— Eu nunca faria isso... – Ouvi Marcos suspirar, mas ignorei.

— Mas está fazendo. – Julie falava chorando. Cada lágrima que caia era como uma facada em meu peito.

— Não, não estou – falei com toda minha certeza – Eu não te deixaria mesmo se quisesse. – Vi um sorriso fraco nascer em seus lábios.

— Daniel, precisamos ir. – Marcos, um cara que trabalhava para a Polícia Espectral tentava ser compreensivo, eu não entendia direito o porquê, mas me sentia grato por isso.

— Mas eu tenho que ir agora... – me despedi dela novamente enquanto encarava o alto policial atrás de minha garota.

— Posso te pedir uma última coisa?

— O que?

— Um beijo. – ela suplicou.

— Julie...- a repreendi, pois, a presença do homem ali no quarto já estava me incomodando, mas quando ele suspirou e assentiu com a cabeça, atendi ao último pedido do meu amor, colei nossos lábios rapidamente, aquele seria nosso último beijo então aproveitei o máximo que pude, a puxava cada vez mais para mim. Queria dizer o quanto ela era importante para mim, mas percebi que a mesma também tentava aproveitar o máximo aquele beijo pois em nenhum momento desgrudava seus lábios dos meus. Vi que ela já estava com dificuldade para respirar, então passei os beijos para seu pescoço, senti seu cheiro pela última vez, e por necessidade sussurrei um último eu te amo perto do seu ouvido.

— Daniel... – O policial me olhou feio, já estava se mostrando impaciente. Encarei Julie e sabia que aquele era nosso adeus, tentei passar força por aquele olhar, mas não acredito que tenha dado certo. – Não podemos mais ficar aqui. – Marcos disse mais uma vez. Tentei dar um último sorriso para Julie, e depois fiquei invisível.

O homem ali presente se aproximou de mim e algemou minhas mãos, como se tivesse medo que eu fugisse. Enquanto ele fazia isso eu apenas observava Julie me chamando, e isso me causava muita dor, queria poder ficar visível de novo e abraçá-la, mas o máximo que pude fazer foi abaixar a cabeça, mas quando ela começou a chorar e suplicar para que eu aparecesse o policial me tirou do quarto. Mas claro que ela não via nada disso.

Aquela cena ficou marcada na minha memória, eu nunca a vi desse jeito. Ela chorava e gritava por mim como se sua vida dependesse disso... O que foi que eu fiz?

...

Quando estávamos quase chegando à Delegacia Espectral, Marcos quebrou o silêncio – Estamos perto. – Ao ver que eu não iria responder continuou. - Eu não vou contar sobre o que eu vi lá na casa se você também não contar. – Apenas assenti, e durante o resto do caminho ele não disse mais nada. Quando chegamos ao local ele me levou até um corredor, e durante o trajeto pude ver meus amigos sentados em um banco, também algemados. Félix estava assustado, olhava para os lados com medo, já Martim estava largado no banco e só me lançou um olhar com pena.

Enquanto passava pelas diversas portas que aparentavam ser de ferro, era possível ouvir alguns gritos de dor, outros de agonia, por dentro estremeci, mas por fora tentei não esboçar nenhuma reação. No final do corredor haviam várias portas abertas com números de identificações, o policial checou minha algema e em seguida uma placa que ficava do lado de dentro da porta, acredito que a numeração era a mesma, pois ele me empurrou para dentro, e indicou uma cadeira para sentar dentre as três que era possível enxergar ali.

— Aguarde até que alguém venha falar com você. Não tente fazer nada, isso poderá piorar a situação. – Marcos passou as instruções antes de fechar a porta. Apenas assenti como resposta, não estava a fim de falar. Já fazia um tempo que estava ali sentado, por conta do tédio comecei a examinar a sala. Era apertada e escura, as paredes eram pintadas de cinza, a falta de janelas deixava ambiente quente e abafado, havia apenas uma luz no teto que ficava bem no centro, logo em baixo tinha uma mesa com duas cadeiras de madeira, uma delas era onde eu estava sentado. Sabia que atrás de mim havia outra cadeira, mas não conseguia me virar para enxergar. Escutei a porta ser destrancada, mas nem me movi.

