A Última Mordida

...o que a Morte pode unir


Charles Louis Marsh

Muitos afirmam ter sentido o pecado. No entanto, apenas o cometeram diversas e repetidas vezes, como um gramofone soando o mesmo disco de cera.

Eu senti. Eu o senti dentro de mim. O pecado tinha cheiro de carne. Carne morta mas, não carne podre, a ponto de ser confundida com carne viva. Cheirava a sangue prestes a coagular.

Tinha cor pálida, desbotada, contrastando com o escarlate encorpado de sangue. Soava como um silvo de uma serpente, como o som de criaturas da noite, como uivos de uma alcateia inteira, como um farfalho de morcegos ecoando por cada esquina e orifícios do castelo. Um pandemônio infernal que me deixa exausto, agonizando, e que, à beira de clamar pelo anjo negro da morte, eu podia, claramente, os confundir com sussurros penetrantes de uma voz maliciosa ecoando “fique comigo” ou “pertença a mim”.

Eu vi o demônio e ele era lindo. Eu vi o meu inferno, desci até ele antes de morrer, fiquei aprisionado e agora não consigo fugir. Agora eu estava incapacitado, isolado. A verdade havia sido exposta, assim como eu, e agora eu estava deitado ao lado do próprio diabo.

***

— Charles — Ouvi sua voz ecoar no quarto escuro, pisquei em busca de luz no ambiente mas, não obtive êxito.

— O que você quer comigo, demônio? — Finalmente respondo atordoado. Minha voz era rouca, débil.

— Você deve me achar muito cruel, egoísta. — James falava e se virou para meu lado. Embora eu não pudesse vê-lo, senti sua barba roçar levemente o meu braço.

— Você é mais que isso. Eu acho você uma praga se espalhando pelo mundo, uma erva daninha. — Disse eu, chorando. Raiva e dor se espalhavam pelo meu corpo de forma tão célere.

— Acho justo que pense isso de mim.

O silêncio se espalha pelo quarto, enquanto eu estou incapacitado de me mexer.

— Eu sou sádico, Charles. Só um tolo ousaria se aproximar de mim.

— Eu não me aproximei, fui convidado. Você me atraiu até aqui como um queijo em uma ratoeira. Diga-me, foi este teu plano o tempo inteiro? Foi isso que foste? Uma ratoeira prestes a decapitar a cabeça de alguém que procurava algo que te desse felicidade.

—Eu não sou isso, Charles. Eu sou espinhos, sou a escuridão. Catástrofe é o nome de meu coração, de minha alma. É o que eu trago em minhas mãos.

Eu aceno em silêncio. Em meus pensamentos, me pergunto: O que James pretendia com esse mero discurso?

— Você não possui uma alma. — Disse eu, por fim. — Você não é humano.

Seu rosto perdeu expressão. Mesmo sem vê-lo, eu podia senti-lo, havia uma empatia que me ligava emocionalmente com James, de modo que, eu sabia descrever perfeitamente suas expressões.

Sua mão se aproximava de meu peito e seu dedo ficava fazendo círculos em meu mamilo. Senti seus beijos.

— Eu quero ser amado, Charles. Apenas isso. O amor foge de mim como água me escapa entre meus dedos. Guardei-o em meu coração mas, o amor estava morrendo aos poucos.

— Como espera ser amado assim? Só me trouxe dor, medo e sofrimento? O que pretende me dando isso? O que pretende me dando isso, James? — Eu preencho o silêncio de sua mente com minhas perguntas ásperas.

— Eu só precisava provar seu sangue. Precisava saber que você era quem eu procurava incessantemente por séculos. E eu senti que você é a chave que abre todas as portas do meu mundo. Você é o veneno que o meus lábios sempre quiseram provar.

— James, por favor...

— Tempos atrás, eu perdi alguém, Charles... Alguém que eu amei... —James me interrompe bruscamente. Sinto que ele vai contar algo que é muito importante. Apenas fico parado, escutando-o. Teria eu outra escolha?

James havia sido um guerreiro, que havia se apaixonado por um nobre príncipe que estava prestes a noivar com uma donzela, um casamento para formar alianças de famílias para agregar valor monetário da família e ter uma grande força de exército. O príncipe havia abandonado sua noiva para ficar ao lado de James. Furiosa, a família da noiva havia formado um exército e teria atacado a família do jovem príncipe. A família inteira do príncipe havia perecido com a tragédia do ataque poderoso.

James, sabendo da possibilidade de perder seu amado, tentou reunir um exército mas, infelizmente, ninguém se dispôs a ajudar para que ele pudesse se reunir e lutar pelo seu grande amor. Para sua sorte, uma jovem moça havia aparecido. Ela fez um longo discurso.

Ela prometeu que se James recuperasse o príncipe, ele teria o mundo inteiro aos seus pés, eles seriam o centro do universo, filhos da escuridão, amantes das trevas.

— Se o bem, ou aquele que julga o que seria o bem, não os aceita, a escuridão os acolherá. E assim, serão filhos da noite, amantes das trevas. —Disse James, afirmando exatamente as palavras que a moça havia o dito.

