Akuma No Riddle: Nove Anos Depois

Capítulo 1 - Paz, Ilusória Paz


***POV TOKAKU***

O corpo de Haru, estirado, sem vida, no chão. Sangue escorre do abdômen, peito e braços. Uma figura misteriosa, sem rosto, está postado ao lado dela. Apesar das trevas que ocultam sua expressão, sei que se trata de olhos zombeteiros. Sei que está rindo de mim. A faca na mão direita pinga sangue sobre o rosto vidrado de Haru. O sentimento de perda, desespero, angústia, se mistura a um ódio incontrolável e uma sede de sangue que nunca pensei ser capaz de sentir antes.
- Eu vou te matar – sussurro, erguendo a faca. Mesmo sem poder ver a expressão do meu adversário, sei que, silenciosamente, ele me provoca, me desafia a atacá-lo.

E de repente, tudo desaparece. Mãos suaves tocam-me os ombros, enquanto aquela voz já há muito conhecida diz:
- Tokaku-san? Tokaku-san, acorde...

Levanto o corpo tão rápido que quase choco minha cabeça contra a de Haru, como naquela vez há dez anos, quando Isuke tentou envenená-la. Meu peito sobe e desce. Estou suada e ofegante, como se tivesse acabado de correr uma maratona. Tudo parece girar ao meu redor, me dando vontade de vomitar. Merda.
- Ichinose – murmuro, olhando firme em seus olhos. Como naquele momento logo depois de desarmar a bomba de Shuuto Suzu.
- Sonho ruim? – pergunta ela. “Você nem imagina”, respondo em pensamento, mas me levanto sem dizer nada e vou para a porta de vidro da varanda.

Haru se licenciou em Ciências Biológicas pela Universidade de Tóquio há dois anos. Agora, faz 18 meses que está se especializando em Biologia Marinha. Enquanto ela estuda, eu trago o dinheiro trabalhando como segurança em um shopping e fazendo bicos como guarda-costas de quem pode pagar. Também ganhei alguns campeonatos amadores de tiro ao alvo e de luta de rua por um dinheiro extra. Agora, Haru está na reta final da sua especialização e então finalmente poderá ter uma carreira estável.
- Está tudo bem? – ela parece preocupada.
- Sim, sim. Não se preocupe.

Não temos uma vida luxuosa. Vivemos num pequeno apartamento no centro de Tóquio. Na verdade, é mais uma quitinete: uma cozinha-sala-quarto-área de serviço de 18 metros quadrados, uma varanda minúscula onde mal cabe uma pessoa e banheiro.
- Aquele quarto da Academia Myojou faz falta, não faz? – comento. “Por outro lado”, digo comigo mesma, “lá tínhamos camas individuais. Aqui, não”.
- É, mas lá as camas eram individuais, não é? – replica Haru, divertida, como se lesse meus pensamentos. Seus braços me envolvem num abraço confortável e delicioso, que não quero que acabe nunca. Suas mãos repousam suavemente sobre meu abdômen e sinto sua respiração tranquila no meu pescoço. Conforme manda a paz do momento, me viro para a garota e dou-lhe um beijo profundo nos lábios.

Faz nove anos que a Classe Negra terminou. Após eu ter tentado matá-la, o clã de Haru concluiu que eles se enganaram e que ela era apenas muito sortuda, mas não possuía nenhum poder de manipulação. Portanto, estava livre do destino que lhe tinha sido designado desde a infância.

Não faço ideia de quanto tempo dura esse beijo. Um minuto? Uma hora? Queria que fosse eterno. Gostaria de poder viver apenas assim e apenas disso. Me lembra aquilo que Sagae falava sobre o destino. Como era sua frase, mesmo? “Todas somos vítimas do destino”, talvez? Hm...
- Vou fazer algo pra gente comer.
- Tem curry? – Haru revira os olhos, com aquele sorriso que eu adoro.
- Sim, tem.

***POV HARU***

Tokaku-san sonha com essas coisas ruins, às vezes. Me preocupa um pouco. Sempre tentei me mostrar o mais otimista possível, mas é fácil ver o quanto esses pesadelos a afetam. Já escutei ela falando palavras soltas enquanto dorme. Coisas do tipo “vou te matar”, ou lamentações, ou meu nome. Até já chorou, uma vez. No começo, quando viemos morar juntas nesse apartamento, me assustei de tê-la ouvido dizer algo assim. Não é sempre que acontece, de qualquer forma.

Não tem muita coisa em casa. Alguns bentôs de supermercado, uma cesta de pães, o tapoer de curry de Tokaku-san, duas garrafas de água gelada, um pote de sorvete e alguns bifes de peito de frango no congelador. Coloco dois bentôs no micro-ondas e volto para os meus livros.

O apartamento é mobiliado com uma tevê pequena na frente da cama de casal, uma mesa de latão com duas cadeiras, um sofá de cor vermelha, e uma escrivaninha cheia de livros na parede da porta. Estivera estudando para preparar meu último trabalho da especialização quando percebi que Tokaku-san estava tendo outro pesadelo.

Me deito com um livro chamado “Um Estudo Profundo da Vida Marinha do Oceano Pacífico”. Capítulo 66, página 328. Leio várias vezes a mesma linha, sem perceber. Ainda estou preocupada com Tokaku-san.

***POV TOKAKU***

Haru se deita no sofá com outro de seus livros logo após colocar dois bentôs no micro-ondas. Minha cabeça ainda gira, mas já me sinto melhor. Vou para o banheiro lavar o rosto e as mãos. É janeiro. Está frio, mas preferimos manter o aquecedor desligado para economizar. Por isso, dormi com duas meias, calça de moletom e camisa de lã, tudo de cor cinza.
- Porque você usa cores tão frias? – costuma reclamar Haru, ao que respondo com o silêncio ou um olhar sem significado específico.

A água congela meus dedos e rosto, mas era algo que eu estava precisando. Me sinto mais focada, agora. Escuto o apito do micro-ondas logo ao lado.

Depois de comer, Haru volta para os seus livros. São 7 em ponto. Ela se deita no sofá com a cabeça apoiada nas minhas pernas. Repete baixinho algumas palavras. Deixo escapar um ligeiro sorriso observando sua expressão de concentração. Acaricio seus cabelos com uma das mãos, enquanto a outra repousa em seus ombros. Sinto uma vontade enorme de beijá-la. Um impulso similar àquele que senti 9 anos atrás, quando decidi protegê-la das outras 11 “estudantes” da Classe Negra.

Não posso resistir a um impulso assim.

Haru retribui naturalmente, quase como se esperasse pelo meu movimento. Sinto seus dedos na minha nuca, brincando com meus cabelos curtos.

***POV HARU***

Tokaku-san sai para o trabalho pouco antes das oito. Então, fico sozinha em casa até ela voltar para o almoço, logo após o meio dia. Ela sai mais uma vez uma da tarde, que é quando eu vou para a faculdade. Depois disso, só voltamos a nos ver às 8 da noite. É assim de segunda a sábado.
- Vou indo. Até depois – diz ela, se levantando. Pretendia estudar do momento que acordasse até quando pusesse os pés na faculdade, mas... bom, digamos que essa última hora, com Tokaku-san acordada, não saiu como o previsto. Agora tenho cerca de 5 horas.

Ainda sinto o cheiro de Tokaku-san impregnado em mim. Não consigo me concentrar. Aquele cheiro forte... não, foco. Aquela expressão e atitude fria, que não condizem em nada com... caramba, Haru. Você não quer terminar sua especialização? Lê o livro! Mas de repente, kanji parece tão difícil de entender...