Charles Louis Marsh

O clima estava selvagem.

Durante a viagem naquela embarcação de madeira velha o tempo parecia não passar. Meus breves sonos eram interrompidos bruscamente pelos raios que cintilavam durante o negrume e a névoa que se espalhava pelo mar. O navio rangia durante a tempestade. Por momentos eu agarrei meu crucifixo, orei para que o navio não cedesse e se partisse com as ondas que batiam forte em seu casco.

O Capitão bateu levemente em meu ombro e eu ergui minha cabeça e fui ao encontro de seu rosto em meio àquela escuridão.

—Estamos próximos a ilha do Corvo! —Ele gritava para que eu ouvisse sua voz entre os trovões que eram ensurdecedores. —Sinto muito Sr. Marsh, teremos que partir. Todos os tripulantes têm um receio em ficar alguns momentos parados sobre essas ilhas. Muitos navios naufragaram aqui e há um relato de carnificina já existente na história deste local. Não que eu o queira assustar, mas creio que precisa saber o que pode acabar encontrando por essas regiões.

Acenei com a cabeça enquanto a água se chocava contra minha face e me cegava por alguns instantes quanto atingiam meus olhos.

—Isso significa que terá que descer aqui. Temos um bote e ele pode levar o senhor até lá.

Eu refleti por alguns momentos e realmente não tive muita escolha. Concordei em entrar no bote e seguir em direção à ilha para que eu pudesse chegar ao Sr. Karnstein.

Enquanto eu segurava o remo e me seguia em direção a costa, pude jurar que ouvi alguns tripulantes estavam caçoando de mim e outros me olhavam com certa pena. Tive uma leve impressão que não sobreviveria a tempo de chegar na praia.

***

Abro meus olhos e observo o que está ao meu redor. Estou molhado e escuto o som das ondas batendo. Sinto areia em minha pele e em meus cabelos. Estou na praia. Completamente despido e no meio da chuva. O vento uiva como um lobo selvagem em noite de lua cheia. Era cortante e gélido. O mar se choca contra a costa e a ressaca se movimenta furiosa. Os raios que se ramificam no céu parecem veias se espalhando pelas nuvens com uma coloração avermelhada.

Eu não me lembro como cheguei até ali. Não sei se meu bote se chocou contra os corais, pedras ou se eu simplesmente me afoguei.

“Lembre-se! Lembre-se! Lembre-se!”. Bato em minha cabeça com a intenção de me lembrar de algo, mas nada me vem à memória. Fecho meus olhos e rapidamente me lembro do vermelho. Olhos vermelhos. Dentes afiados. Fico horrorizado ao lembrar de alguns breves detalhes que cercam minha memória.

O céu se ilumina com alguns raios e vejo algo estranho. Deve ser algo da minha cabeça. Os raios, mais uma vez, se destacam no céu e olho para minhas mãos. A chuva que caia, não era nada transparente, mas era escarlate.

Olho para o mar e vejo que há uma sombra próximo a água. E ela começa a se aproximar. Simultaneamente, começo a ouvir alguns lobos uivarem e começarem a aparecer e se posicionar em minha frente.

Começo andando de costas e sem perceber me pego correndo. Vejo o castelo e minha meta é sobrevier até chegar nele. Enquanto corro, escuto os uivos, os grunhidos, o som dos meus pés na areia e do vento que parecia sussurrar em meu ouvido que a morte me queria como companhia. E ao chegar nas escadarias, não há mais nada me perseguindo.

As portas do castelo se abrem, e mergulho naquele mar de sombras. No alto da escadaria do interior do castelo, os raios propagavam luzes através dos vitrais, e uma sombra era projetada no chão.

Sr. Karnstein desceu as escadas de forma majestosa e leve. Sequer podia ouvir o som de seus passos no degrau, mesmo o eco da sala em que estávamos se alastrasse com qualquer coisa, notei isto quanto as portas rangeram para minha entrada.

Ele estava em minha frente. Seus cabelos eram negros, e cachos ondulados que me recordavam as ondas. Seus olhos eram de corvo, eram exatamente como o céu daquela noite, um céu negro e sem estrelas. Usava um casaco preto, feito de veludo e algodão. O negro contrastava muito bem com sua pele pálida.

—Sr. Marsh, sinto muito pelo mal tempo que essa ilha tem enfrentado ultimamente. —Sua voz soava de forma delicada, porém rouca. —Algum acidente deve ter acontecido para que aparecesse dessa forma. Creio que perdeu alguns papéis e sua mala.

