After Ever After-Interativa

Chapter XXXV - Solidão e Insegurança


Rosetta Foxy Beasty

“Heeey, Rose! Lanche no shopping às cinco comigo e com Rosemarie??” – Pearl

“Desculpa, não vai dar :s já tinha coisas planejadas >.< Mas divirtam-se!”– Rosetta

“Ok, fica para a próxima ;)” – Pearl

Na realidade, a única coisa que eu tinha planeada era uma tarde apaixonada entre mim e John Watson, enquanto relia pela milésima vez o meu livro favorito de Arthur Conan Doyle. Mas isso me pareceu o suficiente para recusar o pedido.

A verdade é que sair com as filhas herdeiras de duas das princesas mais famosas tem as suas desvantagens. Pearl é conhecida por toda a cidade pois os seus pais são extremamente influentes nos negócios do reino, e Rosemarie é simplesmente aquela menina querida que todos adoram. Não podemos dar um passo no centro da cidade ou no shopping sem aparecer alguém a dizer “Rosemarie, é você? Ah, querida, está tão crescida e bonita! Como está a Aurora? Já não a vejo há imenso tempo!” ou “Pearl, não consigo agradecer o suficiente ao seu pai pelo favor que nos fez! Sem ele nunca poderia ter visitado a minha família no Natal passado! Ah, benditas as viagens de barco low-cost!”(e sim, há mesmo que diga coisas como esta à filha do oficial da marinha).

Mas o pior de tudo é quando algumas dessas pessoas também me tentam incluir na conversa. “E esta menina quem é? Parece-me familiar!”, ao que Rosie ou Peral respondem simpaticamente, “É Rosetta, filha de Belle e Adam!”. “Ah sim, claro! Aquela que quebrou o recorde de vitórias no concurso de soletração nacional, não é?”, e eu acabo por ter de dizer: “Não, essa foi a minha irmã”. E instala-se um momento tenso, que por vezes me apetece prolongar dizendo: “Eu sou só aquela que quase chora de medo sempre que vê uma galinha ou um pato”. Aí Pearl e Rosie fazem seu melhor para mudar de assunto rapidamente.

Não me entendam mal, eu gosto muito de ambas as meninas. Aliás, não há ninguém na escola com quem me dê melhor – exceto a minha irmã, claro. O problema é que estar em espaços públicos com elas é como usar um manto da invisibilidade, e nem sempre me sinto com disposição para tolerar isso.

Como hoje, que tudo o que quero é imaginar que se John Watson estivesse aqui neste momento me iria compreender como ninguém e que quereria casar comigo à primeira vista.

Suspiro.

Não passam nem dez minutos e ouço alguém bater à porta do meu quarto.

— Entre!

— Querida, seu pai e eu vamos então sair. Tens a certeza de que não queres vir? – Pergunta minha mãe da porta do meu quarto.

— Não obrigada. Já tenho o que fazer – respondo apontando para a capa do livro que tenho nas mãos.

— Muito bem. Até logo então – diz, com um sorriso compreensivo e fechando a porta em seguida. No entanto, abre-a novamente colocando só a cabeça dentro do quarto – Já que ficas sozinha em casa, não te esqueças de limpar o pó das estantes da Ala Leste – e desaparece, fechando a porta rapidamente, não me dando tempo de contestar.

Resmungo alto e descontente, escondendo a cara com o meu precioso livro. “Parece que vamos ter de deixar isto para mais tarde, John”, penso para mim, acariciando a lombada e colocando o marcador na página em que fiquei.

Dirijo-me ao meu armário para vestir uma roupa mais prática para limpar, substituindo o vestido florido que coloquei de manhã por um par de calças desportivas e uma t-shirt simples. Apanho o cabelo num coque enquanto saio do quarto indo à procura do espanador e do pano do pó, não conseguindo evitar pensar que a paranoia da minha mãe em ser uma de nós a limpar a biblioteca ser um pouco estranha.

Depois de o meu pai voltar à forma humana – tal como conta a história –, aos restantes objetos animados da casa aconteceu o mesmo, e a minha mãe não conseguiu suportar a ideia de continuar a fazer deles empregados, pois considerava-os seus amigos. Por isso acabou por ter de contratar uma nova empregada recomendada pela tia Ella, Beatrice.

