— Mas Daniel, já se passaram três meses!

— Sim, e você ainda não fez nada para me ajudar, eu não aguento mais esconder esse seu segredinho sujo. Eu estou sendo julgado pelas minhas atitudes, você não, isso de longe pode ser chamado de justiça! - Eu estou adiando a data do seu julgamento o quanto posso, mas eu não consigo mudar a decisão do juiz, você sabe disso. - bufei, já estava perdendo a paciência.

— Olha, eu não me importo em continuar preso por enquanto, só quero que você faça tudo o que estiver ao seu alcance para me ajudar, ou eu conto para todos o seu segredinho e dou um fim nesse seu reinado.

— Você não pode me ameaçar, está entendendo? - Apontou o dedo na minha cara, eu até revidaria, mas estava algemado, então me limitei a revirar os olhos.

— Me testa então. - desafiei

— Eu preciso de mais tempo! Seu caso é complicado, você ultrapassou todos os limites, eu não posso fazer milagres por você! - choramingava, pelo menos ele ainda me levava a sério.

— E nesse tempo eu não posso mesmo fazer trabalho comunitário como meus amigos? - ele olhou me repreendendo. - Quero dizer, eu nem fui julgado ainda e já estou preso... Pelo menos durante o dia, eu prometo não sair daqui, até porque não tenho para onde fugir. - ri pelo nariz.

— Daniel... Se você estiver tramando alguma coisa eu vou descobrir e isso só vai piorar as coisas pro seu lado. - Ele estava mesmo desconfiando de mim.

— Te dou minha palavra! - jurei.

— Eu vou ver o que posso fazer. - Demétrius disse se levantando e saindo da pequena sala onde estávamos, na porta ele fez um sinal pro guarda que no mesmo instante veio me levar de volta para a cela onde eu ficava.

...

Meu trabalho comunitário se resumia em ser garçom num restaurante fantasma. Isso era no mínimo entediante, mas como estava sempre atarefado eu conseguia me distrair, isso ajudava os dias a passarem mais rapidamente... de certa forma.

Era meio dia, horário de grande movimentação, as pessoas entravam e saiam a todo momento, eu não parava de limpar mesas e entregar pedidos.

— Garoto, acorda! Tem clientes esperando para sentar na mesa 8. - meu chefe gritava do balcão.

— Sim, senhor! Me desculpe. - eu odiava ter tanta formalidade e educação com quem só me tratava mal, mas esse era o preço que eu pagava por ter me apaixonado por uma humana, e sinceramente, passar tudo isso pela Julie, valia a pena.

Corri para limpar a mesa 8, mas as pessoas estavam tão apressadas que eu mal tive tempo de tirar os talheres da mesa e os clientes já foram se sentar.

— Lindinho, você esqueceu o copo aqui! - uma voz enjoada falou enquanto eu me retirava.

— Me desculpe. - abaixei a cabeça e virei de volta para a mesa no intuito de pegar o copo na qual a pessoa se referia.

— Daniel! - a voz enjoada gritou chamando minha atenção. Quando levantei a cabeça para olhar quem era tive uma surpresa.

— Débora?! - Apesar de ela ser um fantasma também era a última pessoa que eu esperava encontrar ali... Débora, uma velha e irritante amiga de Martim estava sentada na minha frente com várias amigas a acompanhando.

— Ai! Que mundo pequeno, você acredita? E eu achando que você ainda estava no mundo dos vivos correndo atrás daquela menina, qual o nome dela mesmo? - demorou alguns segundos para se lembrar enquanto eu a observava calado. - Julia!

— Juli-E – corrigi.

— Ah sim, e agora você está aí trabalhando como garçom? - ria como se tivessem contado a piada mais engraçada do mundo.

— Parece que sim. - sussurrei.

— Daniel! Pare de conversar e volte já ao trabalho! - meu chefe gritava. Pedi licença para me retirar e voltar a atender as mesas quando escutei Débora fofocando.

— Então, menina, você não vai acreditar.... é! Ele tava com uma viva aí, tinham banda e tudo, eu soube que... - ri de desgosto em pensamentos, ela não mudava mesmo.

...

Já eram quase duas e meia da tarde, o lugar tinha se esvaziado devido ao fim do horário de almoço, mas ainda era possível ouvir a voz irritante de Débora no fim no restaurante. Minha cabeça estava prestes a explodir de tanta dor, e aparentemente eu não era o único que estava incomodado já que meu chefe apareceu do meu lado pedindo para eu, educadamente, expulsá-las caso não fossem consumir mais nada.

