O resto do dia passou como um borrão. Não esperei Rachel terminar a música, aliás, nem seria preciso, tenho certeza de que ela foi selecionada para o Glee Club. Meu pai sempre soube do talento dela, e não é uma questão de nepotismo: Rachel é muito boa.

Com relação a meus recém descobertos sentimentos, não restava nada a confirmar, nunca estive tão certo de algo em minha vida quanto a certeza de que sempre foi ela, ela sempre esteve aqui. E agora estou preso nesse clichê de comédia romântica: garoto-namora-garota-legal-mas-ama-melhor-amiga-que-ama-popular-idiota.

Quinn. Não consigo nem pensar em como agir.

Adoraria dizer que me esgueirei pra fora da escola o mais rápido possível assim que o sino tocou, mas não foi isso que aconteceu. Embora eu de repente estivesse preso nesse clichê de filme adolescente, isso é a vida real, e na vida real a gente não pode simplesmente sumir, eu tinha compromissos a cumprir. E um desses compromissos era o de levar Rachel e Quinn em casa. Ambas.

Quinn já estava parada próximo ao meu carro quando cheguei, suas duas amigas idiotas em volta dela. Quinn me abraçou quando cheguei, e dei um beijo em sua testa. As amigas idiotas saíram com seu olhar julgador (provavelmente conversando telepaticamente sobre o quanto Quinn estava desperdiçando sua juventude ao meu lado). Estava terminando de fechar a porta do carro para Quinn quando uma força descomunal chegou me abraçando pela cintura. Rachel.

“PASSEEEEEEEEEEEEEEEI!!!!” – Ela pulava, me levando junto. Eu me virei de frente para ela, tentando dizer que se acalmasse, e ela se jogou no meu pescoço, ainda pulando, me contando tudo de uma vez sobre como o teste tinha sido “espetacular, embora o talento dos outros concorrentes nem chegasse aos pés dela”, coisa e tal. Nossos rostos não ficaram próximos, Rachel é mais baixa que muitos seres humanos normais. Ela olhava “para o além”, coisa que sempre faz quando tagarela sem parar. E eu, abraçando-a pela cintura, a olhava pela primeira vez na minha vida, novamente. A primeira vez em que Rachel não era minha de todas as formas que eu desejava.

“Bem vinda à equipe.” – Quinn disse, colocando a cabeça para fora do carro. Rachel continuou agarrada ao meu pescoço, esse tipo de proximidade sempre foi comum entre nós, e sei o que ela pensava: que não ia parar de ser assim só porque eu estava namorando. Mesmo que Quinn a estivesse quase fuzilando com os olhos.

Minhas mãos saíram automaticamente da cintura dela.

“De nada.”- ela disse, se soltando de mim, e parecendo um pouco envergonhada.

“Rach... essa é a Quinn, minha namorada. Quinn, minha amiga Rachel.”- eu as apresentei. Rachel estendeu a mão, sorrindo, e Quinn a apertou ainda com o olhar fuzilante. Só então Rachel pareceu perceber que Quinn estava sentada no lado do carona. Foi a vez de ela me fuzilar com os olhos.

Fui rapidamente para o lado do motorista, enquanto Rachel ocupava um dos assentos de trás. O resto da viagem continuou sem diálogo algum.

Quinn não disse nada quando a deixei em casa. Deixei Rachel em casa primeiro, e em seguida fui levar Quinn, que só desceu do carro, me fuzilou novamente com os olhos, e entrou em casa. Fui direto para o trabalho, como de costume.

Não somos ricos. Tendo dois pais professores, não posso me dar ao luxo de somente estudar. Trabalho na antiga loja de discos desde o primeiro ano. Não costuma ter muito movimento, os discos são itens de colecionador, e de vez em quando aparece alguém querendo negociar. Tenho jeito para os negócios, segundo a senhora Apple, minha patroa. O marido abriu a loja muitos anos antes, quando vender discos era algo rentável. Depois que ele se foi, a senhora Apple precisou de alguém para ajuda-la, e foi ai que eu entrei. A loja tem um piano nos fundos, e eu costumava ter lições com a senhora Apple quando era garoto. Ela precisava de um funcionário, eu precisava de emprego. Casamento perfeito.

“Lionel Richie, han?” – Rachel diz, tomando o disco da minha mão. Estava terminando de limpar os discos, distraído como sempre.

