Valerie Westerna

Não me recordo bem o que ocorreu sob o véu da noite passada. Uma indisposição pousa sobre meus ombros e meus olhos mal conseguem abrir devido ao excesso de claridade que invade meu quarto através da janela. Levanto-me e me posiciono de frente ao espelho e me vejo pálida e sem vida.

Desço a escadaria e vou em busca de minha companheira na sala de jantar para o café da manhã, mas, para minha surpresa, ela não se encontrava lá. Não havia nada servido na mesa do jantar. Sobre a superfície havia apenas um vaso com flores que pareciam estar ali por um bom tempo.

Flores brancas repousadas em um jarro de cerâmica azul. Eram Estevas, eu as conheço muito bem. “Flores brancas que trazem uma sensação de paz, da espiritualidade, da inocência e da virgindade”, segundo minha mãe. Seu centro era amarelado e vívido, alegre como o sol. E, sobre as pétalas, havia algumas colorações vermelhas em forma circular. O vermelho deixava as flores mais bonitas, mais agradáveis de serem admiradas, pois ele trazia uma sensação de paixão, energia, perigo, assim como Lucy.

As flores já estavam murchando, sem vida, quando pressenti algo se movimentando atrás de mim e me virei. Meu pai precisava me falar algo. Seu rosto estava lânguido, vazio.

— Valerie... — Ele respirou e pousou sua mão sobre a minha — Preciso que seja forte...

Mirei-o incompreensiva e angustiada, queria saber o que ele queria dizer com isso. O que o afligia? Ele apenas se calou e disse suavemente com sua voz rouca e chorosa.

— Sua mãe veio a óbito essa manhã...

Senti uma um frio percorrer minha espinha e um torpor tomando de conta de todos os músculos de meu corpo. Minha mãe havia partido e me deixado ali sozinha. Gritei o mais alto que pude até que meus gritos ecoassem por todos os cômodos e voltassem direto para minha cabeça pelos ecos. Perdi-me em minha sanidade, em minha consciência. Senti tudo escurecer e uma sensação de fraqueza dominar meu corpo.

***

Finalmente acordei e já era noite. A luz do luar atravessava a janela e seu véu caia sobre mim. Meus olhos estavam inchados e meu corpo estava sem forças para me reerguer e sair da cama. Eu me perguntava porque ela havia partido a cada segundo que se passava. Charles não estava ali para me oferecer seu ombro companheiro e eu estava sozinha.

Uma vaga memória de Lucy me veio na cabeça, e me pergunto onde ela estava. Havia me abandonado também? Não estaria surpresa. Afinal, todos me abandonam uma hora ou outra.

Tentei afogar as tristezas e a dor da partida de minha mãe com as sensações de prazer e amor que tive. Eu podia sentir todo o amor de Charles caindo sobre mim, mas era o prazer carnal de Lucy que tomava meus pensamentos a todo momento.

Escorreguei meus dedos e massageei minha própria pele para sentir algum toque que pudesse me levar de volta à sensação de deleite proporcionada pela minha companheira e desci meus dedos em direção ao ventre e senti toda a dor sumir e um prazer tomar de conta de mim.

Minhas memórias se enredavam ao momento que se passou anteriormente, noites atrás. Entretanto, tudo foi substituído por algumas memórias aleatórias que se passavam em minha mente: som de gritos... Vermelho... Floresta... O luar... Lucy.

Levantei rapidamente assustada e, para minha surpresa, me deparei com Lucy despida e de cócoras sobre a minha cama. Havia uma substância forte e negra sobre ela eu tentei gritar. Todavia, minha voz ficou presa em minha garganta e senti uma paralisia sendo espalhada pelo meu corpo.

— Venha comigo... Até a morte.

Eu não consegui dizer ou fazer nada. Minhas palavras haviam sumido, meus pensamentos haviam se dissipado.

— Siga-me agora, Valerie. E jamais se curve diante de outro homem.

***

Eu não sei em que momento da noite aquilo aconteceu ou como aconteceu, mas em um piscar de olhos eu estava posta sobre a mesa da sala de jantar quanto o sol raiava.

