeça dura e fazer merda, para com essa hipocrisia meu amor.

— Eu mudei, okay. Muita coisa mudou! Enfim, acho que por mais que eu queira não posso impedi-la e olha que tentei muito. Qualquer coisa que precisar você sabe que pode contar comigo, né?– Ponho minha mão sobre seu ombro.

— Tá, tá. Claro que sei que posso contar contigo e você comigo. Não à toa somos amigas desde a infância. Agora quero que me conte sobre as tretas, bem detalhado hein.

— É para já.

A tarde se torna muito agradável e nada como o conforto de uma amizade tão sincera, por mais absurda que pareça. No fundo eu sinto pena de Larissa por se sentir tão confusa com o próprio irmão, mas também me imagino numa situação parecida com Mischa… Afinal não deixamos de ser parentes. Liberdade, por que tão paradoxal? Há coisas que por mais que seja melhor reprimirmos não conseguimos controlar; isso se aplica aos desejos incestuosos. Precisamos de luz para nos guiar no caminho que for melhor para todos e não apenas ao nosso ego. Assim, se por um acaso Mischa não suportar esse conflito é meu dever compreender.

Realmente, mudei bastante.