Entretanto, havia um preço bem caro a pagar, James teria que ceder sua alma e se tornar escravo dessa jovem moça, propriedade dela. O preço seria pago com a morte dele: Ele seria condenado a perambular como um ser morto-vivo, um ser que se alimentava de outros seres para sobreviver, um parasita, uma criatura da noite, um demônio.

O outro preço seria: Trazer a cabeça da noiva. “Sacrifícios aumentam seu poder e mostram sua inteira devoção à mim”. E, James, temendo que fosse tarde demais, aceitou.

James correu até o seu amado enfrentando um exército inteiro. Cansado, ele finalmente chegou ao seu destino e percebeu que seu amado estava deitado, frio, sem vida e ao lado de sua noiva, que assim como ele, jazia nos braços da morte.

— Sabe, Charles. Eu acredito em reencarnação. Acreditei por muito tempo que ele voltaria para mim. Procurei por todos os lugares por ele, trouxe diversos rapazes até aqui. Muitos morreram na praia. Muitos morreram ao provar a taça de sangue. Muitos morreram paralisados de medo com minhas criaturas. Muitos morreram na minha mordida. Você esteve ultrapassando todas as barreiras, eu sinto em seu sangue que é você, sempre foi você, e se o destino existe, fomos destinados a ficar juntos. Eram apenas testes, ninguém que não fosse destinado à escuridão teria morrido, mas você resistiu bravamente.

— Então... — Pauso e engulo seco — Isso significa que você me ama, James? Por isso fez isso tudo? Porque vê em mim a sua felicidade?

— Sim, Charles. Eu o amo. E meu coração fere cada vez que eu sinto que o seu também está ferido. Mesmo sendo eu a causa de seus ferimentos.

— Então, deixe-me ir. Livre-me dessa maldição, eu ficarei mais feliz.

— Não posso, Char... Simplesmente não posso. Meu amor jaz em você, você me cativa. Preciso que eu te possua também.

— Isso não é amor, Karnstein. Isso é egoísmo, narcisismo.

— O que é o amor se não um ato egoísta? Sua liberdade seria um ato egoísta seu, não seria? — Ele respira profundamente, ou talvez tenha sido impressão minha, perdi um pouco de minha sanidade. — Você não vê que tudo o que eu faço é para que você perceba que foi você quem eu procurei o tempo todo?

Eu me calo, e espero que ele diga algo.

— Eu te amo tanto, Charles. Diga que me ama e logo, tudo acabará.

Sinto que começo a sentir meus sentidos voltando, minhas pernas mexendo, meus braços recuperando a força.

— E então, seremos eu e você, amantes perdidos na escuridão? — Olho para James e encosto meu nariz no dele — James! Qualquer que seja sua crença, quem quer que eu possa ter sido séculos atrás, foi ele que o amou. Eu não posso ficar.

— No fundo, eu sei que o seu coração é tão negro e sombrio quanto o meu. Fique comigo.

— Tem razão, James, meu coração é negro. — Alcanço um objeto de ferro que estava posicionado perto da cabeceira e o arremesso diretamente na cabeça de James. Vejo-o cair e se contorcer no chão, não havia sangue, mas não me surpreendi com isso.

Corri procurando a saída do castelo enquanto uma tempestade se desenrolava lá fora. Passei por diversas portas de madeira, correntes de ferro, janelas que davam uma bela visão para o mar furioso. Eu corria, manco de uma perna pelo fato de não me recuperar inteiramente. Ouvi barulhos de morcegos, das criaturas diabólicas de James, vi suas sombras, senti que elas me perseguiam. Seria paranoia minha?

Consegui sair do castelo e sigo direto. Perco-me em um labirinto de cerca viva, corro para uma saída e vejo James parado.

— Charles, não faça isso. — Ele me estende a mão enquanto me viro. — Eu não quero te machucar.

Continuo correndo para outras saídas e sempre me deparo com a imagem de James. Estou assustado, ofegante e cambaleante. Sinto que estou perdido em um jogo que nunca tem fim.

A tempestade cessa, e a lua se posiciona brilhante no céu. Em determinado ponto eu paro de fugir, pois sob o luar eu vejo seus olhos negros sendo lançados diretamente para mim.

Não há uma outra saída, cheguei no ponto final. O que ele faria?

— Eu sei que você quer fugir, Charles, e devia. Mas parte de você quer ficar aqui. — Ele me entrega uma faca. — Fuja, Charles, mas se for me deixar mais uma vez, mate-me primeiro.

Não faço nada. Talvez James tivesse razão, eu estava atraído pela escuridão, e ele era a própria escuridão. Pergunto-me se fico porque amo James ou porque acabei refém de minha própria insanidade.

James é gentil. Desliza a mão sobre o meu rosto e me pede para deitar, e me despe inteiramente. E começa a me beijar, e aos poucos ele desce seus beijos sobre a extensão do meu corpo e os mesmos começam a ficar mais intensos. Ele me encara nos olhos e diz:

— Você é meu!