Uma das empregadas veio me perguntar o que eu estava fazendo ali e eu apenas apressei meus passos para sair daquele local.

Ao subir a escadaria eu fiquei tentando me lembrar o que estava acontecendo. Veio-me em memória algumas coisas: Beijo... Janela... Vidro... Sangue... Lucy.

Acordei no porão dessa vez. Não havia ideia do que estava ocorrendo para que eu fosse parar ali. Subi para o andar de cima e me deparei com o meu pai me perguntando se eu estava bem e para corroborar o fato que eu precisava me alimentar melhor.

— Estou bem. Não se preocupe.

— Só queremos o seu melhor... — Ele me responde preocupado. Percebo que ele tem olheiras profundas nos olhos

— Ficarei bem... — Viro-me de costas e depois volto a fixa-lo. — Aliás... Onde está Lucy? Não consigo encontra-la em lugar algum.

Meu pai me olha com uma cara espantada e desconfio que algo esteja errado pela forma como ele encara.

— Então, onde ela está? — Refaço a pergunta, esperando uma resposta prolixa.

— Não há nenhuma Lucy aqui, Valerie. O que você está procurando? Quem é Lucy? — Ele me perguntou, jogando uma certa rispidez.

— Lucy Mersault. Condessa Mersault — Encaro-o e vejo que uma nuvem de confusão paira em seu rosto. — A garota que sofreu um acidente nas proximidades.

Senti-o me pegar pelos braços e me encarar com um olhar observador.

— Mantenha-se afastada de qualquer pessoa, Valerie.

— O quê? — Eu não entendi o que ele estava falando. — Onde ela está?

—Não existe nenhuma Lucy, sua tola. Nenhuma garota veio adentrar a essa casa. A única Lucy que conhecemos é a filha de uma empregada que trabalha na cozinha e ela é recém-nascida. — Um olhar de medo e de raiva domina meu pai. — Algumas garotas estão desaparecendo na cidade e reaparecendo mortas com o pescoço estrangulado, estraçalhadas. Suspeitam que isso seja um animal, um assassino ou até mesmo uma briuxa.

Um espanto cai sobre mim e não sei o que dizer sobre isso. Fico paralisada e então começo a ligar tudo. Sangue... Sexo... Cadáveres... Lago... Sonhos... E depois não sinto mais nada.

***

Acordo durante o dia. Os raios de sol cobrem minha cabeça e eu me levanto exausta e fétida. Um cheiro podre e metálico toma conta do ar. Viro-me de lado e me deparo com uma garota de cabelos negros deitada de bruços. “Lucy” ecoa em minha cabeça.

Viro-a e vejo que é uma camponesa. Está pálida, murcha, seu corpo está ensanguentado e há uma abertura grosseira em seu pescoço. Olho para mim mesma e vejo que estou coberta de sangue.

Em pânico, verifico de onde ele jorra apalpando meu corpo. Para minha surpresa, e talvez alívio, o sangue não era meu. Começo a chorar desesperadamente e escuto uma voz atrás de mim.

— Olá? — Uma voz masculina.

Assustada e debulhando em lágrimas eu observo o jovem. Não quero estar nessa cena, não quero ser lembrada encontrada com uma garota morta. Apressei meu passo para sair dali, mas ele me avistou e gritou.

Não parei e não olhei para trás, segui em frente até chegar em casa chorando.

Encontro todos no pátio à minha procura e abraço Lydia, a mulher que havia me criado quando eu era criança.

— Você está bem? Por que está suja de sangue? — Ela me encarava assustada.

— Preciso encontrar meu pai, agora mesmo. — Disse eu chorando.

— Ele se foi. — Ela disse friamente.

Não consegui sentir nada mais. Eu estava prestes a ficar louca até que escutei uma voz atrás de mim.

— Entreguem a menina. Ela é uma assassina. Está matando todas as moças. Entreguem-na agora. — O mesmo jovem que me viu na floresta estava ali, mas, dessa vez, acompanhado de seu pai e duas espingardas.

Eu não senti mais nada, não vi mais nada. E mais uma vez, a escuridão tomou de conta de meus olhos e de meu mundo.