— Então, meninas. - começo a falar quando me aproximo da mesa. - Nosso horário de almoço já está no fim, então se vocês não forem pedir mais nada eu preciso pedir para vocês se retirarem. - dou um sorriso amarelo.

— Daniel! Eu estava contando para elas daquela vez no colégio em que você... - sua voz já me deixava atordoado, mas como ela era irritante! Ainda se lembrava da época de colégio, nossa, que memória boa... ela seria ótima para dar recados, isso me deu uma ideia.

— Débora, - interrompi – eu posso falar a sós com você rapidinho?

— Claro! - se virou para as outras na mesa. - Meninas, não esperem por mim, já podem ir, eu alcanço vocês depois. - e nisso ela agarrou meu braço e foi me acompanhando até a porta. - O que foi, Dan? - perguntou assim que chegamos na rua.

— Aqui não. - a puxei para detrás do restaurante, onde tinha um beco e pouca movimentação, lá nosso assunto seria privado.

— Ai! Que atrevido. Olha, eu não posso fazer nada com você, não sei se andou sabendo, mas eu estou comprometida. - me mostrou a aliança na mão.

— O que? Não! Eu não quero nada com você. - eu só tinha olhos para outra garota, como ela pode achar que eu teria interesse nela. Quando percebi que Débora não respondeu de primeira, vi que ela estava ameaçando chorar, droga. - Para, não chora. - odiava fazer qualquer pessoa chorar, mesmo sendo irritante assim. - Olha, eu não quis dizer isso, eu estou apaixonado por outra pessoa, não posso trair ela assim, não concorda?

— Apaixonado?! Por quem?! - ela parou com o teatro na mesma hora... como era falsa.

— Então, lembra da humana que eu corria atrás?

— Oh! Eu não acredito! - levou a mão na boca. Meu Deus, eu mereço.

— Ela. Mas agora eu não posso sair do mundo dos fantasmas, e ela não sabe disso...

— Coitadinha!

— Então... Será que você poderia me fazer um favor? - dei um meio sorriso. Tentei usar meu lado mais agradável para ela não recusar logo de cara ou pelo menos me ouvir.

— Claro! Tudo em nome do amor. - ela estava empolgada.

— Será que você não poderia fazer uma visita para ela e dizer que eu não a esqueci e estou sentindo sua falta?

— Ai, Dani! - segurei o vomito na minha boca com o sorriso de fachada. - Que gracinha! Mas é claro, e o que mais eu digo?

Hum. - É só isso mesmo, obrigado. - Eu não poderia dizer a ela que estou preso, ela ficaria preocupada e com certeza cometeria alguma loucura, não posso correr esse risco.

— Nem um "eu te amo"? - Ela parecia decepcionada.

— Melhor não... - nossa despedida já fora dura o bastante, eu a amo muito, ela sabe disso, mas talvez afirmar isso agora a faça criar mais esperanças, ou talvez ela até deixe de seguir em frente por pensar que pode me esperar, e mesmo que ela tenha lido minha carta de despedida, teimosa do jeito que é, eu duvido que me ouça, então prefiro não arriscar.

— Você faz isso por mim? - meu rosto já doía de tanto forçar o sorriso.

— Claro que faço, Danizinho – beijou minha bochecha.

Eca. - Bem, ela mora na casa que tem a edícula, onde eu vivi com os meninos, perto do colégio. Você sabe chegar lá... - comentei olhando as horas no relógio de pulso dela. - Eu não deveria ter saído do trabalho, então preciso voltar! Não esquece de me trazer a resposta dela, obrigado Débora. - Falei e saí correndo de volta para o restaurante, primeiro porque não queria arriscar receber outro beijo dela, segundo porque eu sou proibido de sair daquele estabelecimento, espero que ninguém tenha sentido minha falta.

— Daniel! - meu chefe me esperava na porta.

— Sim?!

— Onde você estava? - fodeu.

— Ãhn. - respirei fundo para não gaguejar. - Eu fui acompanhar uma das moças até a rua ali de trás, ela disse que não queria passar sozinha pelo beco com medo de assediadores e pediu minha ajuda. Como não tinha mais clientes aqui eu pensei que não teria problema. - Sorri amarelo.