— Daniel, finalmente. – reconheci aquela voz. – Achei que ia ser mais difícil pegar você, mas vejo que não planejou nada.

— Quanto tempo? – perguntei enquanto encarava Demétrius que estava se acomodando na cadeira à minha frente

— Quanto tempo o que? – pareceu confuso.

— Quanto tempo eu vou ficar preso aqui?

Demétrius começou a rir, agora foi minha vez de ficar confuso. – Você acha mesmo que depois de tudo que fez só vai ficar preso aqui? Acredite, ainda estamos pensando em um castigo, não queremos correr o risco de prender você em um objeto de novo... – pensou um pouco. – Se bem que prisão não é uma má ideia. – Sorriu ironicamente, enquanto eu apenas o encarava sem expressão nenhuma.

— Não me interessa onde. – resmunguei. – Só quero saber o tempo.

— Quarenta anos... talvez mais se você não se comportar. – deu de ombros.

— Q-quarenta anos? – fiquei surpreso, não esperava pegar tanto tempo como da última vez. Apenas vi Demétrius sorrir, aquilo me despertou raiva, mas não poderia perder o controle ali.

— Pois é. Mas não se preocupe, você ainda tem uma morte inteira pela frente, o que seriam míseros quarenta anos perto disso?

— E meus amigos? Eles vão também? – fiquei preocupado, não queria que eles sofressem tanto quanto eu, eles não mereciam isso.

— Talvez eles peguem uns quatro ou cinco anos de trabalho comunitário, apesar de manterem contato com os vivos, só fizeram isso por serem influenciados por você... – pausou. – Bom, tenho que ir agora, o alguém virá falar com você, mas cabe ao juiz decidir sua pena. – Comentou se levando.

— Mas você pode influenciá-lo com isso, não? – perguntei sugestivamente.

— E por que eu faria isso por você?

— Porque eu posso contar para ele tudo o que eu sei. Tudo. – frisei. Demétrius entendeu o recado pois foi se sentando novamente, na cadeira à minha frente.

— Você não pode provar nada.

— Claro que posso! As provas ainda estão escondidas, posso indicar o lugar para ele. Você não é uma ótima companhia, mas seria muito bom ver você atrás das grades comigo. – Sorri.

— Eu não muito o que fazer por você, Daniel, já cavou sua própria cova há muito tempo. Eu tento te avisar, mas parece que você não escuta, poderia tent-

— Eu sei que você consegue diminuir o tempo. - Suspirou derrotado e saiu da sala me dando um último olhar de pena.

Nesse momento eu já não sentia mais nada. Entrava num estado de torpor no qual cada segundo que se passava era mais difícil assimilar tudo que estava acontecendo. Eu posso ter ficado minutos, dias ou semanas ali sentado, perdi totalmente a noção do tempo, e a falta de janela para me orientar com as horas contribuía para meu estado.

Minha mente passava e repassava meus últimos momentos com Julie, os bons eram tão rápidos que eu tinha que me esforçar para focar neles e não os deixar passar despercebido, já os nossos piores, como as vezes que a fiz chorar, ou nosso adeus, reprisavam em câmera lenta, cada segundo durava uma eternidade. Eu fechava os olhos para tentar não ver, mas aquilo era minha mente, como poderia fugir?

Num desses momentos entra um fantasma na sala, eu não tenho forças para me mexer, então continuo com a cabeça abaixada. - Daniel? - chamou. Eu não tinha vontade de responder, então apenas levantei a cabeça como resposta. - Bem, eu sou Tomas, seu advogado. - disse enquanto puxava a cadeira na minha frente. - Eu vou te ajudar e orientar durante todo o processo, ok? Sinta-se à vontade para perguntar qualquer coisa ou fazer algum pedido que eu tentarei negociar com os meus superiores. - Novamente, não respondi. - Bom, estou com sua ficha aqui, temos apenas um antecedente criminal, você pode confirmar isso pra mim? - Assenti uma única vez. - Não foi um delito muito grave... Na época você assustava os moradores de uma casa? - concordei novamente. - Não entendo o motivo de te punirem com 30 anos...