Mas a verdade é que, por mais bem recomendada que viesse, Belle French-Beasty não confia em ninguém se não em sua própria família para mexer na biblioteca que meu pai lhe ofereceu. Assim, de tempos a tempos (ou seja, quando a minha mãe bem entende) eu ou Scarlet somos obrigadas a cumprir a tarefa, e como estou sozinha em casa – a Scarly foi dormir a casa da Apple de ontem para hoje – parece que desta vez a azarada sou eu.

Raymond McFrog

Sete horas em ponto. As portas do restaurante abrem-se, e os primeiros clientes começam a entrar. Observo-os do lado de dentro do balcão, enquanto acabo de arranjar o meu uniforme, vendo várias das famílias mais famosas de Encantia ocuparem as mesas que haviam reservado. Seria mais uma bela noite de domingo no Tiana’s Place, o restaurante de minha mãe, não fosse o facto de Madison estar atrasada.

Outra vez.

A filha mais velha de Drizella Tremaine, a conhecida meia-irmã má, tem demonstrado o seu talento especial para não chegar a horas desde seu primeiro dia de trabalho no restaurante. A pior parte é que sobra sempre para mim cobrir a sua falta de profissionalismo.

Não que não goste de servir à mesa. Chega até a ser divertido, principalmente nas noites em que a família do meu pai está na cidade e nos vem fazer uma visita. No entanto, a noite de domingo é especial para mim. A única altura em que o pequeno palco do restaurante é só meu. A única altura em que a música está totalmente por minha conta. A única altura em que posso tocar o que quiser, quanto tempo quiser, sem que ninguém interfira ou opine.

Claro que a Madison acabou de arruinar isso. Outra vez. Não posso tocar enquanto ela não chegar, porque tenho de estar a servir às mesas, e o pior é que um atraso de Madison nunca é menos do que meia hora.

Dirijo-me a uma das minhas mesas, para começar a anotar os pedidos. Tento manter um ar acolhedor e simpático, acabando até por estar à conversa com o casal simpático da primeira mesa durante uns minutos. Descubro que são um casal de aventureiros reformados, e que escolheram Encantia para passar o resto dos seus dias, estando cansados de andar a viajar.

Depois de anotar os seus pedidos, volto para trás do balcão, gritando para a cozinha:

— Duas mini sopas especiais da casa, e um mini fondue de queijo para dois!

Viro-me para o balcão novamente, à procura dos mini copos para servir o vinho. Minha mãe passa por mim no seu vestido verde, em direção ao salão, e atira-me um beijo e um sorriso de desculpas por ter de me obrigar a servir à mesa hoje. Sorrio de volta, pois sei que a culpa não é dela. Por sua vontade, já teria despedido Madison há muito tempo, mas, sabendo as dificuldades econômicas que a família passa, nunca se atreveu a isso.

Dirijo-me novamente à mesa do pequeno casal simpático com as suas bebidas em mãos. Quando me preparava para voltar ao balcão, entra pela porta do restaurante a segunda razão para a noite de domingo ser tão especial para mim. A família da Cinderella entra, e guiada pela minha mãe, senta-se à mesa que lhes é reservada todo domingo à noite.

Procuro Royal com o olhar, ansioso por vê-la, e acabo por encontrá-la no mar de cabelos claros da família, sentada entre os dois irmãos gêmeos da família, William e Maximillian. Na linha de fogo, como ela mesma diria.

Na minha ânsia de ver Royal, acabo por tropeçar e quase cair em cima de um cliente enquanto me dirigia à mesa dos O’Crown.

— Peço imensa desculpa! — digo sinceramente. No entanto, Capitão Hook não parece acreditar a julgar pela cara de desaprovação que me faz, voltando-se novamente para os seus companheiros de mesa e contando alguma anedota nojenta sobre empregados de mesa desajeitados.

— Ray! — ouço a minha mãe chamar-me, do pé da mesa dos O’Crown para onde eu me dirigia, provavelmente também querendo me tirar da situação desconfortável que eu havia novamente causado. — Olha só quem chegou!

— Boa noite — cumprimento assim que chego perto da mesa, fazendo os possíveis para parecer calmo e não mostrar a tempestade de nervos que vai na minha cabeça.

A família retribui, uns mais sorridentes que outros, e Royal pergunta em seguida:

— Ray, não era suposto estares a tocar hoje?

Antes de eu sequer tentar formular uma resposta, minha mãe solta irritada:

— Se a Madison não estivesse atrasada outra vez! Todos os dias me pergunto porque é que ela ainda trabalha aqui.