“Clássicos não morrem.” – Digo a ela, tomando o disco de volta – “E como é que você já descobriu o endereço do meu trabalho?”.

Estamos sozinhos na loja. A senhora Apple fica aqui pelas manhãs, e quando eu chego, ela vai pra casa. Tenho a chave da loja, sou o encarregado de fechá-la. Depois do expediente, costumo passar algumas noites tocando piano.

“Não é difícil encontrar o endereço da única loja de discos de Lima, Ohio.” – ela diz, mexendo um outro disco, que tiro de sua mão e recoloco no lugar certo. Esses discos são bem frágeis e valiosos – “Precisava conversar com você sobre uma coisa.”.

“Deixe-me adivinhar: sobre o quão lindos os olhos do Hudson ainda estão?” – desdenho, indo em direção à porta da loja, pois já está na hora de fechar.

“Também, mas isso fica pra depois.” – Rachel diz, enquanto termino de trancar a porta por dentro. Viro-me na direção de sua voz, e ela está sentada no piano. Sento-me ao seu lado.

“Sua namorada. Porque ela ficou me olhando daquela forma esquisita?”

“Talvez porque você pulou em cima do namorado dela na frente da escola toda?” – digo, erguendo as sobrancelhas, e Rachel faz biquinho.

“Qual é, a gente não é assim, somos quase irmãos!”

“Não somos irmãos.” – digo, mais rápido do que o necessário. As palavras simplesmente saem da minha boca.

“Quase irmãos.” – Rachel completa – “Qual é Jesse, não vou mudar meu jeito com você só porque aquela garota quer!” – eu sabia que ela teria essa reação. Continuo conhecendo-a mais do que ela mesma se conhece – “ela te conhece a quanto tempo, 2 anos? Te conheço a minha vida toda!!!” – ela continua fazendo bico, como se ainda fosse uma garotinha ciumenta. Ela nunca irá admitir, mas tem ciúmes de Quinn. Ela sempre teve ciúmes de todos os meus amigos.

“Não precisamos mudar nada.” – digo, enquanto coloca uma mecha do seu cabelo atrás da orelha – “só... tenta mudar um pouquinho na frente dela, tá?”

Ela rola os olhos. “Tá.”

“Então, tenho que fechar a loja.” – digo. Ela continua sentada no piano.

“Ela já está fechada. Aliás, não vim aqui só por causa da conversa. Preciso explorar seu talento de pianista prodígio.” – ela diz, e só então reparo na pasta que está carregando: são suas partituras. Como ótima artista que é, ela imprime as partituras de suas músicas favoritas, e as levo consigo quando vai a algo relacionado com música. Certamente Artie estava usando uma delas hoje, quando ela cantou “on my own”. Ela retira duas folhas, e as coloca no piano.

“Quero começar a ensaiar esse dueto. A voz de Finn é perfeita para essa música, e vou mostra-la ao senhor Schuster já na próxima reunião. Tenho certeza que Finn e eu vamos conseguir todos os duetos!”

Leio o título da música. É de um de seus musicais favoritos: Spring Awakening.

“Então não seria mais fácil usar uma música que o garoto conheça?” – musicais da Brodway não são tão famosos quanto Rach pensa que eles são.

“A graça está, meu querido, no tempo em que eu vou passar ensinando a ele essa canção.” – ela pisca para mim, como se tivesse tido a ideia mais esperta do mundo. Balanço a cabeça, e apenas começo a dedilhar a melodia.

Música: Spring Awakening – The Guilty Ones

Vídeo: https://www.youtube.com/watch?v=0IFo0rJIxHI

Rachel canta a primeira parte, totalmente envolvida na canção. Está de olhos fechados, e não pode ver a forma como olho pra ela. Está ali, em seu rosto, o brilho, a alegria que só a música traz a ela. Rachel sente a canção como se fosse parte de si mesma.

RACHEL
Alguma coisa louca começou
Doce e desconhecida

Algo que você pegou
Em uma caixa na rua
Agora anseia por uma casa

E quem é que pode dizer o que são os sonhos?
Me acorde na hora de ser solitário e triste
E quem é que pode dizer o que somos nós?
Essa é a estação para sonhar

E agora nossos corpos são os culpados
Por tocar
E colorir as horas

Noite não respire
Oh como nós
Caímos em silêncio, do céu
E sussurramos algumas respostas prateadas

E sussurramos algumas respostas prateadas

A primeira parte está agora no fim do instrumental. Minha cabeça está fervilhando com umaideia que sei que estragará tudo, sei que tudo irá mudar a partir dai. Mas não consigo controlar minhas emoções.