—Eu não me lembro. Só acordei na praia. —Recordei-me das figuras que apareceram e a breve perseguição selvagem que quase fui vítima.

—Hm... —Ele me observa dos pés à cabeça, para ao chegar em minha cintura e depois volta a me encarar nos olhos. —Parece que está bem frio lá fora, não é? —Noto que esqueci que estava, além de sem os documentos do meu escritório, despido. Começo a corar e tentar me cobrir com as mãos.

—Não se preocupe. Algumas noites aqui são muito quentes. —Ele se vira de costas e começa a subir as escadarias. —Acompanhe-me! Mostrarei vosso quarto.

***

Algum tempo depois, após um banho e estar devidamente apresentável, eu desci até a sala de jantar, onde ele me esperava sentado.

Sentei-me na outra extremidade da mesa, onde um prato com sopa, pão e lentilhas me aguardava. James Karnstein, por outro lado, só estava acompanhado de uma taça de vinho.

Comecei a comer o pão, enquanto James apenas me encarava.

Durante o jantar, nenhuma palavra havia sido dita. Os olhos de James se fixavam em mim, e o silêncio tomara de conta de nossas vozes. Uma breve agonia era estabelecida naquela mesa. Eu parecia estar me sufocando para que as palavras pudessem sair entre meus lábios, mas nada saía.

Ele bebericou o vinho. E eu fiz o mesmo. Tive um refluxo, uma repugnância, um enjoo. A bebida tinha um gosto peculiar. Parecia que eu estava bebendo ferrugem.

Olhei para a bebida e percebi que ela era diferente de todos os vinhos que eu já havia tomado. Ele era mais rubro, espesso e viscoso. Olhei para o acento de James, porém, para minha surpresa, ele já não estava mais lá.

Minha visão estava começando a ficar turva. O eco se propagava pela sala de jantar e era possível ouvir os sons dos insetos que viviam naquele castelo.

Senti suas mãos em meus ombros, massageando-me. Seus lábios encostavam em meu pescoço e eu estava cedendo. Minhas forças se esvaiam. Sua mão desce no meu abdômen, por dentro de minhas vestes. Escuto sua voz sussurrando em meu ouvido, enquanto meus sentidos, aos poucos, estavam se dissipavam.

—Você deve andar comigo a beira do precipício. Esperei-te por anos e finalmente viestes até mim. Você escapou pelos meus dedos uma vez, mas agora me pertence. Você deve me amar até a morte, e na morte, nasceremos juntos e reinaremos na escuridão.

***

Valerie Westerna

No dia seguinte, acordei durante a tardezinha. Lucy já havia acordado e me esperava na sala, enquanto lia algum livro sobre taxonomia e estava parada sobre a página que descrevia a Ordem Chiroptera dos seres vivos.

—São belas criaturas, não é mesmo? —Ela me questionou com um olhar leviano.

—São seres selvagens, da natureza. Em mim, eles me causam medo. Um morcego sobrevoando no céu é belo, mas próximo de mim, tenho um ataque de quizila.

Ela apenas sorri e continua folheando as páginas.

—Que tal darmos um passeio hoje a noite? —Ela me encara e tenho uma breve impressão que ela não transmite uma expressão de pedido, pergunta, sugestão ou algo similar, mas sim, se assemelha com uma ordem.

—Dessa vez, deixar-te-ei ir sozinha. — Estremeci ao lembrar do ocorrido ontem. Mal consigo me lembrar direito de como cheguei na minha cama, muito menos me perguntei como Lucy havia chegado e se me seguia.

—Então, assim seja. —Ela se levanta e se aproxima de mim. —São os momentos constantes próximos à morte que me fazem sentir mais viva. Viva como se nunca fosse morrer. — Ela se levanta e caminha para o seu quarto.

Ao anoitecer, me preparo para dormir. Mas o vento corre pela minha janela, e pude jurar que o vento sussurrou meu nome. Levanto-me e vejo que lá embaixo, Lucy caminha pelo pátio.

Irracionalmente, eu a sigo, e ao me ver ela abre um sorriso malicioso.

Caminhamos pela floresta e vamos parar em um campo florido aberto, ela me segurou pela mão e nos deitamos juntas, entrelaçadas em um abraço quente e reconfortante. Sob as estrelas, ela estava tão linda. Aos poucos, fecho meus olhos.

Ao abri-los, vejo que o céu está mais claro. O sol prestes a raiar e os pássaros gorjeavam em uma sinfonia suave. Olho para meu lado e Lucy já não estava mais lá.