— Desculpa Tiana. Tive esperança que ela passasse a ser mais responsável se tivesse um trabalho. Nunca pensei que tudo seria igual — diz Cinderella, colocando a mão no braço da minha mãe, com um olhar de arrependimento.

— A culpa não é tua, Cindy. Não és mãe dela. Se a culpa é de alguém, é minha, porque...

Não ouvi o resto porque Royal me chamou ao pé do lugar dela, puxando-me para me dizer ao ouvido:

— Não precisas de estar nervoso. Não é como se algum de nós te fosse morder — diz no seu costumeiro tom irônico, embora eu saiba que ela está a tentar fazer-me sentir melhor.

— Não estou nervoso — minto.

— Ah, desculpa, tens razão. Essa cara de parvo é a tua expressão normal.

— Quão simpática — eu noto, levantando minhas sobrancelhas.

— Quão idiota — ela devolve, tão delicada quanto uma pedra. — Ainda estou para perceber qual é o teu problema em conversar normalmente com as pessoas.

— Já escolheste o que vais comer? — pergunto, já sem falar ao seu ouvido, na tentativa der desviar a conversa.

— O de sempre — Royal responde.

— Macarronada outra vez? — Ela acena afirmativamente, fazendo-me revirar os olhos internamente com a falta de originalidade.

— Para mim também — diz Festus, sentado do outro lado da mesa.

Minha mãe parece finalmente acordar da sua conversa e pergunta a Cinderella e ao marido, Thomas:

— E vocês? Posso recomendar a sopa especial da casa? Foi o Ray que a fez hoje — diz, chegando perto de mim e apertando-me a bochecha.

Obrigado, mãe. Muito obrigado. Se eu já estava com a cara quente, imagino o meu aspeto neste momento.

Anoto os pedidos o mais rapidamente possível, e apresso-me a voltar para o balcão, gritando os pedidos para a cozinha, e tentando não ter um ataque de pânico. Acabo por sair pela porta das traseiras, para apanhar ar e estar um bocado sozinho. Ainda que adore os meus pais, prefiro que não falem comigo nestas alturas, porque sei que não compreendem. E porque é que haveriam de compreender? É quase antinatural para eles, pessoas naturalmente desinibidas e corajosas. Ao contrário de mim, que sou um grande covarde inseguro e fraco.

Respiro fundo algumas vezes tentando acalmar-me:

“Estás assim para quê Ray? É uma coisa normal. A tua mãe adora-te, é um gesto normal!”

“Eu sei mas…foi vergonhoso”

“Porquê? Por causa da Royal? Achas que ela se importa? Achas que vai gostar mais ou menos de ti por causa disto?”

“Não mas…”

“Então para quê tanto drama?! Sempre a ter pena de ti próprio! A chorar pelos cantos como se fosses um bebê!”

Com raiva dos meus próprios pensamentos descontrolo-me e dou um pontapé na parede do restaurante, arrependendo-me imediatamente. Agarro-me quase instantaneamente ao pé, para tentar diminuir a dor, mas sem qualquer sucesso. A única coisa que consigo é desequilibrar-me e cair no chão, mesmo a tempo de o meu pai abrir a porta por onde eu tinha saído minutos antes e dizer:

— A Madison chegou. Já podes — interrompe-se. — Que é que te aconteceu? — pergunta, vindo para perto de mim e estendendo-me a mão para me ajudar a levantar.

— Tinha-me esquecido que sou péssimo em futebol.

Meu pai entende a deixa como um pedido para não fazer perguntas e não comenta nada.

— Podes trocar de roupa. O palco está pronto.

Assinto, e entro novamente no edifício, dirigindo-me aos pequenos balneários da área de serviço. Troco de roupa rapidamente, colocando de novo a t-shirt com que tinha vindo para o restaurante e deixando o paletó com cauda que servia de uniforme para os garçons de lado. Pego no estojo do meu ukulele que estava do escritório dos meus pais, e levo-o comigo até ao salão. Dirijo-me ao pequeno palco onde o microfone já estava ligado e retiro o instrumento do estojo rapidamente, afinando-o enquanto me sentava no banco alto, no centro do palco. Dou uma olhada rápida ao salão, e apercebo-me que tirando o olhar interessado de Royal e do casal simpático com quem tinha falado antes, ninguém prestava muita atenção, e isso tranquilizou-me.

Não me lembro ao certo de como ou quando comecei. Só sei que assim que o fiz já nada mais importava. Já não queria saber dos possíveis olhares ou do que os outros estavam a achar. Era só eu e a música, tal como devia ser.