“Essa é a parte em que o parceiro canta, então você pode só dedilhar o instrumental, eu sei a parte em que...”

Praticamente interrompo Rachel quando começo a cantar.

JESSE
O pulso acelera
Tudo se encaixa e começa
Janela por janela
Você tenta e consegue olhar para
Este ''novo em folha'' que é você

E quem é que pode dizer o que são os sonhos?
Me acorde a tempo de estar lá fora, no frio
E quem é que pode dizer o que somos nós?
Essa é a razão pela qual sonhamos

Rachel me olha admirada, não somente porque eu conheço a letra da música. Mas também porque esta é a primeira vez em que eu canto para ela.

Sempre fui muito tímido. Meu pai sempre foi um cara ligado à música, um exigente treinador do Glee Club. Minha melhor amiga no mundo sempre transpirou talento musical. A verdade é que eu sempre me senti intimidado, e por isso me concentrei no piano e nas aulas de dança. Ninguém nunca me ouviu cantar, nem mesmo o meu pai. Nem mesmo Rachel, para quem eu conto tudo.

A música tem agora um trecho em que cantamos juntos. Não sei se é a minha visão distorcida do planeta, por conta do que sinto por ela, mas nossas vozes se encaixam perfeitamente juntas.

AMBOS
E agora nossos corpos são os culpados
Nosso toque
Vai encher cada momento

Enorme e escuro
Oh nossos corações
Vão murmurar o blues do alto
E então, sussurros prateados

E agora nossos corpos são os culpados
Por tocar
E colorir as horas

Noite não respire
Oh como nós
Caímos em silêncio, do céu
E sussurramos algumas respostas prateadas

Rachel continua me olhando impressionada, enquanto termino de dedilhar a melodia da canção.

"Como você sabia a letra dessa música?" - É a primeira coisa que me pergunta.

"Eu só li as partituras, Rach."

"Não, não mesmo! Uma coisa é saber ler partituras, Jesse, outra bem diferente é saber a entonação exata, cada respiração e cada parte de uma música!" - Ela me lança verdades incriminatórias, e não há como negar, por mais que eu queira. Sou forçado a admitir que assisti ao musical favorito dela, sem que ela soubesse. Sou forçado a admitir que tudo o que a interessa é importante pra mim, desde sempre.

"Eu assisti Spring Awakening algumas vezes... muitas vezes." - digo, e completo quando ela me olha com aquele olhar de que minhas primeiras palavras não haviam bastado.

"Jesse, a sua voz é incrível! Porque nunca cantou antes? Você precisa fazer parte do Glee Club, nossas vozes são perfeitas juntas! Tenho certeza que conseguiríamos todos os duetos. Na próxima reunião eu falo com o seu pai e...." - ela solta sua habitual torrente de palavras. Preciso interrompê-la antes que se empolgue mais ainda.

"Hey, hey, calma! Ninguém vai falar nada pro meu pai, está bem? Não quero fazer parte do Glee Club. E não quero que ele saiba que eu canto."

A verdade é que eu gostaria de participar do Glee Club, mas nunca o fiz por diversos motivos. Quando pequeno, eu era extremamente tímido, um dos motivos que colaborou para que eu só tivesse Rachel como amiga. Isso melhorou depois que Rachel foi para o Canadá e meu pai me colocou nas aulas de dança. Mas ai veio o Ensino Médio, com o Senhor Schuster sendo o treinador do Glee Club. Já não bastava ter meu pai como professor de Espanhol, se entrasse no Glee Club, eu tinha certeza de que apanharia no primeiro solo que conseguisse, que os alunos certamente não achariam que havia sido por merecimento meu. Então eu preferi me manter distante. Meu pai sempre foi um apreciador das artes e incentivador dos talentos naturais, então eu tinha plena certeza de que se soubesse da minha voz, me colocaria no Glee mesmo que contra a minha vontade. Então, eu preferi esconder essa parte dele.

Explico essa história toda à Rachel. Ela faz seu biquinho de aborrecida, mas seu olhar diz que ela me entende. Me dá um beijo na testa, e vai embora.

Minha testa queima como nunca antes queimou em toda a minha vida.