— Na época eu não tinha um advogado. - respondi ironicamente pela primeira vez depois de um tempo.

— Que estranho... Enfim, por ser sua primeira experiência com isso vou te explicar como funciona: não me veja como seu inimigo, tudo bem? Eu só estou aqui pra ajudar, não tenha medo de contar sua versão da história ou comentar sobre algo que não concorda. Quem vai te julgar é o juiz, não eu. Sei que é difícil, mas me veja o mais próximo de um amigo.

— Faz quanto tempo que estou aqui?

— Nessa sala? - parecia não ter entendido minha pergunta.

— Sim.

Ele pegou uma pasta dentro de sua maleta e folheou algumas páginas - 7 dias. - me respondeu após ler o que acredito que tenha sido minha ficha.

— Por que demoraram tanto pra te mandar?

Ele pareceu meio constrangido, mas respondeu receoso. - Foi complicado achar um advogado para você... Ninguém queria seu caso.

— E você quis?

— Sim.

— Por que?

— Porque eu sou o melhor, e sei que posso te ajudar. - Falou orgulhoso

— Eu vou ser punido? - seu semblante murchou um pouco.

— Bem... Vai. Por não ser a primeira vez que quebra as regras não vão pegar leve com você, mas posso te garantir que farei tudo o que estiver ao meu alcance para que pegue uma sentença leve ou menos tempo de punição. - suspirei.

— Você também é advogado dos meus amigos?

— Seus amigos? - assenti, mas ele continuou em dúvida.

— Martim e Félix.
— Ah, não! Eles já conseguiram seus respectivos advogados, aliás, seus casos já foram até julgados durante essa última semana... - Novamente abriu sua maleta e pegou um envelope - Pegaram 2 anos de trabalho comunitário, sendo os primeiros seis meses sob supervisão 24h, depois eles vão poder ter mais "liberdade", digamos assim. Enfim, se eles colaborarem com certeza essa pena cai pra um ano e meio ou até mesmo um ano... - Comentou enquanto lia a ficha. - Eles tiveram bons advogados, deram sorte.. Isso não é muito comum por aqui – Completou enquanto guardava as pastas de volta na maleta. Bom, pelo menos meus amigos conseguiram uma pena relativamente leve, menos mal. Mas duvido que eles voltem a aparecer no mundo dos humanos tão breve, do jeito que são medrosos... Julie vai enfrentar longos tempos sem notícias nossas, espero que esteja bem.
— Bem, Daniel, voltando para você...

— Eu só quero cumprir minha pena logo – comentei cabisbaixo antes de deixá-lo continuar.

— Não pensa assim... Olha, eu vou tentar ao máximo conseguir um bom acordo pra você, mas é difícil, você ultrapassou vários limites. Se tratarmos seu caso como qualquer um você pode ficar facilmente aqui por uns 20 ou 30 anos.

Suspirei. - Como posso ajudar?

— Seja sincero comigo, me conte tudo o que puder... Tudo o que pensar que pode ser útil, e o resto eu faço.

— Você acha que se eu dedurasse uma pessoa importante... - hesitei antes de continuar - isso poderia de alguma forma contribuir na hora de decidirem minha pena?

— Eu não posso te garantir isso... Mas dependendo da pessoa, com certeza te olhariam com outros olhos. - Não foi a melhor resposta, mas pelo menos me deixou mais confiante. Demétrius é uma das pessoas mais influentes daqui, está no topo da cadeia alimentar, digamos assim... Se eu o entregar, além dele ser punido isso poderia me ajudar. Ou eu posso continuar chantageando ele pra ver quem faz a melhor oferta primeiro... - Você quer me contar alguma coisa, Daniel? - o advogado interrompe meus pensamentos.

— Não... - Ele me olha desconfiado, mas parece deixar de lado já que olha as horas em seu relógio de pulso, pega novamente minha ficha, um papel e uma caneta para fazer algumas anotações, porém, do meu lugar não consigo enxergar nada.

— Precisamos iniciar minha parte, só assim iremos evoluir no caso. Podemos começar? - assenti. - Me conte... como tudo isso começou? - suspirei, seria uma longa história.