Ele me olhou torto. - Se ela pediu não tem problema então, mas se houver uma próxima vez, e eu espero que não... - ele disse em um tom de ameaça, mas eu ignorei e ele continuou. - ... pelo menos me avise antes, eu já estava chamando a polícia para ir atrás de você.

— Me desculpe, senhor, prometo que não irá se repetir.

— Assim eu espero, não quero ter trabalho com você, garoto. Sabe como sou bondoso em te deixar cumprir sua pena no meu restaurante, não sabe? - assenti e me segurei para não revirar os olhos, ele sempre fazia esse mesmo discurso sobre como eu tinha sorte de estar trabalhando aqui para ele e não quebrando pedras, ou carpindo um lote, até mesmo trabalhando numa fábrica fantasma. Fora que ele perdia vários clientes por ter um "criminoso" trabalhando aqui, então eu deveria ser grato à ele e dar mais valor ao meu trabalho.

...

No fim do dia, perto das sete horas da tarde esse lugar lotava com os mais diversos tipos de fantasmas, todo dia um happy hour diferente. Nós tirávamos as mesas e o lugar virava uma espécie de balada. Era horrível. O pessoal bebia mais do que devia e vomitada em tudo que é canto, e obviamente quem limpava era eu.

Meu expediente terminava por volta das 2 da manhã, se eu tivesse sorte, e então vinham alguns guardas me escoltar até minha cela, onde eu ficava o resto do tempo. Eu era considerado "perigoso", não pelo que eu fiz, mas por acreditarem que eu ia fugir a qualquer momento que alguém deixasse de me vigiar.

Eu ia trabalhar por volta das dez horas da manhã. Na ida ninguém me acompanhava, por algum motivo desconhecido, mas não fazia sentido, eu era mais propenso a fazer algo de manhã quando estava descansado do que de noite, depois de trabalhar o dia todo. Mas sempre que eu chegava no restaurante, meu chefe comunicava a polícia. Teve um dia que eu me distraí e acabei errando o caminho, e quando eu estava dando meia volta para achar o lugar certo vi uma senhora fantasma na rua também perdida e resolvi ajudá-la, nisso me atrasei uns 15 minutos e fiquei uma semana inteira na solitária, foi péssimo, depois disso nunca mais errei o caminho.

Comecei com o trabalho comunitário faz uns dois meses. Ocupar minha cabeça com algo era melhor do que ficar 24 horas preso numa cela toda cinza e sem janela. Eu tinha uma jornada de trabalho muito longa e cansativa – mais de doze horas por dia – mas como eu era apenas um detento, podemos dizer assim, ninguém se importava muito com meus direitos. Na verdade, meu advogado se importava, mas ele nunca conseguia diminuir essa carga horária, e entre ficar exausto durante o dia todo ocupando minha cabeça ou não fazer nada, eu escolhia o trabalho sem pensar duas vezes.

Tomas, meu advogado, era bem simpático, eu sentia mesmo que ele queria me ajudar, mas ele era tão sem voz ali que se tornava quase inútil, era complicado negociar as coisas com ele, ninguém levava meu caso a sério, minha única saída era continuar chantageando o Demétrius, que por estar no topo da cadeia tinha o direito de falar comigo sempre que necessário, e quando isso acontecia ele negociava acordos comigo, mas nada tem sido muito efetivo até agora, apenas o trabalho que ele me arrumou. Eu tentava pedir pra ele diminuir minha pena inicial, mas segundo ele isso era impossível, uma vez que essa decisão só cabia ao juiz, e esse estava mais acima que ele no quesito direitos.

Meus amigos tiveram uma pena relativamente leve, e eu soube que se eles se comportarem ela vai diminuindo cada vez mais. Mal faz seis meses que estamos presos e eles já diminuíram outros seis no total da sentença deles. Porém eles são totalmente proibidos de falar comigo, mandar recados, me ver ou afins, o que me deixa triste já que faz muito tempo desde a última vez que nos falamos, e eu nunca tive a oportunidade de pedir desculpas por tudo que eu causei a eles por um erro estupido meu. Não que eu me arrependa, mas se fosse pra fazer tudo de novo, eu provávelmente não envolveria tanto eles quanto envolvi.

Esses últimos meses tem sido os piores de minha existência, eu não sinto que tenho mais alguma coisa. Meus amigos se foram, e meu amor também. Não tem nada que me prenda ou me motive diariamente, me sinto completamente só, mas sei que tudo isso, no fim, vai ter algum sentido, mas por enquanto, eu só não sei qual.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.